Em entrevista ao Cebes, cientista política
analisa a ascensão da ultradireita em alinhamento com o neoliberalismo.
Para superá-los, será preciso enfrentar o ultraindividualismo,
construindo espaços de formação política e vida comunitária
A vitória de Lula foi o primeiro passo para o início da
recuperação das políticas públicas e sociais que podem resgatar o Brasil
do fundo do poço para o qual Bolsonaro o estava encaminhando. O
trabalho será árduo e espinhoso, mas incontornável e possivelmente muito
instigante. É o que ficou claro na entrevista que Sônia Fleury, cientista política e figura central na Reforma Sanitária, deu ao Cebes Debate na última segunda-feira.
Sônia começa sua fala analisando o voto em Lula e em Bolsonaro, nas
eleições de 2022. Há recortes muito claros, que foram captados pelas
pesquisas: de gênero, em que mulheres majoritariamente escolheram Lula;
de raça, em que brancos votaram em peso em Bolsonaro; de classe, que fez
com que aqueles que ganham até dois salários mínimos rejeitassem o
governo atual; regional, que demarcou o Nordeste como garantidor da
vitória de Lula. Mas há outros segmentos que devem ser melhor analisados
para entender as complexidades da realidade brasileira, como o de
pessoas que ganham entre 2 e 5 salários mínimos. Há de se considerar
também a influência das igrejas evangélicas que carregaram votos para o
projeto de destruição de Bolsonaro – inclusive de mulheres negras.
Agora derrotado, o projeto do atual governo ainda encontra ecos na
população. Sônia frisa que é a primeira vez que a ultradireita consegue
chegar ao poder por meios democráticos – e sua reeleição não aconteceu
por pouco. Outra característica desse neofacismo brasileiro é sua
capacidade de levar pessoas às ruas, além de ser muito forte nas redes
sociais. Esse fenômeno precisa ser avaliado com calma, para que possamos
pensar nas táticas e estratégias que devemos seguir daqui em diante.
Para analisar e combater o avanço da ultradireita, é preciso olhar
para sua aliança de ocasião com o neoliberalismo, que foi essencial para
abrir espaço para erguê-la. A princípio, reflete Sônia, parecem
pensamentos em sentidos opostos: o liberalismo quer que os desejos das
pessoas sejam capturados pelo poder econômico, para transformarem-se em
consumo; já a ultradireita reacionária busca uma coação dos desejos e
controle da população. Mas eles se encontram em um ponto crucial: o de
rejeição ao Estado que promove justiça social e diminuição da
desigualdade. Nesse casamento do neoliberalismo com a ultradireita, o
Estado deve servir apenas como poder coercitivo e produtor de uma
economia financeirizada – a liberdade do todos contra todos.
Também entra na conta do neoliberalismo econômico, que recrudesceu a
partir da crise de 2008 com as políticas de “austeridade” mundo afora, o
desencanto com a economia e a descrença na democracia e nas
instituições. O aumento da desigualdade, cada vez mais brutal, a
precarização do trabalho e a falta de perspectivas abriram uma brecha
para o neofascismo eclodir. Com um componente essencial: a internet
centrada nas redes sociais, que passam uma falsa sensação de promotoras
de debate público, quando são, na verdade, ultracentralizadas e
massificantes.
O SUS pode estar no cerne dessa reconstrução de uma sociedade que não
seja formada por consumidores, mas por comunidades de cidadãos. Porque
seu projeto é radicalmente contrário à lógica neoliberal da liberdade
individual. Para Sônia, “O SUS é a política que vai mais fundo na
sociedade brasileira para construir uma materialidade para a igualdade, e
isso é incompatível com esses valores”. Mas, para que ele possa fazer
essa transformação, é preciso que seja financiado adequadamente e
alcance de forma justa todos os brasileiros. Oferecer, via SUS,
qualidade e um atendimento acolhedor, pode plantar uma semente da
transformação da cultura política tão necessária.
Mas há outras sementes que também já começam a brotar. Para Sônia, a
eleição de figuras importantes de movimentos sociais, como do MST, dos
povos indígenas e do movimento negro, pode representar uma mudança
significativa no Congresso Nacional formado por homens brancos. O
movimento dos sujeitos periféricos, para ela, tem enorme importância e
capacidade de transformação. Mesmo com o avanço do bolsonarismo, o
feminismo e o movimento negro nunca estiveram tão fortes como hoje.
Sônia finaliza, ao pensar nas possibilidade de criação de espaços
coletivos para a transformação da sociedade: “Queremos mais amor e mais
capacidade de nos alegrarmos, estarmos juntos. Criar o Comum como
semente de enfrentamento da apropriação privada do capitalismo”.
* É editora, designer e produtora audiovisual de Outras Palavras.
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