sábado, 30 de outubro de 2021

‘A trama da vida’: a importância dos fungos no mundo

Merlin Sheldrake*

 Capa do livro "A trama da vida", estampada em tom lilás com ilustração de fungos


O ‘Nexo’ publica trecho de livro que aborda o papel dos fungos na vida na Terra. Com mais de 2 milhões de espécies, eles deram o suporte evolutivo para que as plantas pudessem se desenvolver fora do ambiente aquático e, graças à sua capacidade decompor poluentes químicos e complexos, são aliados importantes no combate à crise climática

Os fungos estão por toda parte, mas é difícil visualizá-los. Eles estão dentro de você e ao seu redor. Sustentam você e tudo de que você depende. Enquanto você lê estas palavras, os fungos estão mudando a forma como a vida acontece, como têm feito há mais de um bilhão de anos. Estão decompondo rocha, fazendo solo, desestabilizando poluentes, nutrindo e matando plantas, sobrevivendo no espaço, induzindo visões, produzindo alimentos, fazendo remédios, manipulando o comportamento animal e influenciando a composição da atmosfera. Os fungos fornecem a chave para compreender o planeta em que vivemos e a maneira como pensamos, sentimos e nos comportamos. No entanto, em grande parte, eles vivem longe dos nossos olhos, e mais de 90% das espécies ainda não foram descritas. Quanto mais aprendemos sobre os fungos, mais as coisas deixam de fazer sentido sem eles.

Os fungos constituem um dos reinos da vida — uma categoria tão ampla e movimentada quanto “animais” ou “plantas”. Leveduras microscópicas são fungos, assim como as extensas redes de cogumelo-do-mel, ou do gênero Armillaria, um dos maiores organismos do mundo. O atual detentor do recorde, no estado do Oregon, Estados Unidos, pesa centenas de toneladas, espalha-se por dez quilômetros quadrados e tem algo entre 2 mil e 8 mil anos. Provavelmente existem muitos espécimes maiores e mais antigos que ainda são desconhecidos.

Muitos dos eventos mais extraordinários da Terra foram — e continuam sendo — resultado da atividade dos fungos. As plantas saíram da água há cerca de 500 milhões de anos graças à colaboração com os fungos, que serviram como um sistema de absorção por dezenas de milhares de anos, até que elas desenvolvessem raízes. Hoje, mais de 90% das plantas dependem de fungos micorrízicos (do grego mykes, “fungo”, e rhiza, “raiz”), que conseguem ligar árvores em redes compartilhadas, chamadas de “internet das árvores”. Essa antiga associação deu origem a todas as formas de vida terrestre conhecidas, cujo futuro depende da capacidade de plantas e fungos de formar relacionamentos saudáveis e estáveis.

As plantas esverdearam o planeta, mas, se pudéssemos voltar ao período Devoniano, 400 milhões de anos atrás, ficaríamos impressionados com outra forma de vida: os Prototaxites. Esses pináculos vivos espalhavam-se por toda a paisagem. Muitos eram mais altos que um

prédio de dois andares. Nada chegava perto desse tamanho: havia plantas, mas elas não passavam de um metro de altura, e os animais com espinha dorsal ainda não haviam saído da água. Pequenos insetos faziam suas casas na estrutura gigante, mastigando-a até formar salas e corredores. Esse grupo enigmático de organismos — acredita-se que eram fungos enormes — foi a maior estrutura viva em terra firme por pelo menos 40 milhões de anos, vinte vezes mais tempo que a existência do gênero Homo.

Até hoje, novos ecossistemas terrestres são criados por fungos. Quando ilhas vulcânicas se formam ou geleiras encolhem, descobrindo a rocha nua, os liquens — uma associação de fungos e algas ou cianobactérias — são os primeiros organismos a se estabelecer e formar o solo no qual as plantas criarão raízes. Em ecossistemas bem desenvolvidos, a terra escoaria rapidamente com a chuva, não fosse pela densa malha de fungos que a mantém unida. Dos sedimentos no fundo do mar à superfície dos desertos, dos vales congelados na Antártida às nossas entranhas e orifícios, há poucos lugares no mundo onde não há fungos. Uma única planta pode conter de dezenas a centenas de espécies em suas folhas e caules. Esses fungos formam um tecido no espaço entre as células vegetais constituindo um brocado intrincado e ajudam a defendê-las das doenças. São encontrados em todas as plantas que tenham crescido em condições naturais; são parte da planta tanto quanto as folhas e raízes.

A capacidade dos fungos de prosperar em tamanha variedade de habitats depende de suas diversas habilidades metabólicas. O metabolismo é a arte da transformação química. Os fungos são prodígios metabólicos e podem procurar, recuperar e consumir detritos de forma engenhosa, rivalizando apenas com as bactérias. Usando coquetéis de enzimas e ácidos potentes, eles podem quebrar algumas das substâncias mais difíceis do planeta, desde a lignina, o componente mais robusto da madeira, até a rocha, o óleo cru, o plástico de poliuretano e o explosivo TNT. Poucos ambientes são extremos demais para os fungos. Uma espécie identificada em rejeitos de mineração é um dos organismos mais resistentes à radiação já descobertos e pode ajudar a limpar locais com resíduos radioativos. O reator nuclear que explodiu em Chernobyl abriga uma grande população desse fungo. Várias dessas espécies tolerantes ao rádio crescem em partículas radioativas “quentes” e são capazes de aproveitar a radiação como fonte de energia, assim como as plantas usam a energia da luz solar.

Os cogumelos dominam o imaginário popular quando o assunto é fungo, mas, assim como os frutos das plantas são parte de uma estrutura muito maior que inclui ramos e raízes, o cogumelo é apenas a estrutura macroscópica de reprodução, chamada também de esporoma, o local onde os esporos são produzidos. Os fungos usam os esporos como as plantas usam as sementes: para se espalharem.

O cogumelo é a forma pela qual o fungo apela a outros seres e elementos, do vento ao esquilo, para ajudar na dispersão dos esporos ou impedir que interfiram nesse processo. É a parte visível, pungente, cobiçada, deliciosa, muitas vezes venenosa do fungo. No entanto, os cogumelos são apenas uma abordagem entre muitas: a esmagadora maioria das espécies de fungo libera esporos sem produzir cogumelos.

Todos nós respiramos fungos a todo momento, graças à prolífica capacidade de seus esporomas de dispersarem esporos. Algumas espécies liberam esporos de forma explosiva, em aceleração 10 mil vezes maior que um ônibus espacial logo após o lançamento e atingindo velocidades de até cem quilômetros por hora — alguns dos movimentos mais rápidos entre os seres vivos. Outras espécies criam seu próprio microclima: os esporos são levados para cima por uma corrente de vento gerada pelos cogumelos à medida que a água evapora de suas lamelas. Os fungos produzem cerca de 50 megatoneladas de esporos por ano — o equivalente ao peso de 500 mil baleias-azuis —, o que faz deles a maior fonte de partículas vivas no ar. Os esporos são encontrados nas nuvens e influenciam o clima, desencadeando a formação das gotículas de água que compõem a chuva e dos cristais de gelo que formam a neve, a água-neve e o granizo.

Certos fungos, como as leveduras que fermentam o açúcar em álcool e fazem o pão crescer, consistem em células únicas que se multiplicam por brotamento, dividindo-se em duas. No entanto, a maioria dos fungos forma redes de muitas células conhecidas como hifas: estruturas tubulares finas que se ramificam, se fundem e se entrelaçam formando a filigrana anárquica do micélio. O micélio representa o mais comum dos hábitos dos fungos e pode ser mais bem entendido não como uma coisa, mas como um processo — uma tendência irregular e exploratória. Água e nutrientes fluem pelos ecossistemas dentro das redes de micélio. O micélio de algumas espécies de fungo é eletricamente excitável e conduz ondas de atividade elétrica ao longo das hifas, de forma análoga aos impulsos elétricos nas células nervosas dos animais.

As hifas constituem o micélio, mas também estruturas mais especializadas. Essas estruturas, como o cogumelo, são formadas a partir de hifas compactadas. Realizam muitas proezas além de expelir esporos. Alguns esporomas, como as trufas, produzem aromas que os colocaram entre os alimentos mais caros do mundo. Outros, como o cogumelo-gota-de-tinta (Coprinus comatus), podem germinar através do asfalto e levantar pedras pesadas do pavimento, embora não sejam feitos de material resistente. Colha um cogumelo e você pode fritá-lo e comê-lo. Deixe-o em uma jarra, e sua carne branca e brilhante se liquefará em uma tinta preta como breu em poucos dias.

Essa engenhosidade metabólica permite que os fungos criem uma ampla variedade de relacionamentos. Seja nas raízes ou nos brotos, as plantas dependem dos fungos para nutrição e defesa desde sempre. Os animais também dependem dos fungos. Depois dos seres humanos, os animais que formam as maiores e mais complexas sociedades da Terra são as formigas-cortadeiras. As sociedades podem chegar a mais de 8 milhões de indivíduos, com ninhos subterrâneos que passam de trinta metros de diâmetro. A vida das formigas-cortadeiras gira em torno de um fungo que elas cultivam em câmaras cavernosas e alimentam com pedaços de folhas.

As sociedades humanas estão igualmente entrelaçadas com os fungos. Doenças causadas por eles provocam perdas de bilhões de dólares — o fungo da brusone destrói uma quantidade de arroz suficiente para alimentar mais de 60 milhões de pessoas todos os anos. As doenças fúngicas das árvores, como a doença-do-olmo-holandês e a ferrugem-de-castanheira, transformam florestas e paisagens. Os romanos oravam ao deus do bolor, Robigus, para evitar doenças fúngicas, mas não foram capazes de deter a fome que contribuiu para o declínio do Império Romano. O impacto das doenças fúngicas está aumentando em todo o mundo: as práticas agrícolas insustentáveis reduzem a capacidade das plantas de formar relações com os fungos benéficos dos quais dependem. O uso generalizado de produtos químicos antifúngicos levou a um aumento sem precedentes de novas superpragas fúngicas que ameaçam a saúde humana e a vegetal. À medida que os seres humanos espalham fungos causadores de doenças, criam-se oportunidades para sua evolução. Nos últimos cinquenta anos, a doença mais mortal já registrada — causada por um fungo que infecta anfíbios — se espalhou pelo mundo através da circulação humana. Ela já levou noventa espécies de anfíbios à extinção e ameaça exterminar mais de cem. A variedade de banana que responde por 99% das remessas globais, a nanica, está sendo dizimada por uma doença fúngica e poderá entrar em extinção nas próximas décadas.

*Merlin Sheldrake nasceu na Inglaterra em 1987, estudou biologia em Harvard e é doutor em ecologia tropical pela Universidade de Cambridge por sua pesquisa sobre redes fúngicas subterrâneas nas florestas do Panamá. “A trama da vida”, seu primeiro livro, recebeu o prêmio Wainwright em 2021 e foi traduzido para mais de 20 idiomas.

A trama da vida: Como os fungos constroem o mundo

Merlin Sheldrake

Trad. Gilberto Stam

Ubu e Fósforo

368 páginas

Lançamento em 1 de outubro

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/estante/trechos/2021/10/29/%E2%80%98A-trama-da-vida%E2%80%99-a-import%C3%A2ncia-dos-fungos-no-mundo?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes

Nenhum comentário:

Postar um comentário