David Coimbra*
A arte gosta de ardores. Eu, não. Ah, não. Eu sei o que faz a diferença na vida
Não consigo entender todo esse prestígio do amor romântico. As músicas, por exemplo. Noventa por cento delas são sobre o amor romântico. No caso das sertanejas, cem por cento. Houve um tempo em que se dizia que a música sertaneja era “música de caminhoneiro”. Agora imagine um caminhoneiro típico, dirigindo um Fenemê gigantesco, de camisa de física e palito no canto da boca, envolto em uma nuvem de lágrimas enquanto ouve o rádio da carreta.
É assim. Os caminhoneiros são sensíveis.
Todo mundo é sensível. Os filmes mais incensados são sobre o amor romântico. Não estou nem falando das comédias românticas, que são bobinhas. Estou falando do dramalhão. “Doutor Jivago”. Até hoje, as pessoas que assistiram Doutor Jivago uivam para a lua quando ouvem o Tema de Lara. Nos anos 70, homens e mulheres adultos saíam do cinema vermelhos e fungando depois de ver Love Story. E, cá para nós, que filmezinho bem chato.
O que seria da poesia, se não houvesse o amor romântico como tema? “De tudo, ao meu amor serei atento antes...”
É um exagero. Até porque esse amor romântico não é amor; é paixão. Um sentimento efêmero. Está cientificamente provado que a paixão dura, no máximo, um ano e meio. A não ser, é claro, que o relacionamento tenha fracassado antes. Aí o amante frustrado pode ficar remoendo e dourando aquele sentimento por décadas. Só a paixão fracassada é eterna.
Uma arte que fosse realmente realista abordaria os temas que são de fato importantes para os seres humanos. Tipo: a glândula adrenal. Recentemente descobri, por experiência própria, a extensão da relevância da glândula adrenal. Por que nenhum roqueiro canta:
“A glândula adrenal
É bem pequeninha
No entanto
Ela é nossa amiguinha
A glândula adrenal
É muito legal
Eu fico mal sem minha glândula adrenal”.
Mas, não. Ninguém dá bola para a glândula adrenal. Só falam do coração, coração, coração, e no sentido emocional, nunca como uma câmara muscular oca com quatro cavidades, sendo elas dois ventrículos e dois átrios.
A arte nunca dá atenção aos nossos órgãos internos, mas eles são os bens mais importantes que temos. Ninguém saberia viver sem eles. Queria ver o Roberto Carlos entoando, em vez de “eu te amo, eu te amo, eu te amo”, uma ode a algo que é verdadeiramente fundamental como: “Papila, papila, papila gustativa...”
O amor romântico, depois de realizado, pode até se transformar de paixão em amor real, dois velhinhos de mãos dadas caminhando pela praia e tudo mais. Certo. Isso é bom. Mas não merece músicas, porque não vicejam, numa cena dessas, as labaredas da paixão. Há ali apenas a ponderação e a sabedoria e a arte não gosta de ponderação e sabedoria. A arte gosta de ardores. Eu, não. Ah, não. Eu sei o que faz a diferença na vida. Oh, minhas queridas células, minhas amadas moléculas, meus tecidos, minhas fibras, minhas rótulas e meus hormônios, vocês são esquecidos pelo mundo, mas eu os amo com todo meu ser, e o amor é fogo que arde sem se ver.
*Jornalista. Escritor.
Imagem da Internet
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/david-coimbra/noticia/2021/10/amor-verdadeiro-amor-ckv5fxfz0001p019m8lvea5sv.html
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