quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

José Saramago: uma literatura do desassossego

Gabriela Silva *

Autor português José Saramago em visita ao Palácio Piratini no final dos anos 1990

Autor português José Saramago em visita ao Palácio Piratini no final dos anos 1990 | 
Foto: Ricardo Giusti / CP Memória 
 

Uma das mais conhecidas frases de José Saramago é “vivo desassossegado, escrevo para desassossegar”. A palavra desassossego associada de modo muito singular a Fernando Pessoa e o semi-heterônimo Bernardo Soares remete a ideia de percepção de mundo a partir de um incômodo com tudo o que cerca o indivíduo e a sua relação com os outros sujeitos. Estamos diante de uma palavra, portanto, que define a inquietude de um espírito. Nenhuma outra palavra poderia diria tanto sobre Saramago.

Estamos em 2022, celebramos 100 anos do nascimento do escritor português. Nascido em Azinhaga, interior de Portugal, de origem muitíssimo humilde, Saramago tornou-se um dos mais significativos escritores portugueses do século XX e o reconhecimento pela sua obra foi o Prêmio Nobel em 1998. 
Composta por romances, contos, poemas, peças de teatro, narrativas infantis e diários, a obra de José Saramago ganhou traduções em muitos idiomas e se tornou objeto de pesquisa, leitura e conhecimento por estudiosos e leitores no mundo todo. É uma literatura que se propõe universal e que se torna universal quando rompe com as fronteiras de pertencimento e aproximação com a identidade unicamente portuguesa e alcança diversos leitores e perspectivas. Sua trajetória como romancista inicia com "Terra do Pecado", publicado em 1947 e se encerra com a publicação póstuma de “Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas” em 2014.

Giorgio Agamben em um de seus mais conhecidos textos, O que é o contemporâneo, fala-nos sobre a natureza do escritor contemporâneo, que é aquele que percebe as sombras do seu tempo e sobre elas estende o seu olhar. Saramago fez exatamente isso, percebeu através de um olhar crítico e aguçado a constituição dos homens do século XX e mesmo que muitas das suas narrativas se voltem para um passado mais distante, ainda assim, o que baliza essas ficções acaba por corresponder no que é vivido pelo homem contemporâneo. Há uma estreita ligação entre um tempo histórico e a constituição dos sujeitos de “agora”. Como nos diz Eduardo Lourenço, Saramago é um dos filhos de Álvaro de Campos, atento e perscrutador ao que vive e o que o compõe como sujeito histórico.

“Memorial do Convento” é um dos melhores exemplos para pensarmos nessa premissa saramaguiana de compreensão da história. No romance se conta sobre a construção do convento de Mafra, promessa feita por D. João V para que fosse agraciado com um herdeiro. A narrativa apresenta uma leitura da história de Portugal centrando sua atenção nos invisíveis, nos trabalhadores anônimos que construíram o convento sem nenhum reconhecimento por seu esforço. Das páginas de Memorial do Convento emergem significativas personagens do universo do escritor: Baltasar Sete-Sóis, Blimunda Sete-Luas e o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão – inventor da passarola, alimentada pelas vontades humanas ou o éter, combustível para que pudesse voar. São, essas personagens, homens e mulheres que transitam pela história de Portugal, vivem o tempo da Inquisição, das guerras, de monarquias absolutistas que irão assentar as pedras e alicerces do convento. 

A verve crítica de Saramago não fica apenas na leitura histórica, mas afasta-se de Portugal e ganha ares de universalidade no ciclo alegórico, composto por romances que apontam para a irracionalidade do mundo do século XX, que se alinha ao mercado, ao lucro e uma competição desmedida. "Ensaio sobre a cegueira", "Ensaio sobre a Lucidez", "Todos os nomes", "O homem duplicado" e "A caverna" são alguns dos romances que compõem esse ciclo romanesco. Ensaio sobre a cegueira se tornou um dos mais importantes romances do século XX, publicado em 1995, a narrativa se desenvolve em torno de uma epidemia de cegueira que revela muito do comportamento humano voltando-se para a individualidade, a sobrevivência e a proximidade com a animalidade. 
A cegueira é uma alegoria da forma como os indivíduos contemporâneos negam a alteridade e a identidade do outro. Há uma crítica às instituições governamentais, à construção de uma sociedade egóica e que flerta com a barbárie. Nessa construção destaca-se uma das personagens mais importantes criadas por Saramago: a mulher do médico, a única personagem que não fica cega. Ela toma para si a tarefa de cuidar do grupo de cegos, mantendo a sanidade frente ao horror que apenas ela consegue ver: roubos, feridas, estupros, mortes e o apodrecimentos dos corpos e das formas de interação entre os sujeitos. 

Não é apenas a humanidade que é objeto de crítica na obra saramaguiana, também o Deus católico que tudo rege e dispõe de acordo com a sua vontade aparece em suas narrativas. “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, publicado em 1992, é uma narrativa que aponta para um Deus que é tão egoísta e narcisista como qualquer ser humano. Saramago repassa a história bíblica e revê momentos importantes do percurso que conhecemos como único e legítimo da relação entre Deus e os homens. São revistas as figuras de Maria, José, dos seguidores de Cristo, do Diabo (nem tão perverso assim) e do próprio Deus em suas escolhas arbitrárias. A publicação da obra causou em Portugal, um país eminentemente católico, um desconforto muito grande, o que teria levado Saramago a ser vetado no PEN Clube Português e a Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários para o Prémio Literário Europeu, numa proposição do subsecretário Sousa Lara.

Também em "Caim", último romance de Saramago, publicado em vida, se repete a crítica a esse Deus que escolhe a quem destina seu amor e proteção. Mais uma vez, Saramago revelaria sua visão acerca das figuras religiosas e a condução da história que a Bíblia apresenta para a humanidade. 
Toda a obra de José Saramago é habitada por uma voz crítica potente, homens e mulheres de todas as épocas são elementos importantes na construção das suas narrativas, peças de teatro e contos. São, na verdade, o elo entre o mundo das palavras, o da Literatura e o mundo dos homens, representam formas de pensar e entender a constituição no mundo e das relações com o seu tempo e a história. Epígrafes e frases que povoam o imaginário dos leitores e que se tornam chaves de leitura para romances e contos e por vezes, são norteadores de outras leituras e formas de pensar sua escrita e visão de mundo.

Sua escrita, marcada por uma peculiar forma de expressão, surge em "Levantado do Chão" e se torna uma das mais reconhecidas características da sua escrita. “Ler Saramago é difícil” dizem os leitores que estão desprevenidos quando começam a leitura de qualquer romance do escritor. A complexidade de sua obra, revela um olhar arguto sobre o ser humano e as dimensões das suas escolhas. Numa conversa com Carlos Reis, professor da Universidade de Coimbra, Saramago comentou que o que ele crítica no ser humano é o fato de que é um ser dotado de inteligência e que escolhe ser mau em vez de ser bom. E tudo isso já sabemos, está em cada frase da sua escrita, de puro desassossego e lucidez.

* Professora FURG - Campus São Lourenço do Sul (RS). 

Fonte: https://www.correiodopovo.com.br/cadernodesabado/jos%C3%A9-saramago-uma-literatura-do-desassossego-1.932126 03/12/2022

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