sexta-feira, 25 de novembro de 2022

‘Lula enfrenta um jogo de desestabilização e violência’

Bolsonaristas bloqueiam rodovia em Várzea Grande, Mato Grosso

Foto: Reuters - 31.out.2022
Bolsonaristas bloqueiam rodovia em Várzea Grande, Mato Grosso

Cientista político da UFMG, Bruno Pinheiro Wanderley Reis analisa a resiliência das manifestações golpistas e a deterioração do cenário político no Brasil que, para ele, não pode ser mais lida separadamente do que acontece no mundo

Não há como “examinar com realismo as perspectivas de evolução da cena política brasileira nos próximos anos” sem compreender um jogo internacional que está sendo construído nas últimas décadas, afirma o cientista político Bruno Pinheiro Wanderley Reis, professor e diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Em entrevista ao Nexo concedida na sexta-feira (18), ele prevê a extensão dos atos antidemocráticos promovidos por eleitores de Jair Bolsonaro para todo o mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, que toma posse em 1º de janeiro de 2023.

O cálculo político em questão, diz Reis, é desgastar e desestabilizar, desde o primeiro dia, o próximo governo de Lula. O professor vê processos análogos em todo o mundo, promovidos por uma rede internacional com fortes interesses políticos e econômicos, aliada à extrema direita, em conluio com grupos de comunicação poderosos, que “desqualifica a institucionalidade com bolhas de ressonância de desinformação”. A força política de Lula na arena geopolítica é seu principal trunfo nesse jogo, segundo o professor.

Reis, que também tem formação em economia, ainda avalia os primeiros passos da transição de governo e as turbulências iniciais entre o presidente eleito e o mercado. Nesse contexto, ele enxerga a formação da equipe econômica como uma equação bem mais complicada do que a definição do ministro da Defesa. Na visão do cientista político, o próximo ministro da Fazenda precisa ter interlocução política direta com o petista e contar com a total confiança do presidente eleito. “Não adianta botar alguém do mercado goela abaixo do Lula que vai durar três meses.”

Qual o significado de ainda haver pessoas nas ruas contestando o resultado e pedindo intervenção militar?

Bruno Pinheiro Wanderley Reis É bem delicado esse estado de coisas que provavelmente vai nos acompanhar por alguns anos, talvez décadas. Confesso que me correu um frio na espinha quando eu vi o primeiro apoio mais enfático a essas manifestações vindo da Fox News americana. Caíram algumas fichas. É preocupante sim, porque a gente tem um ecossistema informacional hoje que é caótico, segmentado. Se você não fizer nada, legitima. É mais do que um protesto político, porque é um convite à violência, à subversão armada e à violação do papel constitucional das Forças Armadas por pessoas reunidas, também irregularmente, em área de segurança, que é a porta do quartel. Bastava isso para não ser tolerável. E todas as circunstâncias indicam a complacência das Forças Armadas e das forças policiais com os atos.

Claro que alguém eventualmente pode nutrir alguma desconfiança em relação ao resultado eleitoral. Para isso há procedimentos, entrar com recurso formal, contestando com alguma razoabilidade. Você não pode fazer uma passeata na porta do exército. É área militar, portanto, área de exclusão para esse tipo de ação. No entanto, ficam ali, porque o Exército não se importa e deixa eles lá.

Para onde que esse jogo aponta? Esticarem isso diante da omissão das Forças Armadas e da omissão do Presidente da República que as comanda, até que se troque o presidente da República. E deixam cair no colo do novo presidente a ação antipática, digamos, de fazer cumprir a lei. Vão dizer: ah, foi o Lula que proibiu manifestantes…

Os manifestantes esticam a corda com o objetivo de desgastar Lula?

Bruno Pinheiro Wanderley Reis O cálculo político da brincadeira é esse. Não é dar um golpe no dia da posse, nem impedir a posse. Eventualmente alguém vai querer coreografar algum tipo de manifestação, algum tipo de protesto. É uma uma guerra de guerrilha, um jogo de desgaste, de procurar deixar o eventual governo na defensiva, se explicando e encontrando contestação frontal nas ruas desde o primeiro dia. É bem claro o jogo de desestabilização, que a gente já viu. A sensação de déjà vu é muito incômoda, as homologias formais entre processos análogos que se dão em variadas partes do mundo. É muito exasperante quando a gente lembra de 2013.

O que se vislumbra, então, é um cenário de profunda instabilidade social, não só política, no próximo governo, a partir do conluio e aliança com a extrema direita internacional que perpassa veículos de comunicação?

Bruno Pinheiro Wanderley Reis A gente se sente meio ridículo falando disso, como uma conspiração louca. No entanto, isso está aí o tempo todo. Quando veio a invasão da Ucrânia, todo mundo viu documentários. Tem os mais simpáticos à Ucrânia, outros mais à esquerda, antiestablishment. Em ambos, quando se vê as narrativas, é irritante e exasperante a homologia formal das estratégias e dos recursos, do recurso retórico, do componente visual e do esforço de desestabilização violenta que você tem, por exemplo, entre Euromaidan em 2014 [protestos em Kiev, na praça principal chamada Maidan Nezalejnost, que pediam o livre comércio com a União Europeia] e as jornadas de junho no Brasil em 2013. O repertório é igualzinho, em toda parte. Está muito claro que esse jogo é internacional, não se esgota nas fronteiras.

Quando eu vi, três dias depois da eleição no Brasil, um monolito claro de rejeição de todo o mundo em relação às manifestações nas estradas e na frente dos quartéis, a primeira manifestação distinta foi o Tucker Carlson na Fox News. Há interesses, fora do Brasil, em desestabilizar alguns governos e encorajar outros. Neste sentido, Bolsonaro é o cavalo em que alguns interesses externos influentes resolveram apostar suas fichas. Quando ele for inviabilizado, haverá um outro. E o repertório da confecção das bolhas e da desqualificação da ordem institucional vai ser mobilizado de maneira idêntica, de novo.

Algo que modifica a equação, neste momento, é que o Lula é um pop star do multilateralismo. Todo o aparato institucional, da governança global multilateral, ama Lula. Talvez nenhum outro líder com a mesma capacidade de projeção abrace tão enfaticamente as instituições e os procedimentos multilaterais internacionais, mesmo quando os critica.

Lula é a cara do multilateralismo vocal inteiro. Neste momento, como o governo americano é democrata, assediado pelo poder do [ex-presidente dos EUA Donald] Trump, que controlou o Partido Republicano, para os Estados Unidos, ok: antes Lula do que Bolsonaro.

A eleição do Lula vai ser permanentemente acusada de ter sido roubada, vamos ouvir isso para o resto da vida, da mesma maneira que os americanos ouviram indefinidamente que Obama era muçulmano. É a mesma coisa, a mesma turma, os mesmos interesses. O preocupante é que o Brasil é apenas um peão nesse tabuleiro. Mas Lula, pessoa física, como liderança, tem nesse tabuleiro um peso maior do que o Brasil. Basta ver a reação internacional agora na COP ao discurso dele. Ele vocaliza de maneira eficaz uma adesão à ordem institucional internacional e ao multilateralismo que se contrapõe à Fox, à rede do [Rupert] Murdoch, a esses caras que têm em Trump uma voz nesse momento, com repertório estratégico de desqualificação. A lógica da desinformação tem a ver com isso, porque esse pessoal tem que se confrontar com todo um aparato internacional de uma ordem instituída.

Então você tem que desqualificar a institucionalidade, e por isso precisa criar uma bolha de ressonância de desinformação que produz desconfiança com todo o establishment: você desconfia de vacina, da OMS, de tudo, vai pelo negacionismo, desqualificando a ordem internacional como globalista, comunista, gayzista.

Lula, com seu jeito confiável e relativo sucesso na vocalização de interpelação, pela esquerda, da ordem multilateral, se tornou um inimigo. O petismo virou o alvo a ser abatido. Isso aconteceu de 2013 a 2019, mas teve a reviravolta, e teve a reviravolta também nos Estados Unidos… Eu não consigo mais pensar o caso brasileiro isoladamente. Examinar com realismo as perspectivas de evolução da cena política brasileira nos próximos anos exige que a gente incorpore essa dimensão. Enxergaríamos melhor, desde 2013, se tivéssemos incorporado isso.

As respostas institucionais dadas pelo Tribunal Superior Eleitoral e Supremo Tribunal Federal, neste cenário que aponta no Brasil, ainda que controversas e polêmicas, exerceram um efeito de contenção?

Bruno Pinheiro Wanderley Reis Esse é o tamanho da encrenca em que estamos metidos. Todo mundo está fazendo apostas. Ninguém pode se dar ao luxo de simplesmente ligar no automático um conjunto de procedimentos, porque estamos no limiar da violência. Sim, as instituições funcionam, até o dia em que as pessoas começam a se matar. E mesmo quando elas estão se matando, tem base institucional operando em alguma medida. Não se trata disso. A pergunta se as instituições estão funcionando normalmente não admite o binarismo, do sim ou não. As instituições têm procurado funcionar num ambiente hostil, o que não é irrelevante. E, sobretudo, procuraram penosamente funcionar nesses quatro anos sob um presidente hostil. Temos uma pessoa ocupando a função institucional crucial, de Presidente da República, chefe de estado e de governo, que usando as prerrogativas institucionais dessa posição procura solapar o funcionamento de todas as instituições.

Isso basta para ilustrar a complexidade do problema. Eventualmente instituições são utilizadas umas contra as outras. O Supremo foi muito mais proativo do que deveria ter sido no período que vai de 2005 até 2018, quando cai a ficha de que estavam numa encrenca medonha.

Desde o mensalão, eles só conseguiram condenar os políticos que resolveram condenar mudando a jurisprudência. A condenação do Lula foi uma lambança medonha: Carmen Lúcia mudando a pauta para evitar julgar alguns casos [presidente do Supremo em 2018, ela represou o julgamento sobre a constitucionalidade da prisão em segunda instância para que um recurso de Lula fosse julgado antes], Rosa Weber tinha uma inclinação quanto ao mérito de uma questão e resolve fazer outra coisa [a ministra rejeitou o recurso de Lula, impedindo-o de disputar a eleição daquele ano e depois votou pela inconstitucionalidade da prisão em segunda instância], general Villas Bôas dando palpite [Comandante do Exército, ele ameaçou uma intervenção na véspera do julgamento do caso do petista]. Ali eles já estavam afundados na confusão que ajudaram a criar ao não impor os limites processuais usuais sobre ações do mensalão e principalmente da Lava Jato. Passou a ser uma causa meritória em si mesmo a ideia de facilitar o enfrentamento da corrupção. Essa é uma decisão política, não jurídica.

Trouxeram para o meio do plenário do Supremo a confusão do toma-lá-dá-cá político. Chegaram ao paroxismo da condenação em segunda instância. Como o Supremo se permitia mudar uma questão tão central como essa a cada seis meses, o arbítrio deles, absolutamente desconectado do que estava escrito na lei, resolveu se o ex-presidente podia ser candidato ou não. E é só porque eles resolveram que Lula não podia que o Bolsonaro se elegeu.

Em 2022, o TSE tentou botar limites. Bolsonaro, muito mais do que qualquer outro governante, ultrapassou de longe todos os limites institucionais, porque não está nem um pouco comprometido com a legalidade. Então na hora que o TSE administra uma eleição em que Bolsonaro disputa a Presidência, o tribunal faz o tempo todo uma conta de qual a contenção tem que fazer e qual o tipo de excesso poderiam permitir que Bolsonaro fizesse. Se eles simplesmente fossem aplicar a letra da lei, impugnariam Bolsonaro, só que eles não têm como fazer isso em sã consciência sem botar em risco todo o processo, com 50% da população querendo votar nele. O TSE fez uma aposta: o melhor caminho ainda é você ter uma eleição que ela consiga acabar. Uma eventual vitória do Bolsonaro deixaria, realmente, todos os controles profundamente debilitados.

Não sei se todos os 11 [ministros do Supremo] têm clareza sobre esse momento. O Alexandre de Moraes tem, o Gilmar Mendes tem. Eles estão operando, informados por uma leitura política do quadro.

Eu prefiro um Supremo como tribunal constitucional, que devia ter 11 ministros com cara de pedra aferrados à letra da lei, e que deixa o mundo se acabar lá fora. Azar para o clamor das ruas. Mas isso já não foi o que fizeram desde 2008. Eles moveram as balizas do jogo o tempo inteiro e, ao fazer isso, entraram na chuva.

Como avalia o papel do Alexandre de Moraes nesse processo?

Bruno Pinheiro Wanderley Reis Ele jogou duro, tem sido duro digamos na interpretação da lei. Ele é proativo. Mas é algo que tem sido normalizado por uma postura proativa do Supremo por décadas. Isso nos deixa vulneráveis exatamente por quê? Bota o árbitro final da questão como um ator político. Basta ver, nesse momento, a fúria do bolsonarismo contra os ministros do Supremo. Seria melhor que os ministros do Supremos estivessem imunes. Seria melhor que o Supremo fosse percebido como externo a isso. Não é e não vai ser mais tão cedo.

O PL, partido de Bolsonaro e com a maior bancada eleita, não reconheceu o resultado da eleição. Que consequências tal atitude pode ter nesse tipo de relação institucional de um partido associado à extrema direita?

Bruno Pinheiro Wanderley Reis É difícil reconhecer Valdemar Costa Neto [presidente do PL] nesta posição. Vai bancar essa? Vai até o fim com isso? Ele sempre foi um coadjuvante, sem organicidade interna, dependente de uma da acomodação que o status quo. O Brasil pode evoluir para um quadro parecido com o dos Estados Unidos, mas talvez o que nos salve da sabotagem que o Partido Republicano promove há 40 anos contra o democratas é o fisiologismo do centrão.

Neste momento talvez o Valdemar tenha uma espécie de dilema e não queira abandonar nenhuma das duas canoas inteiramente. Como Bolsonaro foi para o PL, ele acabou tendo na mão agora o maior partido. Isso traz um monte de desafios. O primeiro é o seguinte: esse maior partido é bolsonarista raiz? Talvez ele avalie que a vasta maioria dos deputados do partido estariam propensos a fazer oposição de pronto. Aí então o que ele precisa é coesionar essa bancada e tentar capitalizar. Nunca foi o que Valdemar fez na vida. Tem que ver como é que ele se sai nesse novo papel, se ele vai perseverar. Ele pode também eventualmente fazer jogo duplo. Caso Bolsonaro puxe o PL radicalmente para a direita, vai ter um monte de gente saindo do partido para aderir ao governo. É um partido em processo de metamorfose, que tem Bolsonaro como presidente de honra e Valdemar procurando cultivar sua posição de liderança influência ali dentro. Temos que ver como isso vai evoluir.

Como interpreta a reação de Jair Bolsonaro, de reclusão, após o resultado do pleito? Acredita que há algum espaço para novas articulações golpistas antes da posse de 1º de janeiro?

A reclusão dele é a medida da sua falta de estatura. Ele é o fantoche de gente influente, ele é o cavalo escolhido por pessoas que têm repertório de ação e um playbook apto a desestabilizar sistemas políticos mundo afora. Acharam que ele era um cara bom de se apostar. Certamente, se você realmente tem a desafeição completa pela ordem institucional, que foi o ponto em que chegamos em 2018, as pessoas estavam topando votar em qualquer coisa que fosse suficientemente exótica. Quando você olha para Jair Messias Bolsonaro e seu círculo íntimo, seu núcleo duro, seus filhos, as franjas das milícias dos subúrbios do Rio de Janeiro, não são esses caras que vão montar altas estratégias de comunicação. Eles não têm massa crítica para isso. Não são eles que anteviram possibilidades onde ninguém estava olhando. Eles estão executando o manual que existe por aí, que vem pronto.A decomposição do quadro político partidário institucional, a desafeição eleitoral popular tornaram Bolsonaro possível. Neste momento, é a primeira vez na vida que perdeu uma eleição. Tudo indica que ele não está sabendo lidar com isso, embora tenha saído maior do que o prognóstico mais realista seis meses antes autorizaria esperar. Ele tem um capital político apreciável. Caso escape de processos judiciais mais ou menos ileso, ele tende a voltar em 2026 relativamente forte. E não faltará apoio para isso, inclusive externo.

Por sorte para os democratas, Bolsonaro não parecia estar à altura da tarefa. Uma parcela larga do Brasil está doidinha por um ditador. Nossa sorte é que o Bolsonaro não parece apto, ele não consegue entregar isso pessoalmente. Talvez outra pessoa acabe fazendo isso. Ou talvez simplesmente a direita que emerge, puxada por Bolsonaro, acaba se reorganizando em torno de outra liderança de maior alinhamento institucional.

Eu acho que a polarização nunca mais vai se dar nos termos do período que foi até 2012, com PT contra PSDB. Nunca mais vai ser isso. Vem uma direita mais intolerante, mais autoritária nos costumes, com componentes religiosos. Dá até para imaginar uma direita, ainda que mais dura do que o tucanismo paulistano, competitiva eleitoralmente, com grande voto evangélico, com simpatia em setores militares, como militares reformados liderando, sem ser necessariamente golpista. Mas o jogo que está sendo jogado nesse momento é o da desestabilização potencialmente violenta da cena política.

Lula assume a transição nesse tensionamento com o mercado. O petista deixa claro que a questão social se sobrepõe à responsabilidade fiscal. Os agentes de mercado tratam Lula de forma diferente do que tratavam Bolsonaro, que estourou o teto de gastos repetidas vezes em sua gestão? Por quê?

Bruno Pinheiro Wanderley Reis Isso vale para o mundo todo, essa intolerância maior com a esquerda. Nos EUA, os democratas sofrem mais com isso do que os republicanos. Quando um republicano corta impostos e faz três guerras ao mesmo tempo, é porque a América precisa. Quando um democrata aumenta um pouco os gastos em infraestrutura e política social é irresponsabilidade fiscal, a gastança vai gerar inflação e estagnar a economia. Trabalhistas apanham mais do que conservadores na Inglaterra, no que diz respeito à economia fiscal. Para mim é muito claro, inclusive olhando para trás, com as experiências do Lula na comparação com a Dilma [Rousseff], que a esquerda, mais do que a direita, precisa ser mais realista que o rei em política econômica. A esquerda precisa fazer alguns gestos de concessão à ortodoxia para ter segurança e poder para ir em busca dos seus objetivos setoriais táticos em políticas específicas.

Quanto ao mérito da questão, é claro que as duas coisas estão imbricadas. Você só vai ter política social sustentável se tiver uma situação fiscal como horizonte razoável, que te permita girar a dívida pública com prazos longos e juros baixos. Agora, o teto de gastos, tal como aprovado em 2016, é um horror. É óbvio que isso tinha que estar vinculado ao crescimento do PIB, e não da inflação. Tanto é que ele é impraticável.

Era claro que quem ganhasse eleição teria que propor uma PEC para autorizar gastos acima do que o teto consentiria no ano que vem. O resto é firula da demarcação de território de parte a parte. Lula sabe que algumas coisas irritam o mercado, mas conta que depois algum emissário fará gestos para acalmar. E ele precisa fazer gestos para a população que ele precisa atender, precisa deixar claro que vai ser atendido. Tem um balé aí de intimidação mútua.

A esquerda, por definição, joga um jogo político fora de casa, joga morro acima, com vento contra. Por quê? Porque ela, por definição, tem limites poderosos, ela quer fazer redistribuição, quer tornar os pobres menos pobres, o que significaria tornar os ricos menos ricos, pelo menos. A agenda da esquerda é desconcentrar a renda. Por mais moderado que o petismo seja, um governo de esquerda fala do outro lado da mesa com o capital, com o setor financeiro e com o setor produtivo. Não por acaso ele procura legitimar essas políticas criando mesas largas, faz conselho, faz conferência disso, daquilo, para gerar confiança mútua. A esquerda depende um pouco disso porque ela não tem conexão orgânica com o andar de cima. A conexão dela é improvisada, porque por acaso ela está no poder. Mas ela não é da mesma banda da mesa. Até 15 dias atrás era tudo era uma grande lua de mel. É só materializar-se e as tensões aparecem. É do jogo. Essa convivência é necessariamente conflituosa, ou então não seria de esquerda.

Neste jogo, o PT abre mão do Ministério da Fazenda?

Bruno Pinheiro Wanderley Reis Um dos ministros da Fazenda mais bem-sucedido foi Antonio Palocci. Era um político, prefeito de Ribeirão Preto, ministro da Fazenda improvável, mas por ter lastro político e ser próximo do Lula ele pôde montar uma equipe que era disciplinarmente heterogênea, gente próxima da esfera, tucana, de quem ele era fiador. A equação que que deu mais certo foi um ministro político do PT com peso próprio e com uma equipe técnica diversificada. Se você bota um ministro da Fazenda externo, ele vai precisar criar canais de comunicação com a esquerda com PT, ou ele não vai conseguir fazer política econômica ou ter o respaldo do próprio Lula. A comunicação entre Lula e esse ministro precisa fluir para ele ter respaldo do presidente em decisões técnicas eventualmente impopulares que precise tomar. Precisa equacionar politicamente a ocupação do Ministério da Fazenda. Não adianta botar alguém do mercado goela abaixo do Lula que vai durar três meses.

É maior o desafio de montar o ministério na área econômica ou o da Defesa?

Economia. É onde os governos morrem. Técnico de futebol cai quando o time perde, e governos caem quando a população empobrece. É nevrálgico. E como governos pela esquerda já têm algum embate natural com o status quo, a política econômica tem que estar calibradinha. Não pode ter disparada inflacionária. A direita pode se permitir esses riscos. A esquerda não. A mudança do humor dos mercados é sintoma disso. Muito mais delicado do que a Defesa.

Na Defesa eu diria que precisa de um interlocutor confiável. Alguém que, tendo chegado lá, abre conversa com o Alto Comando. Conversa com esse pessoal em termos constitucionais. Ponto. O Exército está receptivo ao flerte golpista, mas eles não estão prontos para botar tanque na rua e dar golpe. Não é isso que vai acontecer. Eles estão seduzidos pelas prebendas de estar no poder, de ocuparem cargos na Esplanada. Mas sabem que isso tem perna curta e que expõe o próprio Exército a dificuldades políticas.

O processo de transição de governo tem 30 grupos temáticos e mais 300 pessoas na equipe. Como enxerga a transição em termos práticos e seus possíveis resultados?

Bruno Pinheiro Wanderley Reis É o jeito PT de fazer essas coisas, para o bem e para o mal, e isso acaba sendo um lastro. O PT tem esse recurso, que outros não têm, que são milhares de pessoas espalhados pelo país inteiro com conexões orgânicas como partido e trabalho profissional sobre esses vários campos. É assim que o PT aprendeu a fazer, também governando, com os conselhos, as conferências, botam milhares de pessoas. Eles têm know how para fazer isso.

E pode resultar num ministério com cara de frente ampla, de fato?

A gente erra procurando o ministério na transição. A transição vai produzir horizontes de ação, e quem ocupar um ministério vai ser alguém em função de coordenação no grupo, que eventualmente já tinha peso político. E além dessas pessoas haverá gente que virá do Congresso, ou da política partidária nos Estados.

Lula sabe que o que ele precisa para estabilizar-se é uma legitimação internacional forte e o respaldo de todo mundo que for antigolpista nesse momento. Todo mundo que estiver aderindo à Constituição é correligionário. Disso dependerá a sobrevivência do próximo governo. Veja quão conservadora foi a política econômica do Lula em 2003. Aquilo não estava em nenhum programa, nenhum documento partidário. Palocci conduziu o maior corte de gastos da história. O que vem agora não é corte, por causa das circunstâncias. Se o Lula já deu sinais de que era sensível para os riscos da situação lá em 2003, agora nem se fala. Ele precisa ganhar espaço fiscal para fazer a canalização de recursos para a base da pirâmide. Foi isso que ele fez em 2003, e até hoje há uma lealdade forte das pessoas mais pobres ao Lula. Se o jogo continua de pé e Bolsonaro perdeu, e a Constituição de 1988 permanece uma referência importante, é porque os pobres de 2004, 2005, 2006, 2007, votaram na Constituição, ao votar em Lula. É graças ao povão, digamos assim, que ganhamos uma segunda chance

Fonte: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2022/11/21/%E2%80%98Lula-enfrenta-um-jogo-de-desestabiliza%C3%A7%C3%A3o-e-viol%C3%AAncia%E2%80%99 

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