sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Existe cristofobia no Brasil?

Brenda Carranza*

 O que é cristofobia? - Rede Vertical│A Sua Rádio Cristã

O efeito narrativo da cristofobia é o de insuflar ânimos de defesa religiosa diante de um sentimento compartilhado de ameaça e perseguição

Cristofobia é um sintagma que se intensificou e consolidou uma narrativa, elaborada por parlamentares religiosos no Congresso Nacional do Brasil, que afirma perseguição e ameaça, na forma de ataque aos cristãos (católicos e evangélicos), que seriam vilipendiados por sua fé, moralidade e crenças religiosas.

Essa perseguição se materializa com um conteúdo concreto de suposta degradação moral da sociedade brasileira ao serem naturalizadas e legalizadas relações homossexuais, incorporadas as questões de gênero e orientação sexual nas diretrizes curriculares no Programa Nacional de Educação (PNE/2014-2024), e se tornarem pauta de discussão a agenda pró-direitos sexuais e sexuais. Tal perseguição a cristãos teria agentes inimigos identificáveis: as comunidades LGBTI+ e o movimento feminista.

Entretanto, uma perseguição religiosa pressupõe ameaça a direitos de expressão e culto religioso (liberdade religiosa) e de ataque físico e simbólico a templos, igrejas, pessoas e até morte. No Brasil, de maioria histórica, demográfica e simbólica cristã, isto é inexistente. Portanto, a narrativa parlamentar cristã é construída a partir de um sentimento de perseguição fictícia.

O Cristianismo é a matriz cultural brasileira que orienta o código de costumes e inspira o horizonte jurídico, impregnando a visão dos direitos fundamentais garantidos por lei na Constituição de 1988. Deduz-se, então, que a retórica sobre cristofobia dos representantes religiosos no parlamento, mas esconde uma supremacia religiosa assentada na noção de nação cristã, outrora nação católica deslocada com a perda da hegemonia política do Catolicismo, do que revela um clima de confronto religioso com movimentos pró-direitos da sociedade civil. O sentimento compartilhado de perseguição produz uma unidade espiritual. De um lado, porque a retórica da cristofobia produz o sentimento de ameaça à unidade e, de outro, não deixa de ser uma estratégia que afirma haver uma perseguição no Brasil que atenta contra a liberdade religiosa de uma maioria cristã.

No Brasil, de maioria histórica, demográfica e simbólica cristã, isto é inexistente. Portanto, a narrativa parlamentar cristã é construída a partir de um sentimento de perseguição fictícia

Nessa lógica, é a perseguição que justifica atacar aqueles que são uma ameaça para a maioria que integra a nação, que é cristã. De certa forma, há no termo uma distorção argumentativa, isto é: cria-se um imaginário de perseguição religiosa que justifica acossar aqueles que foram erguidos como inimigos dos princípios do Cristianismo e dos cristãos, tudo em nome de uma fé que precisa ser defendida.

Consequentemente, a cristofobia se torna o álibi discursivo que certos setores cristãos conservadores acionam contra a ameaça dos avanços que o exercício democrático trouxe às minorias sexuais e ao movimento feminista, seja ao pautar a agenda social, seja ao reivindicar direitos identitários, sexuais e sociais.

A contorção argumentativa, já estudada por Brenda Carranza e Christina Vital, torna-se um exemplo concreto do que Joanildo Burity denomina “minoritização”, isto é, evangélico-pentecostais sendo parte das minorias, e tendo se beneficiado da expansão democrática, atuam reativamente como maioria contra as minorias sexuais.

Sendo a cristofobia utilizada como estratégia retórica que afirma supremacia de uma maioria cristã e justifica a perseguição daqueles que não são maiorias nem demográficas, nem simbólicas e políticas, torna-se uma narrativa preconceituosa com consequências discriminatórias. Portanto, a ideia de cristofobia é um preconceito.

Ao longo dos anos, a narrativa sobre cristofobia estendeu-se também para o Catolicismo conservador representado no parlamento e alcançou, a partir de 2019, o Poder Executivo, ganhando tom de política internacional. O presidente da República Jair Bolsonaro afirmou na ONU, em 2020: “faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”.

A mesma narrativa de defesa da família, perseguição e ameaça ao Cristianismo é identificada no triunfo de Donald Trump, como presidente dos Estados Unidos (2017-2021). Neste processo, o medo inerente à longa tradição evangélica foi utilizado como tática no jogo político, para uma atuação pública em nome de Deus para a defesa do Cristianismo. Ênfase similar é vista no ativismo judiciário dos setores cristãos que demonstra um processo de juridificação da política como estratégia de consolidação da direita cristã no Brasil.

A cristofobia é, desta forma, uma narrativa de perseguição cristã imposta por políticos evangélicos conservadores que, alegando ameaça iminente à integridade dos valores da sociedade brasileira, nutrem o medo sobre grupos e movimentos ligados às demandas identitárias e direitos sexuais e sociais.

Tais atores religiosos se utilizam do sintagma “cristofobia” como estratégia política que reafirma um imaginário de nação cristã, identificam as minorias sexuais como inimigos do Cristianismo, contorcionam os argumentos da real perseguição cristã, que no Brasil é inexistente, erguem o termo à pauta de governo, alastrando-o internacionalmente, e se alinham com setores da direita cristã norte-americana.

O efeito narrativo sobre cristofobia é o de insuflar ânimos de defesa religiosa diante de um sentimento compartilhado de ameaça e perseguição. Portanto, em nome de Deus é possível desencadear uma cruzada santa de defesa da nação.

*Brenda Carranza é cientista social, professora visitante no Programa de Pós-graduação de História Social/UERJ, professora de antropologia da religião/Unicamp. Escreve a convite do Iser (Instituto de Estudos da Religião). Email:brendc@unicamp.br

Fonte:  https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2022/Existe-cristofobia-no-Brasil?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes

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