sábado, 30 de abril de 2011

A web é o mundo

OLIVER BURKEMAN*
BEM-VINDOS AO DESERTO DO VIRTUAL
Imagem da Internet

Oliver Burkeman foi ao Texas em março
para o festival South by Southwest de filme,
 música e tecnologia, em busca
da próxima "grande ideia".
Depois de três dias, ele encontrou:
o limite entre a vida real e
a vida online desapareceu.

Se meus netos um dia me perguntarem onde eu estava quando percebi que a internet havia acabado – eles não irão, é claro, pois estarão muito ocupados brincando com o console de teletransporte –, poderei ser bastante específico: estava em um restaurante mexicano, na frente de um cemitério em Austin, Texas, na metade de um taco. Era o final do segundo dia do South by Southwest Interactive, a maior reunião em caráter mundial de geeks e de capitalistas de risco que os amam, e eu cumpria uma regra de perguntar a todos que conhecia, talvez um pouco agressivamente demais, o que exatamente eles faziam. O que é “experiência de usuário”, na realidade? O que diabos é a “joguificação do sistema de saúde”? Ou “geofencing”? Ou “pensamento de design”? Ou “governo open source”? O que é “estratégia de conteúdo”? Sério, eu digo, tipo, especificamente?
O estrategista de conteúdo do outro lado da mesa tomou um gole de seu coquetel cor de laranja. Ele parecia levemente exasperado.
– Bem, de uma perspectiva, eu acho – ele disse – que é tipo... tudo.
Isso, para quem está por fora, é o obstáculo fundamental para entender para onde vai a cultura da tecnologia: cada vez mais, é sobre tudo. Os jovens de 20 e poucos anos, vagamente intimidantes, que povoavam os corredores do Centro de Convenções de Austin, fazendo malabarismo com xícaras de café, iPad 2s e o calendário de eventos do festival, que tem 330 páginas, não estão mais contentes em transformar aquela parte da vida passada em frente ao computador ou mesmo com seu smartphone. Não é apenas grandiosidade da parte deles. Mais do que isso – e não apenas como ponto tecnológico e também como filosófico –, eles apregoam o desaparecimento do limite entre a “vida online” e a “vida real”, entre o físico e o virtual. Assim, é necessária apenas uma pequena (e, com sorte, permissiva) quantidade de hipérbole jornalística para sugerir que os dias da internet como uma coisa identificavelmente separada podem estar ficando para trás. Depois de algumas horas no South by Southwest (SXSW), o programa de 330 páginas na pasta começou a me dar dores no ombro, mas, para ser honesto, ele era estranhamente breve: afinal, o festival era sobre “tudo”.
Ouvimos sobre este momento na história digital desde, ao menos, 1988, quando Mark Weiser, tecnólogo da Xerox, cunhou o termo “computação ubíqua”, referindo-se ao ponto em que dispositivos e sistemas se tornariam tão numerosos e difundidos que a “tecnologia recuaria para o plano de fundo de nossas vidas”. (Para ser justo, Weiser também chamou isso de “a era da tecnologia calma”, deixando implícita uma serenidade que as massas cafeinadas e distraídas pelo Twitter que tomaram Austin ainda parecem não ter alcançado.) E se passou quase uma década desde que os tipos pedantes do marketing tecnológico começaram a usar mobile como um substantivo abstrato, referindo-se ao fim da computação como algo restrito apenas ao desktop. Mas a chegada de uma internet verdadeiramente ubíqua é algo novo – e pode tornar quase sem sentido muitas das questões que temos nos colocado a respeito de tecnologia nos últimos anos. As mídias sociais causaram as recentes rebeliões árabes? A web nos distrai da vida propriamente dita? As amizades online são tão ricas quanto aquelas offline? Quando se dissolve a separação entre realidade e virtualidade, ambos os lados de tal debate acabam parecendo estranhamente anacrônicos. Eis, então, um pequeno “tour” do panorama que poderemos encontrar em lugar dos antigos questionamentos:
– Grandes ideias são como locomotivas – diz Tim O’Reilly, escritor de livros sobre computação legendário entre os geeks, embarcando em uma das grandes metáforas às quais os principais palestrantes do SXSW parecem invariavelmente recorrer. – Elas puxam um trem, e o trem deve ir a um lugar onde muitas pessoas querem estar.

Web 3.0
"...Cada vez mais, a web é o mundo – tudo e
 todos em seu mundo projetam
 uma ‘sombra de informações’, uma aura de dados,
que quando capturados e processados
de modo inteligente, oferece oportunidades
extraordinárias e implicações
que afetam a mente.”

A grande ideia de que fala O’Reilly é “inteligência coletiva movida a sensores”, mas, já que ele cunhou o termo “Web 2.0”, ele parece estar resignado em ouvir pessoas chamando a nova fase de “Web 3.0”. Se a Web 2.0 era o momento em que a promessa colaborativa da internet parecia finalmente realizar-se – com usuários comuns criando em vez de apenas consumir em sites que vão de Flickrs ao Facebook e à Wikipedia –, a Web 3.0 é o momento em que eles esquecem que o estão fazendo. Quando o sistema GPS em seu telefone ou em seu iPad podem relatar sua locação a qualquer site ou dispositivo que você preferir, quando o Facebook usa reconhecimento facial nas fotografias lá postadas, quando suas transações financeiras são gravadas e quando a localização de seu carro pode influenciar um esquema em mutação constante movido por sensores, tudo em tempo real, algo mudou em termos de qualidade. Você ainda está criando a web, mas sem uma necessidade consciente de fazê-lo. “Nossos telefones e câmeras transformam-se em olhos e ouvidos para aplicações”, escreveu O’Reilly. “Sensores de movimento e de localização dizem onde estamos, para o que estamos olhando e o quão rápido estamos nos movendo... Cada vez mais, a web é o mundo – tudo e todos em seu mundo projetam uma ‘sombra de informações’, uma aura de dados, que quando capturados e processados de modo inteligente, oferece oportunidades extraordinárias e implicações que afetam a mente.”
Implicações alarmantes também, é claro, se você não sabe o que exatamente está sendo compartilhado com quem. Passando por uma parede de telas de plasma em Austin que disparava tweets diretamente do festival, vi uma declaração de Marissa Mayer, vice-presidente do Google, de que as companhias de cartão de crédito podem prever com 98% de acerto, dois anos antes, quando um casal vai se divorciar, baseado em padrões de gasto apenas. Ela disse isso com intenções conciliadoras: o Google, ela explicou, não cavava dados tão profundamente. (Dentro de mim, eu admito, não me senti tranquilo. Mas também, Mayer já devia saber disso.)

A camada de jogo
"Sua visão do sistema de educação,
por exemplo, é de que é tudo um jogo mal projetado:
os estudantes competem por boas notas,
mas perdem a motivação quando
não as conseguem.
Um bom jogo, por contraste,
 nunca deixa você sentir que falhou:
você apenas progride de
 maneira mais devagar."
Dependendo de seu grau de imersão no mundo digital, é possível que você nunca tenha ouvido o termo “joguificação”, ou que você já esteja enjoado dele. De um ponto de vista linguístico, a palavra deveria provavelmente ser banida – talvez poderíamos nos livrar de “webinário” ao mesmo tempo? –, mas, como um conceito, ela estava em todo lugar em Austin. Designers de videogame, segundo a lógica, tornaram-se os especialistas líderes no mundo moderno em como manter os usuários animados, engajados e comprometidos: o sucesso da indústria de jogos comprova isso, seja lá qual for sua opinião sobre Grand Theft Auto ou sobre World of Warcraft. Então por que não aplicar esse conhecimento em todas as áreas da vida em que se poderia ter mais engajamento, comprometimento e diversão: na educação, digamos, ou na vida cívica, ou em hospitais? Três bilhões de horas por semana são gastas em jogos. Por que um pouco dessa energia não pode ser canalizada mais produtivamente?
Isso soa plausível até você pedir detalhes. Aí, torna-se extraordinariamente difícil descobrir o que isso pode significar. O atual rosto público da joguificação é Jane McGonigal, autor do novo livro Reality Is Broken: Why Games Make Us Better And How They Can Change The World, mas muitas de suas premissas induzem a um certo temor: elas parecem envolver redefinir projetos de auxílio na África como “missões de super heróis”, ou dizer a pacientes em hospitais para que pensem em sua recuperação da doença como “um jogo multiplayer”. Ouvir como McGonigal recuperou-se mais rápido de uma lesão séria na cabeça ao inventar um “jogo de super-heróis” chamado SuperBetter, baseado em Buffy, a caça-vampiros, em que sua família e amigos eram jogadores ajudando-a a recuperar a saúde, eu aparentemente deveria me sentir inspirado. Em vez disso, sinto vergonha e um pouco de tristeza: se um dia eu estiver nessa situação, espero não precisar inventar um jogo para persuadir minha família a se importar.
Uma reação diferente vem de assistir uma palestra frenética de Seth Priebatsch, garoto de 22 anos que largou Princeton e este ano é a vítima principal daquilo que o The New York Times chama de “A Próxima Síndrome Zuckerberg”, a busca para identificar e investir no equivalente vindouro do fundador bilionário do Facebook. O objetivo declarado de Priebatsch é “construir uma camada de jogo no topo do mundo” – o que, primeiramente, parece simplesmente querer dizer que todos devemos usar SCVNGR, sua plataforma de jogos baseada em locação que permite aos usuários competir para ganhar recompensas em restaurantes, bares e cinemas em seus smartphones (você pode praticamente ouvir os profissionais de marketing na sala salivarem quando ele menciona isso).
Mas as ideias de Priebatsch vão mais fundo que isso, contradizendo a impressão que se tem de sua camiseta polo laranja fluorescente, óculos escuros com aros da mesma cor, e sua tendência de quicar pelo palco como um brinquedo de criança. Sua visão do sistema de educação, por exemplo, é de que é tudo um jogo mal projetado: os estudantes competem por boas notas, mas perdem a motivação quando não as conseguem. Um bom jogo, por contraste, nunca deixa você sentir que falhou: você apenas progride de maneira mais devagar. Em vez de dar um zero a um estudante, por que não deixar todos os alunos começarem com zero pontos e fazê-los competir pelo escore mais alto? Esse tipo de insight não é único do mundo dos videogames: esses são conceitos básicos de psicologia humana e do papel dos incentivos, recentemente repopularizados em livros como Freakonomics e Nudge. Mas esse fato, em si, pode ser um sintoma do desaparecimento da noção entre online e offline – o que não quer dizer que esteja errado, certamente.

O dilema do ditador
"A internet agora é uma parte
tão difundida na vida de tantas pessoas
que bloquear certos sites ou
simplesmente desligar a coisa toda –
como líderes em Bahrain, Egito e outros lugares
tentaram fazer recentemente – pode ser
um tiro pela culatra, irritando ainda mais
os manifestantes e, no ponto de vista de um ditador,
piorando os problemas."


Há não muito tempo atrás, de acordo com o guru das novas mídias Clay Shirky, o governo sudanês montou uma página no Facebook convocando um protesto contra o governo sudanês, dando o lugar e o horário específicos – para simplesmente prender quem aparecesse. Foi prova, argumenta Shirky, de que as redes sociais não são revolucionárias por si só.
– A razão pela qual isso funcionou é que ninguém se conhecia – ele diz. – Eles pensavam que o Facebook por si inspirava confiança.
Esse é um dos muitos impactos contraintuituvos que a internet provocou nas políticas de protesto. Mas talvez o mais poderoso é o que Shirky – ele mesmo um proeminente evangelista do poder de serviços como Twitter e Facebook – chama de “o dilema do ditador”.
Líderes autoritários e manifestantes também podem explorar o poder da internet, concede Shirky. (Ao menos ele nota os riscos: em outra sessão na conferência, assisti pasmo enquanto um consultor em combate ao cibercrime falava com alegria indisfarçável sobre quanta informação a polícia podia encontrar via Facebook, para infiltrar-se em comunidades onde poderiam aparecer criminosos. Perguntado sobre privacidade, ele responde:
– É, temos que manter os olhos na questão.
Mas há uma assimetria crucial, continua Shirky. A internet agora é uma parte tão difundida na vida de tantas pessoas que bloquear certos sites ou simplesmente desligar a coisa toda – como líderes em Bahrain, Egito e outros lugares tentaram fazer recentemente – pode ser um tiro pela culatra, irritando ainda mais os manifestantes e, no ponto de vista de um ditador, piorando os problemas.
– O estado final da conectividade – ele afirma – é que ela dá ao cidadão um poder maior.
O caminho para esse estado final não será fácil. Mas os esforços compensatórios das autoridades em usar a internet para seus próprios fins nunca compensará completamente. Eles devem permitir a organização online dos dissidentes, ou – cortando um recurso crucial para suas vidas diárias – provocar fúria ainda maior.

Biomimetismo e idade

O mecanismo de busca AskNature descreve-se como “a primeira biblioteca digital de soluções da natureza”, e visitá-la é experimentar a sensação curiosa e um tanto desorientadora de uma busca google no universo físico. Pergunte algo básico – como se manter quente, digamos, à deriva ou na água, ou como caminhar em solo instável – e o sistema procura por soluções encontradas pela natureza para esse problema. A ideia de “biomimetismo” certamente não é nova: por grande parte da última década, a noção de tomar emprestadas soluções de engenharia do mundo natural inspirou arquitetos, designers industriais e outros. Austin está repleta de exemplos.
– A Nissan, agora, desenvolve carros baseados no movimento de peixes – diz Chris Allen, do Instituto de Biomimetismo.
Os peixes seguem regras matemáticas muito simples, ele explica, para assegurar-se de não colidir uns com os outros ao nadar em grupos. Tome esse algoritmo para dirigir carros e uma nova solução para engarrafamentos e acidentes de trânsito apresenta-se: e se, com tráfego pesado, carros de navegação automática pudessem ser programados para evitarem-se uns aos outros enquanto continuam andando tão eficientemente quanto for possível?
O Banco da Inglaterra, ele adiciona, atualmente consulta biólogos para explorar maneiras em que os sistemas orgânicos imunes possam inspirar reformas no sistema financeiro para torná-lo imunes a crises devastadoras.
– E o que procuramos agora – Allen diz, como se em mensagem criptografada – é uma tecnologia interativa inspirada por cobras.

"Devemos pulsar"

Até recentemente, o debate sobre “distração digital” foi um dos grandes interesses: autores nostálgicos dos dias de leitura silenciosa remoeram-no, enquanto o povo da tecnologia deixou-o de lado. Mas a fusão do mundo virtual com o real expõe ambos lados deste argumento como insuficientes, e sugere uma resposta simples: a internet distrai se impede que você faça o que realmente quer fazer; se não, não distrai. Avisos sobre “vício em internet” costumavam parecer conselhos vindos dos avós contra os males do rock. Mas você pode desenvolver um vício problemático de qualquer coisa, não há razão para excluir a internet, e muitos geeks de verdade em Austin (em oposto aos gurus da nova mídia que afirmam falar por eles) falam prontamente que conhecem portadores deste mal. Um dos mais populares fala na conferência, tocando nesses assuntos, sob o título “Por que Tudo É Incrível e Ninguém é Feliz”.
Um perigo relativo a juntar a vida online e offline, diz o pesquisador em administração Tony Schwartz, é que cheguemos a tratar a nós mesmos, de maneira sutil, como computadores. “Não devemos operar como computadores”, diz Schwartz:
– Devemos pulsar.
Quanto a administrar nossa própria energia, devemos trocar uma perspectiva linear por uma cíclica:
– Vivemos pelo mito de que a melhor maneira de produzir mais é trabalhar por mais horas.
Schwartz cita pesquisas que sugerem que deveríamos trabalhar períodos de não mais de 90 minutos antes de descansar. O que quer que você tenha sido levado a imaginar pela expansão da cultura digital em todos os aspectos da vida cotidiana – e por vezes esta semana em Austin foi fácil esquecer –, você não é, em última análise, um computador.
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Tradução: Fernanda Grabauska
POR The Guardian
Fonte: ZH online, 30/04/2011

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