Mary Robinson: Existe intercorrelação entre injustiça de gênero, racial, pobreza e social, que a covid tornou evidente — Foto: Victor Boyko/Getty Images
Ex-presidente da Irlanda defende mudança por meio de atuação coletiva, gestão, ciência e compaixão
Por Daniela Chiaretti — De Berlim
26/10/2021
A pandemia ensinou ao menos quatro lições à comunidade global - que o comportamento coletivo faz diferença, assim como a gestão dos governos, a ciência e a compaixão. Esses aprendizados podem ser aplicados para combater a crise climática, na visão da primeira mulher a presidir a Irlanda, Mary Robinson. “Precisamos ouvir os cientistas climáticos exatamente da mesma maneira e com exatamente a mesma seriedade”, diz ela.
Robinson é tida como uma política transformadora na Irlanda, identificada com a luta pelos direitos humanos, políticas de gênero, combate ao racismo e à desigualdade. Há alguns anos adicionou a justiça climática no cardápio.
“Digo com humildade que cheguei tarde ao tema climático”, reconhece. “Agora não consigo falar em mudança do clima, não parece suficiente. Falo só em emergência climática e justiça climática. Vivemos uma crise, e é uma crise de justiça”, disse ela em entrevista exclusiva ao Valor.
“Justiça Climática” é o nome do livro de depoimentos que publicou em 2018 e será lançado em webinar no dia 28. A edição em português, pela editora Civilização Brasileira, é resultado de uma parceria entre o Instituto Alana e a rede de advogados da Laclima com apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e do Consulado da Irlanda em São Paulo.
Advogada, Robinson foi Alta Comissária dos Direitos Humanos entre 1990 e 1997. Preside o The Elders - Os Anciãos -, grupo que atua em direitos humanos, justiça, paz e clima e tem como membros o ex-secretário geral da ONU Ban Ki-Moon e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Há poucos dias emitiram uma declaração curta, forte e objetiva para os governos que se reúnem no G-20 e na COP do clima, em seguida: é preciso distribuir melhor os recursos do financiamento climático. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Na introdução do livro a senhora traça um paralelo do que podemos aprender com a pandemia e usar na crise climática.
Mary Robinson: A pandemia tem sido devastadora. Está exacerbando todas as desigualdades. Os impactos não são iguais nas diferentes partes do mundo. Tem sido muito pior para as regiões mais pobres do planeta e as regiões mais pobres dos países. E porque o mundo inteiro foi afetado, há lições que podemos aprender com a covid.
Valor: Quais seriam?
Robinson: Creio que há quatro lições que podemos tirar deste período. A primeira é que o comportamento humano coletivo pode fazer diferença, porque foi isso que nos protegeu antes de termos as vacinas. A estratégia de ter distanciamento social, de lavar as mãos, de usar máscaras. Tudo isso foi novo para todos e todos tendo estes cuidados nos protegeu, até certo ponto. E aí vieram as vacinas.
Valor: E o segundo aprendizado?
Robinson: O segundo ponto é que governos importam. Podemos ver isso nos países que conseguiram manejar bem a pandemia. Estou feliz em dizer que um número grande de países que enfrentaram bem a pandemia era liderado por mulheres - Jacinda Ardern [primeira-ministra da Nova Zelândia], Angela Merkel na Alemanha teve problemas, mas conseguiu enfrentá-los bem; na Noruega [liderada pela primeira-ministra Erna Solberg], na Dinamarca [liderada pela primeira-ministra Mette Frederiksen], na Islândia [chefiada pela primeira-ministra Katrín Jakobsdóttir]. Elas levaram a sério suas responsabilidades e tiveram melhores resultados que outros países. Em Bermuda, em Taiwan, a mesma coisa. Governança faz diferença.
“Não havia muita empatia sobre o clima quando só os países mais pobres estavam sofrendo”
Valor: Qual foi a terceira lição da pandemia?
Robinson: Que a ciência faz muita diferença. É notável a forma como os cientistas cooperaram e trabalharam para obter as vacinas. Não pensávamos que poderíamos ter uma única vacina em curto prazo. Em vez disso, obtivemos várias vacinas diferentes em várias partes do mundo. Se se olhar para a realidade da covid, víamos políticos lado a lado em coletivas à imprensa todos os dias, porque seus ministros e representantes do governo precisavam seguir o que dizia a ciência da saúde se quisessem enfrentar a covid, e saber quando reabrir os países e cidades, e não fazer isso cedo demais. Precisamos ouvir os cientistas climáticos exatamente da mesma maneira e com exatamente a mesma seriedade.
Valor: E o quarto aprendizado?
Robinson: É mais sutil, mas muito importante: a compaixão faz diferença. Eu vi em tantos países, e pessoas me contaram - porque todos foram afetados, as pessoas se tornaram mais conscientes dos que mais sofreram em seus países. Então houve apoio a comunidades, campanhas de distribuição de alimentos, as pessoas falavam de que era preciso ajudar os mais afetados. Esta é a empatia que vem do sofrimento. Não havia muita empatia sobre o clima quando só os países mais pobres estavam sofrendo. Lamento, mas quando eu falava de justiça climática, não estavam muito interessados. Agora que os impactos atingiram fortemente o hemisfério Norte, está se começando a ter empatia com a questão do clima também. Empatia e solidariedade são muito importantes e é o que o mundo precisa.
Valor: Quando a sra. começou a pensar em justiça climática?
Robinson: Falo com bastante humildade quando reconheço como me atrasei em me dar conta dos impactos da mudança do clima. Quando fui presidente da Irlanda, de 1990 a 1997, fiz alguns discursos sobre o ambiente, mas eu não conectava com o clima. Não era um tema no meu país e não era um tema para mim.
Valor: A senhora esteve na Rio 92, em 1992?
Robinson: Não, mas acompanhei a conferência de perto. Mas eu estava mais ligada ao aspecto ambiental da conferência do que do clima. Quando me tornei Alta Comissária para os Direitos Humanos da ONU [de 1997 a 2002] comecei a pensar na importância da mudança do clima, mas com um interesse científico e técnico. Não via a conexão com os direitos humanos. Comecei a trabalhar depois na pequena organização que fundei, a Realizing Rights [criada em 2002 com foco em novas alianças de direitos humanos e igualdade de gênero nos esforços para enfrentar os desafios globais] e trabalhávamos em países africanos nos direitos que realmente importam se você não os tem, como comida, saúde, água, educação, gênero, segurança e paz. Parece-me extraordinário que eu tenha perdido isso. Foram as Maldivas que, em 2004, relacionaram o tema a direitos humanos no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Isso foi muito importante. E agora, no último encontro do conselho se reconheceu o direito humano a ter acesso a um meio ambiente saudável. Mas tudo isso aconteceu depois do meu tempo. Assim, quando me dei conta, vi que isso é uma injustiça total, um tema de direitos humanos fundamental. E a partir daí eu só podia falar da crise climática e de justiça climática. Falar de mudança do clima, para mim, não parecia mais ser suficiente. Estamos em uma crise e é uma crise e é uma crise de justiça. Agora estou feliz que estes termos são usados pelos jovens, sempre foram empregados pelas comunidades indígenas e estão sendo muito mais disseminados.
Valor: Em seu livro, a sra. descreve uma cena triste, o momento em que testemunha a extinção de uma geleira.
Robinson: Eu tive duas experiências fortes. Não pude acreditar como fui afetada pela lembrança de ver uma geleira morrer na Islândia. Senti aquele momento profundamente. Logo depois fui a uma expedição científica à Groenlândia. Na primeira manhã chegamos a este lugar com icebergs e lugares lindos, nos pediram para ficarmos sozinhos e “ouvir as geleiras”. Não entendi o que aquilo queria dizer. E então escutei um barulho, como o de trovões e de vez em quando, algo similar ao disparo de armas. Mas isso não era natural. Sabíamos que aquilo estava errado. Eu me vi ali sentada, e comecei a chorar. Estou quase chorando novamente agora só de lembrar. Ainda estou muito chocada. Estamos esmagando a natureza injustamente. A natureza é nossa amiga, mas pode virar um inimigo e, em vez de absorver todo o carbono, podemos ver o permafrost derreter etc. Foi uma lição grande para mim. Não creio que coloquei ênfase o suficiente em Soluções Baseadas na Natureza ou na regeneração até o momento em que fui para a Islândia e Groenlândia no verão de 2019.
Valor: O secretário-geral da ONU António Guterres diz que com a natureza não se negocia.
Robinson: Isso mesmo. O papa Francisco teve uma conversa com o ex-secretário geral da ONU Ban Ki-Moon, que vejo muito porque é um Elder também, e ele conta que o papa disse “Deus perdoa a todos. Nós, às vezes, perdoamos os outros. A natureza, nunca”. Em outras palavras, a ciência é implacável.
“Vocês têm uma sociedade civil maravilhosa. Temos que separar uma governança ruim do povo brasileiro”
Valor: Em seu livro a sra. conta depoimentos e histórias com esperança. Por quê?
Robinson: Bem, primeiro, porque histórias. Tive uma conversa com o editor das minhas memórias e ele me perguntou como ia meu trabalho com clima. Lembro que respondi dizendo que estava frustrada porque tenho a impressão que a mensagem não chega às pessoas. Eu disse que devíamos contar mais histórias e ele me disse que, seu escrevesse, publicaria. A mudança do clima pode afetar as pessoas terrivelmente, mas também pode trazer o melhor delas. O melhor em coragem, em construir resiliência, em esperança. Fiquei tão inspirada por cada uma das pessoas com quem conversei. E quis ser estratégica na hora de escolher as histórias que queria contar.
Valor: Estratégica como?
Robinson: Queria contar sobre pessoas do mundo rico sofrendo pelo clima. Nos Estados Unidos encontrei duas histórias - a de uma cabeleireira que sofreu com o pós-Katrina destruindo seu salão e sua casa, e se tornou uma ativista. E no Alasca, que vem sofrendo terrivelmente com a erosão pela água do mar. Mas foi difícil encontrar essas histórias. Se eu estivesse procurando agora seria outra coisa. Poderia falar sobre a inundação em Alemanha e Bélgica, fogos em Portugal, Espanha e França. Poderia falar da Califórnia. Veja quanto o mundo mudou mesmo desde 2018, quando o livro foi publicado. O clima está impactando o hemisfério Norte agora de uma maneira que sempre afetou o hemisfério Sul. Esta é a primeira injustiça climática.
Valor: Há conexões entre as injustiças globais?
Robinson: Existe uma intercorrelação entre a injustiça de gênero, injustiça racial, injustiça da pobreza e a injustiça social, que a covid tornou evidente porque exacerbou as desigualdades e mostrou as conexões entre elas.
Valor: Na visão da ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, na COP de Paris foi preciso lutar contra o negacionismo. e agora a luta é contra o fatalismo climático. A senhora concorda?
Robinson: Ela está certa. Tem gente que diz este problema é muito grande e que já que não se pode fazer nada, melhor tocar a vida. Temos que encorajar as pessoas a não fazer isso. Digo a todos que é preciso fazer três passos. O primeiro é tornar a crise climática algo pessoal na vida cotidiana e isso quer dizer reciclar com mais cuidado, mudar a dieta, mudar o jeito que nos locomovemos. Caminhar mais, andar mais de bicicleta é bom para a ansiedade climática. A segunda coisa é ficar bravos com quem tem mais responsabilidade e não está fazendo o que deveria. São governos ao redor do mundo, cidades, autoridades locais, negócios. O terceiro passo é o mais importante - em 2030 temos que cortar emissões de um modo que deixemos a natureza respirar. Temos que imaginar cidades mais verdes, áreas rurais com mais água, reflorestamento. E temos que nos animar, porque só desta forma as pessoas estarão motivadas.
Valor: Sobre a COP 26, a mensagem dos “Elders” foi bem forte.
Robinson: Pensamos que temos que ser mais explícitos e firmes sobre o que está errado, quem está fazendo errado, dar nomes. Não somos diplomatas. Somos anciões. Não queremos criticar injustamente, mas temos que ser claros. O G-20 está chegando. Escrevi a todos os membros do G-20 em nome dos Elders. Escrevi à Itália e à França dizendo que deveriam contribuir mais com finanças climáticas. Escrevi a países que não revisaram suas NDCs ou àqueles que não têm NDCs ambiciosas. Temos uma voz moral.
Valor: Por que a sra. apelou pela liderança da China?
Robinson: Sim, mas também espero boa cooperação entre os EUA e China. O que temos agora, pós-presidente Donald Trump, é uma má situação em que ambos os lados se demonizam. Isso não é nada bom. O mundo tem que ter mais cooperação.
Valor: Também falaram em mais recursos financeiros para adaptação.
Robinson: Sim. Ban Ki-Moon foi co-chair da comissão de adaptação. Precisamos que 50% dos US$ 100 bilhões sejam destinados à adaptação. Não creio que teremos isso acordado na COP26, mas precisamos fazer mais. Adaptação constrói resiliência e faz todo sentido. Também temos que falar em perdas e danos, porque os choques climáticos estão provocando danos além da possibilidade de adaptação nos países mais carentes e pequenos que já foram devastados por furacões, chuvas ou secas. Não tem mais como se adaptar. O apoio a perdas e danos têm que estar sobre a mesa, tem que ser uma agenda. Deve ser levado mais a sério pelo mundo rico, que está com medo de ter que pagar muito, mas na realidade, é responsável. Tem que assumir a responsabilidade.
Valor: E o Brasil?
Robinson: Vocês têm uma sociedade civil maravilhosa, especialistas em clima. Temos que separar uma governança ruim do povo brasileiro. Não se pode demonizar o país por ter um mau governo. Faço o mesmo com a Australia.
Valor: A sra. acredita que o processo da Convenção do Clima é importante?
Robinson: Para mim o processo é fraco, ao forçar a UNFCCC ter consenso em suas decisões. É um dos foros internacionais mais importantes, mas um dos mais fracos. Mas pense como Paris foi importante. Não foram apenas China e os EUA a nos ajudar a ter um acordo. Foram as pequenas ilhas, os povos indígenas, a sociedade civil.
Valor: A sra. mencionou o direito a ter acesso a um ambiente saudável. Por que é importante?
Robinson: É parte da Constituição de vários países, mas não estava na ONU. Importante que o Conselho dos Direitos Humanos tenha dado esse passo. O grupo de empresários do B Team fez muita pressão para que o Reino Unido apoiasse a decisão. Esperaria que a maioria dos negócios estivesse alinhado assim, mas não está. Ao menos temos líderes.
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