terça-feira, 6 de setembro de 2022

“Eu não acredito em educação financeira que não passe pela escola.”



Renato Meirelles entende como poucos os costumes dos brasileiros. Adquiriu todo esse conhecimento com a empresa que fundou, o Instituto Locomotiva, que hoje é referência em pesquisas etnográficas. A pedido de grandes marcas, ele mora na casa dos entrevistados por uma semana para presenciar seu dia a dia e conhecer sua realidade. “O nosso desafio é conseguir saber a diferença entre o que as pessoas dizem que fazem, pensam que fazem e realmente fazem”, diz.

Marina Ianeri participou desta entrevista

Neste papo com o TINO Econômico ele conta o que aprendeu sobre a relação do brasileiro com dinheiro. A entrevista teve participação especial de Marina Ianeri, de 12 anos. 

Qual é a relação do brasileiro com dinheiro?

O brasileiro, em especial das classes C e D, enxerga o dinheiro como forma de viabilizar os sonhos: o sonho da faculdade, de conquistar a casa própria, de ter o próprio negócio. Então o dinheiro é um meio, não o objetivo final. Mas a realidade deles é mais dura e as dificuldades para guardar são maiores. Mesmo assim, não dá para dizer que o brasileiro não tem educação financeira. Como é que eu vou falar que alguém que sabe o preço do pãozinho no centavo, que vai a três mercados diferentes para achar a melhor promoção, não tem educação financeira? Ele tem uma noção de economia que a necessidade o obrigou a ter.

O brasileiro é conhecido pela criatividade. Lá atrás nós inventamos quais são os truques que os brasileiros têm hoje para multiplicar a renda?

Muitas vezes os brasileiros fazem aplicações financeiras que não são tão boas, como uma capitalização ou um consórcio, porque assim transformam a poupança em dívida. Quando comprometem o dinheiro em uma aplicação que funciona como um carnê e da qual eles não conseguem resgatar o dinheiro, são capazes de guardar. É o modelo de educação financeira que o carnê das Casas Bahia ensinou para eles. Eu não estou dizendo que isso é melhor ou pior, mas é como funciona. 

Conheci alguém que era o terror da área de ativação de cartão de crédito. Ele tinha um monte de cartão trancado na carteira a sete chaves, assim, fazia uma poupança de crédito. Ele não conseguia guardar dinheiro, mas sabia que se houvesse alguma emergência, tinha uma saída. Quando perguntei por que fazia isso, ele respondeu: o banco empresta o guarda-chuva quando está fazendo sol e tira quando começa a chover. Eu guardo os cartões porque eu não quero que eles tirem o meu guarda-chuva. 

Se alguém de classe alta compra uma marca de arroz em promoção e descobre que é ruim, ele joga fora, dá para o cachorro, faz qualquer coisa com isso. Se a pessoa da classe C e D compra o mesmo arroz, ela vai ter que comer arroz ruim o mês inteiro, porque a grana que tinha para o arroz era aquela. Para ela, o barato sai caro, por isso a opção acaba sendo pela marca mais conhecida e confiável. Existe uma radicalização de custo-benefício que evita o desperdício. E aí, como é que você vai falar que esse cara, que evita o desperdício por uma questão objetiva, não tem educação financeira? 

Esses instrumentos para guardar e gastar dinheiro são muito presentes na periferia, mas é muito difícil para os especialistas entenderem essa lógica. 

Você pode citar outra experiência que ilustre essa lógica?

Em uma das minhas pesquisas, estava na casa de uma chefe de família que tinha acabado de comprar uma máquina de lavar roupa fazendo um carnê. Eu perguntei: “A senhora fez as contas para saber se tinha juro?”. Ela falou: “Claro, eu não sou burra, sei que estou pagando mais caro”. Quando perguntei por que ela não optou por guardar o dinheiro e comprar à vista, ela respondeu: “Se você tivesse que perder duas horas por dia lavando roupa num tanque, você ia entender por que que eu não vou esperar dois anos para guardar o dinheiro. Com minha máquina de lavar roupa, eu trabalho melhor e cuido mais da minha família”. 

Qual formação financeira seria mais efetiva na sua visão?

Para ser efetiva, a educação financeira tem que deixar de falar da lógica societária e ir para a lógica comunitária. É a lógica da prosperidade, não da escassez. Não é abrindo mão do pouco que você já tem para pensar no futuro. Faz muito mais sentido pensar educação financeira com foco no empreendedorismo, no bico, no corre. Educação financeira é estar num emprego formal e começar a trabalhar no aplicativo ou vender Natura ou Avon para ter uma grana extra, que vai para a realização do sonho. Educação financeira começa por aí, não começa falando para quem não tem dinheiro que ele tem que ter menos ainda se quiser ter no futuro.

A escola tem um papel importante nesse trabalho? 

Eu não acredito em educação financeira que não passe pela escola. Quando o Brasil precisava aprender a escovar os dentes foi a escola que ensinou e foram as crianças que ensinaram os pais. Com o cinto de segurança foi a mesma coisa. Eu não acredito que vai ser diferente para educação financeira.

Dá para dizer que nas classes mais baixas o empreendedorismo é mais latente? 

Sem medo de errar: sim. Até porque é muito mais fácil você entender a lógica de prosperar, correr atrás, fazer o corre, quando não recebe mesada na adolescência. O corre leva a esse entendimento de empreender e prosperar. Eu costumo falar que quem inventou a startup foi a favela. 

Fonte: https://www.tinoeconomico.com.br/2022/08/23/eu-nao-acredito-em-educacao-financeira-que-nao-passe-pela-escola/

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