Imagem: Keith Negle/This American Life
Capitalismo inventou uma ideia particular de “natureza humana” e esmagou todas as demais. Daí sua identidade com o racismo e o patriarcado. Também por isso, mudar o mundo exigirá outras mulheres e homens — que, no entanto, teremos de ser nós mesmos…
A humanidade também modifica a si mesma quando interage e transforma a natureza da qual faz parte. Conforme elucidado por Marx, o trabalho é um processo que diferencia os seres humanos das demais partes da trama da vida pois somente à espécie humana ele pode ser um processo teleológico. Isto é, mediante o qual os seres humanos concretizam a sua relação metabólica com a natureza a partir de projetos prévios; ações volitivas, planejadas e de reordenamento de seu substrato material e condição inalienável de existência, mas também de desenvolvimento de certas potencialidades humanas. Historicamente, é pelo processo de trabalho que os humanos desenvolvem, ou, ao menos, podem criar condições objetivas ao desenvolvimento de aptidões próprias de sua espécie, como a criatividade e a inteligência. Sem maiores ressalvas, portanto, parece razoável asseverar-se que é pelo processo de trabalho que os seres humanos criam condições objetivas ao desenvolvimento subjetivo.
Por detrás desse raciocínio, repercute o reconhecimento do caráter pedagógico e social do processo de trabalho enquanto constituinte de humanidade. Mas também de que distintas formas sócio-históricas atribuídas à força social de trabalho forjam particulares versões de seres humanos distintos, assentes em mapas cognitivos diferentes. Grosso modo, essas orientações cognitivas – também chamadas cosmovisões – emanam das formas pelas quais nos organizamos em sociedade para nos reproduzirmos enquanto espécie. Contudo, isso tampouco as impede de responder por um particular sistema de conhecimento e de compreensão de mundo que é também de construção de mundo. Na medida em que integra um determinando projeto civilizacional, toda cosmovisão encerra também uma dimensão construtivista. Ainda que imanentes das relações sociais de produção, modelos civilizacionais costumam recorrer a algum tipo de sistema de conhecimento que funcione como uma forma de consciência, a exemplo da ciência ou da religião. Mesmo quando invertidas, mistificadoras ou absurdas, estas formas de consciência não deixam de ser objetivas, pois orientam a ação humana na medida em que lhe significam.
Quando lançou as bases do liberalismo econômico em contraposição ao que entendia como amarras da regulamentação mercantilista, Adam Smith apoiou-se na doutrina do direito natural. Para o filósofo escocês, o sistema econômico era governado por leis naturais que não seriam mais do que a extrapolação de uma suposta natureza humana. Ontologicamente entendendo a sociedade como a soma mecânica de indivíduos natural e racionalmente egoístas, Smith deu vazão a epistemologia do individualismo metodológico à apreensão do funcionamento do sistema econômico. Fundava-se, assim, a Ciência Econômica, como um campo autônomo e supostamente neutro do conhecimento científico. Na proposição teórica de Adam Smith, os fenômenos econômicos possuem regularidade natural pois são nada mais do que reflexos de inclinações naturais e imutáveis do indivíduo. Dessa forma, se o sucesso ou o fracasso econômico atrelava-se ao cumprimento ou à violação dos imperativos do direito natural, era simplesmente porque havia uma suposta natureza humana que não deveria ser obstaculizada por interferências artificiais. Como corolário, para a escola de pensamento econômico fundada por Adam Smith é preciso liberar as leis da economia dos grilhões da política, pois somente assim o progresso econômico pode abrir uma via para si mesmo.
O pensamento de Smith era progressista para sua época, assim como a burguesia europeia ascendente que naquele momento lutava contra o poder aristocrático do antigo regime e cujos interesses o pensador escocês defendia. Contudo, o que Smith, posteriormente David Ricardo e outros acólitos do liberalismo econômico não perceberam era simplesmente que aquilo que entendiam como natureza humana imutável, logo, supostamente a-histórica, não era senão produto de uma determinada forma sócio-histórica de se organizar a sociedade. A divisão social do trabalho – que trazia fenomenais ganhos à produtividade e “riqueza” às nações – não era a manifestação de uma imutável essência dos seres humanos, mas resultado da forma histórica pela qual estes concretizavam sua relação metabólica com a natureza. Definitivamente, no sistema de conhecimento do liberalismo econômico impera uma inversão da realidade. Seus defensores não percebem que se os seres humanos têm “inclinação à troca” é porque vivem numa sociedade cujo comércio de mercadorias funciona como principal elo social; não o contrário, como equivocadamente aparece em sua teorização da realidade. No entanto, mesmo invertida, essa forma de consciência não deixa de ter sua objetividade – por mais distorcida que esteja.
Ideologicamente orientada por uma forma de consciência invertida desde a raiz, o modelo europeu e ocidental de civilização moderna se desenvolve consoante à visão de mundo de que os seres humanos seriam senhores de uma grande fonte de “recursos naturais”, disponíveis ao seu bel prazer e cuja melhor forma de aproveitamento seria a sua transformação em dinheiro. Para a razão instrumental, própria da modernidade, a natureza não é muito mais do que uma inesgotável fonte de recursos naturais, aproveitáveis em processos de transformação cujo objetivo principal é a obtenção de lucro. É claro que a natureza importa nessa visão de mundo, especialmente enquanto puder ser transformada numa relação social de exploração chamada capital. Todavia, vale lembrar que essa transformação requer a mercantilização de suas partes arrancadas do todo, e de que isso acontece, no mais das vezes, sem maiores considerações quanto ao bom funcionamento desse todo. Para especialistas de proa – como Enrique Leff – a emergência climática que atravessamos emana justamente dessa episteme.
Necessário recordar, contudo, que a ampla mercantilização da natureza não é um processo viabilizado apenas mediante a transformação da natureza externa aos seres humanos em mercadorias, mas também a partir da transformação de sua natureza interna – especialmente a sua força de trabalho. Aí reside o fundamento do capitalismo: na transformação da natureza inorgânica, mas também orgânica dos seres humanos em mercadorias. Porém, se esse processo só poderia completar-se a partir de um modelo de organização social da produção que hegemonizasse a mercadoria enquanto forma da força social de trabalho, vale atentar que ele só tomou lugar em nossas vidas a partir de muita violência. Uma série de agressões, acometimentos e espoliações capitaneadas pela ação decisiva de Estados capitalistas que não renunciaram ao monopólio da violência para subjugar outras versões de humanidade, subjetivamente projetadas como subalternas e/ou incivilizadas. Como muito bem demonstrou – dentre outros – o historiador britânico Eric Williams, o racismo e o colonialismo estão inscritos em letras garrafais na história do capitalismo desde os seus albores, quando o próprio tráfico de pessoas escravizadas do sistema colonial serviu para conformar uma economia triangular ultramarina (Europa, África e América) que alimentou a acumulação do capital comercial que mais tarde impulsionaria a Revolução Industrial. Não fosse a colonização, muito provavelmente a Europa não teria reunido forças para se tornar o centro hegemônico da economia-mundo capitalista em seu estágio inicial.
Mas não é apenas na transformação da natureza orgânica e inorgânica do ser humano em mercadoria que reside o fundamento do capitalismo. Pelo menos desde que Marx desmistificou o processo de acumulação originária sabemos que a violência também o é. Porém, a violência aberta contra formas de sentir e de pensar – ou seja, de existir – diferentes daquela que compõe o núcleo da forma sujeito moderno parece ter cristalizado nessa mesma forma sujeito de maneira a forjar-se uma versão de ser humano que tende a ser complacente com ações violentas, naturalizando-as em muitos casos. Sobretudo quando estas ações são dirigidas contra seres humanos relegados a uma existência subalternizada no estatuto de sujeito moderno. Quanto a isso, importa destacar que se o ideal moderno tem uma matriz ocidental, masculina e branca, tudo aquilo que destoa desse cânone precisou ser arrancado desse modelo ideal de sujeito para constituir a alteridade que lhe reafirma.
Há, portanto, sempre um outro a ser negado, uma alteridade construída de forma negativa e que reforça a subjetividade humana que se forja em meio à inversão da realidade que caracteriza o projeto de civilização europeu ocidental que muitos chamam modernidade. Se por um lado a constituição do estatuto de sujeito moderno requer necessariamente a negação de um outro que é tido como menos evoluído; é imperioso reconhecer-se, por outro, que essa estigmatização carrega a violência e o controle não apenas sobre corpos humanos oprimidos e formas de existência relegadas a uma condição subalterna, mas também que isso acontece com o claro objetivo de esbulho dos comuns e da própria energia vital dessas formas de existência, cujos territórios deixam de existir enquanto expressões alternativas do metabolismo humanidade/natureza para servir à acumulação capitalista, portadora do modelo de civilização europeu ocidental em seu afã universalista. De fato, não é nenhuma novidade que o racismo contenha razões econômicas. E a história do colonialismo, da subjugação e escravização de pessoas não brancas – que é também de constituição da economia-mundo capitalista – atesta essa triste realidade. O que costuma ser muito menos abordado é como a doutrina do liberalismo escamoteou essa situação, flagrantemente antagônica ao seu discurso de liberdade e emancipação humana.
Porém, não foi apenas aos relegados à condição de selvagem e/ou desalmado que a doutrina do liberalismo mostrou o lado mais cruento da civilização burguesa. Basta lembrar que foi combinado à corrida imperialista por parte das grandes potências que o laissez-faire dogmático conduziu as sociedades capitalistas a duas guerras mundiais e a uma profunda depressão econômica (1929). Consequentemente, está muito longe de um disparate afirmar-se que as políticas do liberalismo econômico também falharam quando tiveram que entregar o que prometiam para pessoas que tampouco destoavam do ideal de sujeito da modernidade. E talvez seja oportuno relembrar que cerca de um ano antes do estouro da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente no dia 26 de agosto de 1938, em Paris, o Congresso Walter Lippman reuniu um conjunto de destacadas inteligências com a missão de encontrar soluções ao insucesso de seus dogmas liberais. Desde então, foi como uma espécie de força dormente que os defensores do liberalismo espreitaram vigilantemente o momento oportuno de se reerguer, que sobreveio justamente em meados dos anos 1970. Ante a patinada das economias capitalistas, voltaram a ressonar com vigor as trombetas dogmáticas do laissez-faire, que não titubearam em anunciar o principal responsável pela derrubada das taxas de lucro e a escalada da inflação: o Estado de bem-estar social. Além de produzir o monstro da estagflação, o Welfare State onerava demasiadamente a sociedade com suas políticas redistributivas e seu sistema de garantias sociais, ao passo que desincentivava o trabalho e incentivava a preguiça na classe trabalhadora – bradavam os defensores do mais “novo” dogma neoliberal.
Então renascidos do ostracismo em que haviam mergulhado depois de que seu ideal de sociedade se concretizara em duas guerras mundiais, os defensores da ideologia liberal voltavam à carga justamente contra o regime de regulação que resgatara as economias capitalistas dos escombros. A artilharia liberal apontava especialmente ao sistema de garantias sociais e contra todas as formas de organização da classe trabalhadora. Através de uma narrativa requentada, os ideólogos neoliberais não se cansavam em tentar transformar em obstáculo do progresso o Estado-providência, que se tornara uma espécie de doença ou mal a ser combatido sem tréguas. E talvez um dos ataques mais estrategicamente elaborado da reinvestida (neo)liberal veio sob a forma de discurso normativo, que assumiu desde muito cedo ares de mantra. A ascensão de Volcker, Thatcher e Reagan ao centro do poder político não trouxe à cena (ou ao campo de batalha) apenas a diplomacia do dólar forte e um impulso decisivo à mundialização financeira a partir das reformas estruturantes (leia-se neoliberais), recomendadas pelo Consenso de Washington e impostas por organizações “multilaterais” como o Fundo Monetário Internacional e o Bando Mundial. Subjugada aos interesses dos detentores da riqueza mundial que se tornara cada vez mais concentrada sob a forma monetária, a “virada conservadora” que partiu do sistema nervoso central do capitalismo tampouco deixou de apelar fortemente para um discurso normativo e moral, inapelável sob pena de obstruir-se o caminho natural do progresso (dizia-se mais uma vez).
Com base em diligente trabalho de propaganda, rapidamente os think tanks do neoliberalismo difundiram um carcomido, porém repaginado mapa cognitivo no imaginário não apenas de economistas, políticos e formuladores de políticas públicas, mas também de pessoas vulneráveis, por vezes perdidas, muitas vezes sem emprego e carentes de um discurso que lhe explicasse o mundo em “mutação” – e neste a desgraça socioeconômica que lhes acometia.Exaustivamente repetido para que se tornasse uma verdade, o mantra afirmava que era urgentemente necessário reduzir o “custo do trabalho” para o empregador, mas também que não existia “almoço grátis” e que a pobreza era o justo castigo pela indolência ou pela falta de iniciativa individual empreendedora. Fortemente recomendada como conhecimento de ponta por instituições como o Banco Mundial, ganha terreno uma ideologia que vinha em elaboração desde os anos 1960 por economistas neoliberais afiliados à Escola de Chicago: a “teoria” do “capital humano”. Primeiramente como explicação para o sucesso e riqueza econômica da economia estadunidense no pós-guerra, posteriormente a ideologia do ser humano como uma espécie de empresa de si mesmo desponta como modelo explicativo para as diferenças entre economias liberais avançadas e economias atrasadas do chamado Terceiro Mundo.
É necessário reconhecer, portanto, que ademais da defesa de uma ação estatal em favor da concorrência (especialmente no mercado de trabalho), da liberalização comercial e financeira e do sistema de preços de mercado como única via para o cálculo econômico capaz de apontar o melhor caminho para o progresso, o neoliberalismo apela à constituição de um modelo de ser humano supostamente tido como ideal ou mais “eficiente”. Tal qual o velho liberalismo de Adam Smith, David Ricardo e outros, o neoliberalismo de Hayek, Friedman e companhia também se apoia em um discurso moral, que sub-repticiamente não deixa de ser de conformação de um determinado mapa cognitivo. Conforme apontam os franceses Dardot e Laval, é enquanto nova razão de mundo que o neoliberalismo forja o “sujeito empresarial”, a partir de um conjunto de sanções, estímulos e comprometimentos que visam produzir funcionamentos psíquicos próprios – que devem ser sobretudo competitivos, ademais de essencialmente individualistas.
Ora, parece por demais óbvio que se o sujeito neoliberal é inteiramente imerso na competição, entendendo-a como norma comportamental exigível em todas as esferas da vida, é porque essa ideologia serve aos interesses de uma elite que concentra boa parte da riqueza mundial sob a forma patrimonial, orientando-a ao rendimento em mercados financeiros conectados mundialmente pelo poder jurisdicional de Estados aparelhados por representantes dessa mesma elite. A rigor, é através do sequestro da democracia representativa por parte do poder econômico e pelo aparelhamento dos Estados capitalistas que se conforma um mecanismo pelo qual o excedente extraído localmente de trabalhadores cada vez mais precarizados (explorados e concorrentes entre si) pode ser apropriado globalmente pelos detentores da riqueza mundial. Isto, mediante uma relação que é sobretudo jurídica. Uma relação externalizada da esfera produtiva, restrita à esfera da circulação (do valor) e pela qual uma parcela cada vez maior da riqueza social produzida pela humanidade é apropriada privadamente. Contudo, o que fica mais uma vez escamoteado por detrás de um discurso liberalista de Estado mínimo e de demonização das esferas política e pública, é que foi justamente através de um projeto de atuação política que uma elite econômica mundial logrou o objetivo de convencer os próprios trabalhadores de que era necessário reorientar tanto a ação estatal quanto o seu mapa cognitivo contra seus próprios interesses, chancelando a privatização do orçamento público pelos detentores do dinheiro, que o convertem em mercadoria já como capital, ou seja, como uma soma de valor cujo valor de uso é gerar mais-valor e que, a rigor, só existe no processo de circulação. Trata-se, então, da forma mais mistificada de capital, o capital portador de juros, aquela na qual o fetiche assume sua máxima expressão, na ideia de que o dinheiro é capaz de gerar dinheiro a partir de si próprio. E que não deixa de estar ancorada na ideia completamente absurda de que o trabalhador é um empreendedor de si mesmo.
Se, a partir da esfera política, o neoliberalismo repaginou uma ideia desastrosa do ponto de vista humanista, para vincular uma equivocada ontologia de humanidade a um conjunto de objetivos dos detentores da riqueza mundial cada vez mais concentrada e estéril do ponto de vista produtivo, talvez a superação das contradições que faz emergir requeira necessariamente uma revogação dessa ontologia. Mas também uma reavaliação criteriosa e séria das ideologias que – disfarçadas de ciência – se erguem a partir do individualismo metodológico e que não deixam de escamotear questões como o racismo estrutural e a crescente mortificação das condições físicas e psíquicas da classe trabalhadora. Além disso, talvez seja conveniente um reexame do estatuto da política na quadra histórica que atravessamos, bem como das reais, necessárias e possíveis funções do Estado na sociedade capitalista. Quem sabe o debate em torno da eficácia das políticas de austeridade fiscal não venha a ser um bom de partida para tanto? Quiçá quanto a sua capacidade de estimular a construção de uma relação metabólica humanidade/natureza que nos afaste do contexto de guerras e emergência ecológica que atravessamos e da qual possa surgir uma versão de humanidade menos assombrada pelo fruto de suas próprias mãos e menos iludida por uma falsa ideia de si e do mundo que transforma, a partir da forma de organização social do processo de trabalho.
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