segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Não há família. Há famílias

Bento Domingues*



Os modelos de família dependem das culturas em que se afirmam. Nunca foram os mesmos em todo o tempo. A sua diversidade não é contra a família, são formas diferentes de testemunhar a sua importância. Nenhuma delas é o céu na terra.

1. A crise religiosa de muitos adolescentes e jovens, que frequentaram a catequese, revela-se sobretudo na escola, quando as descobertas que vão fazendo desautorizam o que ouvem na Igreja. O padre Resina, que ensinou Física no Instituto Superior Técnico, defendia que a catequese devia antecipar-se a desfazer os conflitos entre as apresentações e interpretações da fé e a linguagem das ciências. As próprias narrativas bíblicas, na grande diversidade dos géneros literários, nunca pretendem fazer ciência, mas a sua floresta simbólica deu e dá muito que pensar, com grande presença na literatura, na música e na pintura.
A liturgia deste domingo recorre à segunda narrativa mítica sobre o casal humano. Na primeira, era dito que “Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; criou-os homem e mulher”.
A segunda é mais complexa. A mulher resulta como resposta à solidão do homem: “O Senhor Deus disse: ‘Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele’. Então, o Senhor Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse. O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar semelhante a ele. Então, o Senhor Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: ‘Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!’ Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne" [1].
Seria ridículo incriminar quem compôs estes contos por não ter consultado Charles Darwin (século XIX), sobre a sua teoria da evolução, nem os cálculos da origem da nossa espécie e a sua difusão a partir da África Subsariana. Segundo a investigadora, Luísa Pereira entre muitos outros cientistas, a diversidade genética do mundo actual saiu dali [2].
Estas narrativas pertencem aos mitos de origem. Quem as ler como um dogma assinado por Deus perde o seu tempo e a ocasião de desfrutar duas admiráveis peças literárias, que dizem a atracção mútua do homem e da mulher, reflectindo também as ambiguidades da cultura patriarcal.
A leitura do Evangelho, proposta para este domingo, tem dificuldades especiais por ser mal lida, não reparando que Jesus está a responder a uma provocação antifeminista, como diz o texto. Não diz repudiar o homem. S. Mateus acrescenta: repudiar a própria mulher por qualquer motivo. Os discípulos perceberam isso muito bem: “se é assim a condição do homem em relação à mulher, não vale a pena casar”. Jesus observa que há pessoas que não podem casar por razões naturais ou então por escolha e até por escolha espiritual, por causa do Reino dos Céus. Quem tiver capacidade para compreender, compreenda. E mais não disse [3]. No entanto, pretende-se ver na resposta de Jesus um dogma sobre a indissolubilidade do casamento, como se fosse fácil saber quando é que um casamento tem assinatura divina. Repito: o que Jesus não aceita é que o marido possa fazer da mulher o que lhe apetecer.
No panorama actual, estamos sempre a ouvir relatos de violência em casamentos e em namoros. Os movimentos feministas têm lutado para que os direitos e deveres do homem e da mulher sejam os mesmos.

2. Os modelos de família dependem das culturas em que se afirmam. Nunca foram os mesmos em todo o tempo e lugar e, hoje, devido sobretudo à emigração, em muitos países, encontram-se os mais diversos modelos de família. A sua diversidade não é contra a família, são formas diferentes de testemunhar a sua importância. Nenhuma delas é o céu na terra.
O que está acontecer de novo é o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o chamado Casamento para Todos, já legalizado em 30 países.
O Papa Francisco começou por dizer, para espanto de muita gente: “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?” Defendeu que os homossexuais devem ser bem acolhidos na família. No documentário Francesco, manifestou apoio à criação de leis para garantir a união civil de casais do mesmo sexo. Em todas as suas intervenções, nunca confundiu essas uniões com a noção católica de casamento, mas também nunca fez juízos morais sobre essas uniões, designando-as como pecaminosas, como era corrente fazer.

3. No mundo católico, através de muitas ambiguidades, o casamento foi sempre acarinhado e honrado a ponto de fazer dele um dos sete sacramentos, um caminho de santidade. Coexistiu com pessoas celibatárias “por causa do reino dos céus”. O celibato obrigatório, para o clero na Igreja romana, nem sempre existiu nem tem promessa de eternidade. As suas vantagens não estão a superar as desvantagens. A maioria dos padres, que abandonou o ministério, não o teria feito se pudesse constituir família.
Quando estava a finalizar esta crónica, referindo-me à espiritualidade conjugal e familiar de um documento do Papa Francisco, que causou muita polémica [4], fui surpreendido por uma convocatória do Bispo de Roma, que desfaz todas as ambiguidades possíveis acerca do sínodo destinado a abrir todas as portas e janelas, sem espaços reservados ou limites, sem tabus. No espaço que me resta, só posso fazer uma breve referência a um longo texto turbulento e inquietante. Terei ocasião de lhe fazer mais eco.
Realça que o cristianismo deve ser sempre humano, humanizante, deve reconciliar diferenças e distâncias, transformando-as em familiaridade, em proximidade. Um dos males da Igreja, aliás uma perversão, é esse clericalismo que separa o padre, o bispo das pessoas. O bispo e o padre separado das pessoas é um funcionário, não é um pastor. Em nome de Deus, não se pode discriminar. E a discriminação é um pecado também entre nós: “Nós somos os puros, nós somos os eleitos, nós somos deste movimento que sabe tudo, nós somos…”. Não. Nós somos Igreja, todos juntos. São Paulo VI gostava de citar a máxima de Terêncio: “Sou homem, nada do que é humano me é estranho”.
Quando a Igreja se fecha, já não é Igreja, mas uma bela associação piedosa, porque enjaula o Espírito Santo que, na sua liberdade, não conhece fronteiras e nem se deixa limitar pelas pertenças [5].
Não é a família, são todas as formas de família que devem ser escutadas.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO  Religioso da Ordem dos Pregadores, por muitos considerado um dos maiores teólogos portugueses, apesar das suas posições heterodoxas.

[1] Gn 2, 18-24
[2] Cf. DN, pág. 12-14, de 26/09/2021
[3] Cf. Mt 19, 1-12
[4] Exortação Pós-sinodal, Amoris Laetitia, sobre o amor na família (2016)
[5] Papa Francisco, Documento: Deus é sempre um Deus das surpresas, cf. 7Margens, 25. 09. 2021

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