Tati Bernardi*
Ilustração de logos de Facebook, Whatsapp e Instagram reproduzidas em tela quebrada -
Eu estava com saudade de não gostar das pessoas boas. Obrigada, apagão!
Ficar sete horas sem as redes sociais do Mark Zuckerberg foi tarefa fácil se comparada ao suplício que veio depois: aturar as pessoas atacando de poetas no Instagram.
O apagão veio como um presentinho das deusas para quem precisava se reconectar consigo mesmo enquanto si próprio. Para quem precisava de um sorriso acolhedor no espelho. Para quem havia esquecido de dizer “pai, mãe, irmão, Maria que limpa meu closet: OBRIGADA por tudo”.
Teve quem olhou no fundo dos olhos de um filho e, através daquele brilho tão puro e sincero, viu a imagem de outro filho. Caramba! Sim! Ela tinha dois filhos e não sabia! Teve quem descobriu o marido trancafiado no lavabo havia 11 anos e até fez sexo. Teve quem levou o cachorro para passear e, ao notar que não diferenciava mais o rabo do focinho do animal, achou por bem tosá-lo. Teve quem tomou um banho longo (imagina o odor dessa pessoa sem banho longo desde que o Zuckerberg ganhou seu primeiro milhão). Teve quem celebrou o que mais importa: o amor, a vida, as pessoas! E tais palavras-nada já seriam intelectualmente ofensivas se viessem diagramadas em dourado num cartãozinho desgraçado de papelaria de bairro. Apenas parem! Me enforquem com o fio do carregador do meu celular, mas não cometam a insanidade de postar besteiras deslumbradas e mal escritas sobre a arte de não precisar postar nada!
Para começar, foi menos de um terço do dia. Se deu tempo de você tatuar “resiliência” na virilha, subir no alto de uma montanha a mil quilômetros da sua casa e gritar “potência & empatia”, e ainda liberar a kundalini em uma ciranda mágica com suas irmãs de menstruação, você é mais fake que o zap da sua tia. Depois, era uma tarde de segunda-feira. Se você foi ao parque rolar na grama feito um croquete maconhado, o problema não é a mente demoníaca do Zuckerberg, mas sim o desemprego do país ou a falta de ambição cravada no seu coração de herdeiro.
Eu tenho uma aflição danada quando leio que o sujeito aproveitou o apagão para “pegar num livro” ou para perceber que flores haviam nascido na árvore em frente de casa. Imagina o tipo de livro que foi pego por essa pessoa que não pegava num livro desde que o Orkut era um “Bad, bad server. No donut for you”. Imagine a decoração do apê desse anjo que escreve “quantos ipês amarelos você não vê por que está ocupado demais pra ser feliz?”. Quem arrisca esse tipo de encantamento virtual certamente se aventura num piso frio brilhoso e ostenta uma estante de mármore com vidro.
Olha, eu estava com saudade de não gostar das pessoas boas. Obrigada, apagão! Já são infinitos meses odiando negacionistas e bolsonaristas e sem agenda para ficar enojada com coisas pequenas e banais. Pois as sete horas sem WhatsApp e Instagram me trouxeram, a posteriori, esse deleite! E que falta meu estômago sentia de revirar diante do amigo trouxa, do boçal do bem, do sem talento emocionado. Eu andava nostálgica do babaca queridão, dos queridos e péssimos artistas da própria existência.
*Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/tatibernardi/2021/10/poetas-de-instagram.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista
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