sábado, 26 de novembro de 2022

‘O Mago do Kremlin’ dá aula de como se fazer política

 Por Irineu Franco Perpétuo

Romance do italiano Giuliano Da Empoli conta a vida do ex-braço direito de Putin, Vladislav Surkov 

No momento em que a Rússia se envolve em guerra na Ucrânia, sai no Brasil um romance sobre um dos artífices deste conflito. Em O Mago do Kremlin, o italiano Giuliano Da Empoli debruça-se sobre a figura Vladislav Surkov, que foi auxiliar de Putin até 2020.

Embora o trocadilho “Rasputin de Putin” (ambos os nomes são paroxítonos) seja tentador, não se pode dizer que Surkov tenha desfrutado de protagonismo análogo ao do guru místico de Nicolau II. Putin jamais se fiou exclusivamente em um acólito e, para o bem ou para o mal, não é uma figura tão manipulável quanto o último tsar da dinastia Románov – tanto que se livrou do conselheiro há dois anos.

De qualquer forma, ele participou do núcleo duro do poder, e esteve envolvido com o separatismo que começou a vicejar no leste da Ucrânia em 2013. Empoli faz dele o modelo do protagonista de seu livro – Vadim Baranov, que presta um longo depoimento em primeira pessoa a um acadêmico ocidental.

O presidente russo Vladimir Putin, ao fundo, fala com seu braço direito à época, 2019, o político Vladislav
O presidente russo Vladimir Putin, ao fundo, fala com seu braço direito à época, 2019, o político Vladislav  Foto: SERGEI KARPUKHIN/REUTERS

A partir daí, desfilam pelas páginas da obra – além do próprio Putin, tratado como Czar, com letra maiúscula – personagens como Mikhail Khodorkóvski (o magnata da Yukos, empresa de gás e petróleo, que foi encarcerado pelo regime e, depois de solto, exilou-se em Londres), Boris Berezóvski (ricaço que apoiou Putin e, após romper com este, também partiu para o Reino Unido, onde se suicidou) e Ígor Sétchin (conselheiro de Putin e chefão da Rosneft, empresa que absorveu os principais ativos da Yukos depois da queda de Khodorkóvski em desgraça). Vemos como, enquadrando e descartando os figurões que cultivavam a ilusão de poder controlá-lo, Putin consolidou, a partir dos escombros da presidência de Iéltsin, um novo esquema de poder.

Se comparada com outros lançamentos recentes que falam da Rússia contemporânea, a radiografia de Empoli da ascensão do putinismo encontra-se muito mais próxima da prosa direta e jornalística de Keith Gessen em Um país terrível do que do delirante e visionário O dia de um Oprítchnik, de Vladímir Sorókin. Se este último faz literatura no mais alto nível, Empoli, a exemplo de Gessen, procura antes iluminar aspectos da realidade.

Mais do que um romance sobre a Rússia, contudo, O Mago do Kremlin cresce se lido como um ensaio sobre a forma atual de fazer política no mundo. Difícil não encará-lo como uma espécie de desdobramento de Os Engenheiros do Caos, de 2019, também lançado no Brasil pela Vestígio.Neste livro, Da Empoli debruça-se especialmente sobre o fenômeno do Movimento 5 Estrelas, em sua Itália natal, mas também aborda a ascensão ao poder de Donald Trump, Viktor Orbán e Bolsonaro para analisar o papel dos algoritmos nas eleições contemporâneas.

O monge Siberiano Rasputin, que ganhou a fama de místico no império russo, quando aconselhava o Czar
O monge Siberiano Rasputin, que ganhou a fama de místico no império russo, quando aconselhava o Czar  Foto: Acervo Estadão

Seu Surkov/Baranov soa como mais um ator consciente desse tipo de jogo. Em O Mago do Kremlin, Da Empoli discorre sobre Nós (1921), a distopia de Ievguêni Zamiátin (1884-1937) em que Orwell se inspirou para escrever seu 1984: Nós não descrevia apenas a União Soviética, ele narrava o mundo liso e sem asperidades dos algoritmos, a matriz global em construção e, diante dela, a irremediável insuficiência de nossos cérebros primitivos. Zamiátin era um oráculo, ele não se dirigia unicamente a Stálin: ele alfinetava todos os futuros ditadores, os oligarcas do Vale do Silício e os mandarins do partido único chinês”.

Mais adiante, ele põe na boca do protagonista as seguintes palavras: “não queremos converter ninguém, Evgueni, apenas descobrir no que eles acreditam e convencê-los ainda mais, entende? Divulgar notícias, argumentos verdadeiros ou falsos, não importa. Fazer com que fiquem enraivecidos. Todos. Cada vez mais”.

Algumas páginas adiante, ele arremata: “o indivíduo solitário, o livre arbítrio e a democracia se tornaram obsoletos: a multiplicação dos dados transformou a humanidade num único sistema nervoso, um mecanismo feito de configurações padronizadas, como uma nuvem de pássaros ou um cardume de peixes”.

*Jornalista cultural, dedicado à música erudita, e tradutor literário brasileiro. Wikipédia

Fonte: https://www.estadao.com.br/alias/o-mago-do-kremlin-da-aula-de-como-se-fazer-politica/

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