quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Yuval Harari: Caminhamos para uma nova era de guerra?

 Por Yuval Harari

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Foto: ALEKSEY CHERNYSHEV/AFP

13/12/2022

Em artigo, escritor fala sobre como a invasão de Putin à Ucrânia ameaça a Nova Paz e a sobrevivência da espécie

Há alguns anos, publiquei um livro chamado 21 Lições para o Século 21, e dediquei um dos capítulos ao futuro da guerra. Com o subtítulo Nunca subestime a estupidez humana, o capítulo argumentava que as primeiras décadas do século 21 foram a era mais pacífica da história da humanidade e que travar uma guerra não fazia mais muito sentido econômico ou geopolítico. Mas esses fatos não garantiam absolutamente a paz, porque “a estupidez humana é uma das forças mais importantes da história” e “mesmo líderes racionais frequentemente acabam fazendo coisas muito estúpidas”.

Apesar dessas reflexões, em fevereiro de 2022 fiquei chocado quando Vladimir Putin tentou conquistar a Ucrânia. As repercussões esperadas para a própria Rússia e toda a humanidade eram tão destrutivas que pareciam um movimento improvável mesmo para um megalomaníaco de coração frio. Mas, o autocrata russo escolheu acabar com a era mais pacífica da história humana e empurrar a humanidade para uma nova era de guerra que pode ser pior que qualquer coisa que já vimos antes. Na verdade, pode ameaçar a própria sobrevivência de nossa espécie.

Isso é uma tragédia, especialmente porque as últimas décadas mostraram que a guerra não é uma força inevitável da natureza. É uma escolha humana que varia de lugar para lugar e de tempo para tempo. Desde 1945, não vimos um único caso de guerra entre grandes potências, nem um único caso de um Estado reconhecido internacionalmente aniquilado por conquista estrangeira. Conflitos regionais mais limitados permaneceram comuns; moro em Israel, então sei disso. Mas, apesar da ocupação israelense da Cisjordânia, os países raramente tentaram expandir unilateralmente suas fronteiras pela violência. Essa é uma das razões pelas quais a ocupação israelense atraiu tantas críticas. O que foi a norma por milhares de anos tornou-se um anátema.

Mesmo levando em consideração guerras civis, insurgências e terrorismo, nas últimas décadas as guerras mataram muito menos pessoas que suicídios, acidentes de trânsito ou doenças relacionadas à obesidade. Em 2019, cerca de 70 mil pessoas foram mortas em conflitos armados ou tiroteios policiais; cerca de 700 mil cometeram suicídio, 1,3 milhão morreram em acidentes de trânsito e 1,5 milhão de diabetes..

Mulher e criança olham os veículos militares russos danificados no centro de Kiev.

Mulher e criança olham os veículos militares russos danificados no centro de Kiev. Foto: Efrem Lukatsky/AP

Psicológica

A paz não tem sido, porém, só uma questão de números. Talvez a mudança mais importante nas últimas décadas tenha sido psicológica. Por milhares de anos, a paz significou “a ausência temporária de guerra”. Por exemplo, entre as três Guerras Púnicas entre Roma e Cartago houve décadas de paz, mas todo romano e cartaginês sabia que essa “paz púnica” poderia ser quebrada a qualquer momento. Política, economia e cultura foram todas moldadas por constantes expectativas de guerra.

No final do século 20 e início do 21, mudou o significado da palavra paz. Enquanto a Antiga Paz significava apenas “a ausência temporária de guerra”, a Nova Paz passou a significar “a implausibilidade da guerra”. Em muitas (mas não todas) regiões do mundo, países deixaram de temer que seus vizinhos os invadissem e os aniquilassem. Os tunisianos pararam de temer uma invasão italiana, os costa-riquenhos não pensaram que o exército nicaraguense pudesse invadir San José e os samoanos não temeram uma frota de guerra fijiana surgindo repentinamente no horizonte. Como podemos dizer que os países não estavam preocupados com isso? Olhando seus orçamentos de Estado.

Até recentemente, as Forças Armadas eram o esperado item número 1 no orçamento de todos os impérios, sultanatos, reinos e repúblicas. Os governos gastaram pouco em saúde e educação, porque a maior parte de seus recursos foi para o pagamento de soldados, construção de muros e de navios de guerra. O Império Romano gastou cerca de 50 a 75% de seu orçamento com as Forças Armadas; o número era de cerca de 80 % no Império Sung (960-1279); e cerca de 60% no Império Otomano do final do século 17. De 1685 a 1813, a participação dos militares nas despesas do governo britânico nunca ficou abaixo de 55% - em média foi de 75%. Nos grandes conflitos do século 20, democracias e regimes totalitários se endividaram para financiar metralhadoras, tanques e submarinos. Quando tememos que os vizinhos possam a qualquer momento invadir nossas cidades, escravizar nosso povo e anexar nossas terras, isso é o razoável a se fazer.

Orçamentos

Os orçamentos na era da Nova Paz constituem um material de leitura muito mais esperançoso do que qualquer tratado pacifista já escrito. No início do século 21, o gasto médio dos governos com suas Forças Armadas foi de apenas 6,5% - e mesmo os EUA, a superpotência dominante, gastaram apenas cerca de 11% para manter sua supremacia. Como as pessoas não viviam mais sob o terror de invasões externas, os governos podiam investir mais dinheiro em saúde, bem-estar e educação do que nas Forças Armadas. O gasto médio com saúde, por exemplo, foi de 10,5% do orçamento dos governos, cerca de 1,6 vezes o orçamento da defesa. Para muita gente, hoje, o fato de o orçamento da saúde ser maior do que o orçamento militar não é digno de nota. Mas, se tomarmos a Nova Paz como certa e a negligenciarmos, logo a perderemos.

A Nova Paz foi o resultado de três forças principais. Em primeiro, as mudanças tecnológicas e, sobretudo, o desenvolvimento de armas nucleares aumentaram muito o preço da guerra, especialmente entre as superpotências. A bomba atômica transformou a guerra das superpotências em um ato louco de suicídio coletivo, razão pela qual elas não entram em guerra umas contra as outras desde Hiroshima e Nagasaki.

Em segundo lugar, as mudanças econômicas diminuíram muito os lucros da guerra. Os principais ativos econômicos já foram recursos materiais que podiam ser conquistados pela força. Quando Roma derrotou Cartago nas Guerras Púnicas, ficou rica saqueando seu rival derrotado, vendendo seu povo como escravo e assumindo o controle das minas de prata da Espanha e dos campos de trigo do norte da África. Nas últimas décadas, porém, o conhecimento científico, técnico e organizacional se tornou o ativo econômico mais importante em muitos lugares. O Vale do Silício não tem minas de silício. Empresas de trilhões de dólares, como Microsoft e Google, são construídas com base no que está na mente de engenheiros e empreendedores, e não no que está no chão sob seus pés. E, se capturar minas de prata à força é fácil, não é possível adquirir conhecimento assim. A realidade econômica levou a uma forte queda na lucratividade da conquista.

Embora as guerras por recursos materiais continuem a caracterizar certas partes do mundo - como o Oriente Médio -, as grandes economias do período pós -1945 cresceram sem conquista imperial. Alemanha, Japão e Itália viram seus exércitos serem destruídos e seus territórios diminuírem -, mas, no pós-guerra, suas economias cresceram. O milagre econômico chinês ocorreu sem nenhuma grande guerra desde 1979.

Ucrânia

Enquanto escrevia estas linhas no início de novembro, soldados russos estavam saqueando a cidade ucraniana de Kherson, enviando de volta à Rússia caminhões cheios de tapetes e torradeiras roubados de casas ucranianas. Isso não tornará a Rússia rica e não compensará os russos pelo enorme custo da guerra. Mas, como prova a invasão da Ucrânia por Putin, as mudanças tecnológicas e econômicas por si só não foram suficientes para produzir a Nova Paz. Alguns líderes são tão sedentos de poder e tão irresponsáveis que podem começar uma guerra, mesmo que economicamente nociva e empurrar toda a humanidade para o Armagedon nuclear. Assim, o terceiro pilar essencial da Nova Paz tem sido cultural e institucional.

Edifício residencial danificado por um ataque de mísseis russos perto da cidade de Chuhuiv, região de Kharkiv, Ucrânia.

Edifício residencial danificado por um ataque de mísseis russos perto da cidade de Chuhuiv, região de Kharkiv, Ucrânia. Foto: Vitalii Hnidyi/Reuters

As sociedades humanas foram por muito tempo dominadas por culturas militaristas que viam a guerra como inevitável e até desejável. Os aristocratas de Roma e de Cartago acreditavam que a glória militar era a maior conquista da vida e o caminho ideal para o poder e a riqueza. Artistas como Virgílio e Horácio concordaram, dedicando seus talentos ao canto de armas e guerreiros e imortalizando conquistadores brutais. Durante a Nova Paz, artistas usaram seus talentos para expor os horrores da guerra, enquanto políticos buscavam deixar sua marca com reformas no sistema de saúde em vez de saquear cidades. Líderes de todo o mundo, influenciados pelo medo de uma guerra nuclear, uniram forças para construir uma ordem global funcional que permitisse aos países desenvolverem-se pacificamente.

Essa ordem global tem se baseado em ideais liberais, ou seja, que todos os seres humanos merecem as mesmas liberdades básicas; que nenhum grupo humano é inerentemente superior aos outros; e que todos os seres humanos compartilham experiências, valores e interesses centrais. Esses ideais encorajaram os líderes a evitar a guerra e, em vez disso, trabalhar juntos para proteger nossos valores e interesses comuns. A ordem liberal global vinculava a crença em valores universais ao funcionamento pacífico das instituições globais.

Embora essa ordem global estivesse longe de ser perfeita, ela melhorou a vida das pessoas não apenas nos antigos centros imperiais, como a Grã-Bretanha e EUA, mas também em muitas outras partes, da Índia ao Brasil, da Polônia à China. Países de todos os continentes se beneficiaram do comércio e investimentos globais. Não só Dinamarca e Canadá puderam transferir recursos de tanques para professores - Nigéria e Indonésia fizeram o mesmo.

Idade de ouro

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Qualquer um que queira discutir os defeitos da ordem global liberal deve primeiro responder a uma pergunta simples: você pode, por favor, citar a década em que a humanidade estava em melhor forma do que na década de 2010? Qual década é a sua idade de ouro perdida? A de 1910, com a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Bolchevique, Jim Crow e os impérios europeus explorando brutalmente grande parte da África e da Ásia? Talvez a década de 1810, com as Guerras Napoleônicas atingindo seu clímax sangrento, camponeses russos e chineses esmagados por seus senhores aristocráticos, a Companhia das Índias Orientais garantindo seu controle da Índia e a escravidão ainda legal nos EUA, Brasil e na maioria das outras partes do mundo? Talvez você esteja sonhando com a década de 1710, com a Guerra da Sucessão Espanhola, a Grande Guerra do Norte, a guerra de sucessão Mughal e um terço das crianças em todos os lugares morrendo de desnutrição e doenças antes de atingir a idade adulta?

Trump e Brexit

A Nova Paz não resultou de algum milagre divino. Foi alcançada por humanos fazendo escolhas melhores e construindo uma ordem global funcional. Infelizmente, muitas pessoas consideraram essa conquista como algo garantido. Talvez presumissem que a Nova Paz estivesse garantida principalmente por forças tecnológicas e econômicas e que poderia sobreviver mesmo sem seu terceiro pilar - a ordem global liberal. Consequentemente, esta foi primeiro negligenciada e depois atacada com ferocidade.

O ataque começou com estados desonestos como o Irã e líderes desonestos como Putin, mas sozinhos eles não foram fortes o suficiente para acabar com a Nova Paz. O que realmente minou a ordem global foi que tanto os países que mais se beneficiaram dela (incluindo China, Índia, Brasil e Polônia) quanto os que a construíram em primeiro lugar (principalmente o Reino Unido e os EUA) viraram as costas para ela. A votação do Brexit e a eleição de Trump em 2016 simbolizaram essa virada.

Aqueles que desafiaram a ordem liberal global não desejavam a guerra: só queriam promover os interesses de seu país e entendiam que cada Estado-nação deveria defender e desenvolver sua própria identidade e tradições sagradas. O que nunca explicaram foi como todas essas diferentes nações lidariam com a ausência de valores universais e instituições globais. Os oponentes da ordem global não ofereciam nenhuma alternativa clara. Pareciam pensar que, de alguma forma, as várias nações se dariam bem e o mundo se tornaria uma rede de fortalezas muradas, mas amigáveis.

Mas fortalezas raramente são amigáveis. Cada fortaleza nacional geralmente quer um pouco mais de terra, segurança e prosperidade às custas de seus vizinhos, e sem a ajuda de valores universais fortalezas rivais não podem concordar com nenhuma regra comum. O modelo de rede de fortalezas era uma receita para o desastre.

E o desastre não demorou a chegar. A pandemia demonstrou que, na ausência de uma cooperação global efetiva, a humanidade não pode se proteger contra ameaças comuns como os vírus. Então, talvez por ter observado como a covid corroeu ainda mais a solidariedade global, Putin concluiu que poderia dar o golpe de misericórdia quebrando o maior tabu da era da Nova Paz. Ele achou que, se conquistasse a Ucrânia e a absorvesse na Rússia, alguns países o condenariam - mas ninguém faria nada contra ele.

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O argumento de que Putin foi pressionado a contragosto a invadir a Ucrânia para impedir um ataque ocidental é propaganda sem sentido. Alguma vaga ameaça ocidental não é uma desculpa legítima para destruir um país, saquear suas cidades e infligir um sofrimento incalculável a dezenas de milhões de pessoas. Quem acredita que Putin não teve escolha deve dizer qual país se preparava para invadir a Rússia em 2022. Você acha que o exército alemão estava se reunindo para cruzar a fronteira? Ou imagina que Napoleão saiu de seu túmulo para liderar o Grande Armée mais uma vez a Moscou, e Putin não teve escolha? E lembre-se: Putin invadiu a Ucrânia pela primeira vez em 2014, não em 2022.

Putin preparou sua invasão por muito tempo. Ele nunca aceitou a dissolução do Império Russo e nunca viu a Ucrânia, a Geórgia ou qualquer outra república pós-soviética como nação independente e legítima. Enquanto - como observado anteriormente - as despesas militares médias representam cerca de 6,5% dos orçamentos governamentais em todo o mundo e 11% nos EUA, na Rússia elas são muito maiores. Não sabemos exatamente quanto maiores, porque é um segredo de Estado. Mas as estimativas colocam o número em torno de 20%, e pode até ser mais de 30%.

Bombeiros trabalham no local de um bloco de apartamentos destruído por bombardeio em Vyshhorod, perto de Kiev.

Bombeiros trabalham no local de um bloco de apartamentos destruído por bombardeio em Vyshhorod, perto de Kiev.  Foto: Oleg Petrasyuk/EFE

Colapso

Se a aposta de Putin for bem-sucedida, o resultado será o colapso final da Nova Paz. Os autocratas aprenderão que guerras de conquista são novamente possíveis, e as democracias também serão forçadas a se militarizar para proteção. Já vimos a agressão russa levar países como a Alemanha a aumentar acentuadamente seu orçamento de defesa da noite para o dia, e países como a Suécia a restabelecer o alistamento. O dinheiro que deveria ir para professores, enfermeiras e assistentes sociais irá para tanques, mísseis e armas cibernéticas. Aos 18 anos, jovens de todo o mundo cumprirão o serviço militar obrigatório. O mundo inteiro parecerá a Rússia - um país com um Exército enorme e hospitais com falta de pessoal. O resultado será uma nova era de guerra, pobreza e doenças. Alternativamente, se Putin for interrompido e punido, a ordem global não será quebrada pelo que ele fez - será fortalecida. Qualquer um que precisasse de um lembrete redescobriria que simplesmente não se pode fazer essas coisas.

Qual desses dois cenários se concretizará? Felizmente para todos, apesar de seus preparativos militares, Putin estava desastrosamente despreparado para algo crucial: a coragem do povo ucraniano. Os ucranianos repeliram os russos em uma série de vitórias impressionantes perto de Kiev, Kharkiv e Kherson. Mas Putin até agora se recusou a reconhecer seu erro e reage à derrota com maior brutalidade. Vendo que seu exército não pode superar os ucranianos na linha de frente, agora ele está tentando congelar os civis ucranianos até a morte em suas casas. Prever como a guerra terminará é impossível, assim como o destino da Nova Paz.

A história nunca é determinista. Após o fim da Guerra Fria, muitas pessoas pensaram que a paz era inevitável e que ela continuaria mesmo que negligenciássemos a ordem global. Depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, alguns adotaram a visão oposta. Alegam que a paz sempre foi apenas uma ilusão, que a guerra era uma força ingovernável da natureza e que a única escolha que os humanos tinham era se queriam ser presas ou predadores.

Valores universais

Ambas as posições estão erradas. Guerra e paz são decisões, não inevitabilidades. Guerras são feitas por pessoas, não por leis da natureza. E assim como os humanos fazem guerras, também podem fazer a paz. Mas fazer a paz não é uma decisão única. É um esforço de longo prazo para proteger normas e valores universais e para construir instituições cooperativas.

Reconstruir a ordem global não significa voltar ao sistema que se desintegrou na década de 2010. Uma ordem global nova deve dar papéis mais importantes às potências não ocidentais que dela desejam participar. Deve também reconhecer a relevância das lealdades nacionais. A ordem global se desintegrou sobretudo pelo ataque das forças populistas, segundo os quais as lealdades patrióticas contradizem a cooperação global. Os políticos populistas pregaram que, se você é um patriota, deve se opor às instituições e à cooperação global. Mas não há contradição inerente entre patriotismo e globalismo, porque patriotismo não é odiar estrangeiros, mas amar seus compatriotas. E no século 21, se você quiser proteger seus compatriotas da guerra, da pandemia e do colapso ecológico, a melhor maneira de fazer isso é cooperando com os estrangeiros.

(Publicado originalmente no The Atlantic). /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/yuval-harari-caminhamos-para-uma-nova-era-de-guerra/

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