quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Por que a ideia de multiverso dominou o audiovisual em 2022

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 Cena da animação "Homem-Aranha: Através do Aranhaverso" 

Foto: Divulgação/Sony Animation
Cena da animação "Homem-Aranha: Através do Aranhaverso"

Emplacando grandes sucessos ao longo do ano, conceito de universos paralelos ganhou apelo diante de um público mais ansioso e mais múltiplo


Infinitos universos paralelos, com infinitas possibilidades. Essa é a definição de multiverso, ideia que surgiu na Grécia antiga, é estudada pela física teórica e dominou a cultura pop em 2022 e que deve continuar em alta nos próximos anos.

Na terça-feira (13), o estúdio Sony Animation lançou o trailer de “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso”, filme que chega em 2023. O vídeo foi o mais assistido do YouTube Brasil nas três horas após a publicação. Nele, o super-herói encontra mais uma vez diversas versões de si mesmo vindas de outros universos.

O conceito do multiverso dominou o cinema não apenas em blockbusters, mas também em obras de prestígio cotadas para o Oscar, caso de “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo.” Para psicólogos e críticos culturais, há um certo conforto em se pensar que existem outras realidades para além da nossa onde o mundo é menos complexo e menos caótico.

Neste texto, o Nexo explica como a ideia de multiverso surgiu, como (e por que) ela dominou a cultura pop em 2022 e o que a física tem a dizer sobre o conceito.
A origem do multiverso

A ideia de mundos paralelos vem da Grécia antiga. O filósofo Demócrito, do século 5 a.C., já falava em algo que se assemelha com o multiverso. Religiões do leste asiático – como o budismo clássico – aceitam a ideia de que há infinitos mundos coexistindo em paralelo.

Na metade do século 20, o termo começou a aparecer mais em debates científicos, mas ganhou força mesmo na ficção.

Autores de ficção científica, fantasia e histórias em quadrinhos usam a ideia do multiverso como uma ferramenta narrativa para expandir as possibilidades de uma determinada trama. Um personagem que morreu em uma história pode ser “revivido” sob a justificativa de que aquele indivíduo – idêntico ao falecido – veio de outro universo.

A definição atual do multiverso usada na cultura pop diz que trata-se de um conjunto de universos paralelos e que em cada um deles há pequenas diferenças em relação ao nosso. Um exemplo hipotético: haveria um universo onde a pandemia da covid-19 nunca existiu. Em outro, a paz mundial já foi alcançada. Em um terceiro, os seres humanos nunca surgiram. E assim sucessivamente. Por essa ideia, todos eles estariam acontecendo simultaneamente e poderia vir a existir alguma forma de acessá-los.
O multiverso nas telas

No final de 2021 e durante o ano de 2022, o conceito de multiverso – outrora conhecido apenas por alguns geeks mais fervorosos – ganhou o mainstream com a estreia de “Homem-Aranha: Sem volta para casa”.

O longa da Marvel traz três versões do herói – vindas de universos distintos – interagindo entre si. Meses depois, chegou “Doutor Estranho no multiverso da loucura”, aventura com elementos de terror dirigida por Sam Raimi. O multiverso vai dominar os filmes do estúdio até, pelo menos, 2026, data que marca a estreia de “Vingadores: Guerras secretas” – projeto baseado na HQ de mesmo nome que envolve o encontro de mundos distintos dos super-heróis da editora.

Na esteira, veio “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”, ficção científica cotada para concorrer ao Oscar de Melhor Filme em 2023 que usa o multiverso como uma alegoria para falar do TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). O longa foi um sucesso de crítica e bilheteria, com US$ 103 milhões de faturamento globalmente – cerca de 75% de lucro em relação ao orçamento empenhado na produção.

Na TV, novas temporadas da animação “Rick & Morty” (HBO) e da comédia “Boneca russa” (Netflix) também jogaram com a ideia. Ambas as produções foram sucesso entre público e crítica. A série “Devs” (Star+), que explora as questões filosóficas da tecnologia, também usou o conceito para capitanear sua trama.


As razões do sucesso

Pesquisadores de filosofia, roteiristas e críticos culturais acreditam que a popularidade da ideia de multiversos tem relação direta com o aumento na complexidade e das crises globais do nosso mundo – guerras, epidemias, crises institucionais, etc.

Por essa linha de pensamento, a hipótese de que há outros universos onde essas coisas não acontecem (ou acontecem em menor escala) pode trazer um certo conforto para o público, assim como a ideia de que outros mundos tiveram problemas piores do que os nossos.

“Não há nada no tempo presente que não faz com que todos nós desejemos uma realidade alternativa”, disse à CNN americana o roteirista Michael Waldron, autor de “Doutor Estranho no multiverso da loucura”.

“Explorar o multiverso permite que os personagens cumpram 
                                                    essa fantasia, para o bem ou para o mal.”


Louis Chilton, crítico cultural do jornal britânico The Independent, diz algo similar. “Essa fascinação com o multiverso é simples de se entender. A ideia de uma teia infinita de universos paralelos vai de encontro com algo fundamental na experiência humana: o sabor agridoce de pensar em como as coisas poderiam ter sido diferentes, as estradas não percorridas, a vida que não foi vivida”, afirmou em texto de maio.

Cena do filme "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo"
Foto: Divulgação/A24
Cena do filme "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo"


De acordo com Glenn Geher, professor de psicologia da Universidade de Nova York, pensar em cenários de “e se?”, onde as coisas eram diferentes, pode trazer mais calma aos indivíduos. “Ao pensar nisso, você pode conseguir focar mais no presente para construir um futuro melhor”, disse em texto do site Psychology Today.


Na visão de Stephanie Burt, professora de filosofia da literatura na Universidade de Harvard, a popularidade do multiverso pode ter relação com os diversos papéis sociais que os indivíduos do século 21 precisam desempenhar.

“Nós nos sentimos pessoas diferentes quando pulamos do Instagram para o Slack e depois para o grupo de mensagens da família. Nós mudamos como um interruptor entre nossas vidas profissionais e pessoais”, disse Burt em artigo na revista New Yorker em novembro. “Os ingleses vitorianos tinham ‘O médico e o monstro’ [livro de Robert Louis Stevenson] para abordar isso, mas a contemporaneidade exige algo mais complexo.”

Há críticos da popularidade do multiverso. Um deles é Alan Moore, roteirista que revitalizou os quadrinhos de super-heróis na década de 1980 e hoje é uma voz contrária ao gênero como um todo e seu apelo perante o público.

“[Essa popularidade] é parte de uma reação de pânico contra a complexidade cada vez maior do mundo: as pessoas ficam ansiosas e com medo, compreensivelmente, diante de um mundo que é complicado demais para ser compreendido ou controlado”, afirmou Moore em entrevista à edição brasileira de sua recém-lançada coletânea de contos “Iluminações” (editora Aleph).

    “Quando a narrativa da vida moderna se torna complexa demais para se suportar, talvez muitos se sintam a compulsão de uma narrativa mais simples que, embora seja uma bobajada delirante, pelo menos é compreensível.” Alan Moore escritor e roteirista, no livro “Iluminações” 

O multiverso na ciência

Não há evidência científica de que o multiverso seja uma realidade. No entanto, físicos têm corrido atrás da ideia há décadas.

O mais proeminente deles foi Stephen Hawking (1942-2018), cientista que foi considerado a mente mais brilhante da segunda metade do século 20.

O último artigo científico publicado por Hawking, meses antes de sua morte, propõe a ideia do multiverso como um caminho possível para a “Teoria de Tudo” – a hipótese que haveria um conjunto de leis que conseguem unir a escala macro da cosmologia e da física clássica com as descobertas em escala microscópica proporcionadas pela física quântica a partir dos estudos do alemão Albert Einstein (1879-1955).

Embora Hawking não tenha afirmado que o multiverso é uma realidade, por meio de modelos matemáticos ele propôs a ideia de que essa hipótese seria um bom caminho para a “Teoria de Tudo”.

Para Hawking, a expansão rápida do universo nos primeiros momentos após o Big Bang deve ter gerado outros universos, cada um com suas próprias leis da física e fases de desenvolvimento. Segundo o físico, a radiação cósmica que está presente em todo o espaço pode ser a chave para a descoberta.

De acordo com o artigo, se um dia satélites forem aptos a entender como a radiação cósmica se comportou durante a expansão do universo, a humanidade estará diante de fortes evidências de que o multiverso é uma realidade.

Stephen Hawkings em Israel
Foto: Yonathan Weitzman/Reuters - 10.12.2006
Stephen Hawkings em Israel
Cientista Stephen Hawking participa de conferência em Israel

O astrofísico e comunicador científico Neil DeGrasse Tyson também é um entusiasta da ideia. “O multiverso é uma consequência natural do nosso entendimento do que aconteceu nos primórdios do tempo, com universos surgindo dentro de ‘bolhas’ e o nosso sendo apenas um deles. É uma ideia que tem sido aceita por muitos astrofísicos”, disse em suas redes sociais em outubro.

Críticos da ideia afirmam que um cenário de infinitas possibilidades não permite o uso de constantes e variáveis de controle que se fazem necessárias para se encontrar evidências. “É improvável que qualquer evidência sequer possa ser encontrada”, disse o matemático sul-africano George Ellis na revista Scientific American em 2012.

Ellis também argumentou que a busca pelo multiverso envolve mais a metafísica do que a astrofísica. “Não há nada de errado em especulações filosóficas a partir de ideias científicas, mas devemos chamar isso pelo que de fato é: metafísica.” 


Fonte: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/12/17/Por-que-a-ideia-de-multiverso-dominou-o-audiovisual-em-2022

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