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Teórico da linguagem, pensador polémico, Noam Chomsky acaba de publicar Um guia essencial sobre capitalismo, política e o funcionamento do mundo. Na entrevista à TSF e DN fala de vacinação, clivagens políticas, Afeganistão e alterações climáticas.
Acredita
que os países ricos estão dispostos a assumir as suas responsabilidades
e ajudar a fornecer o que o mundo em desenvolvimento ainda precisa em
termos de vacinação?
É um escândalo e também é suicida. Os países ricos praticamente
monopolizaram a vacina. Tem havido alguns esforços para distribuí-la aos
países que precisam dela desesperadamente. Na África, Ásia, América
Latina. Não só monopolizaram as vacinas, mas insistem em que as taxas de
lucro exorbitantes das empresas farmacêuticas sejam protegidas pelos
chamados acordos de livre comércio altamente protecionistas. O que está a
acontecer não é apenas profundamente imoral, mas também suicida. Todos
entendem que quanto mais tempo levar para o resto do mundo ser vacinado,
mais tempo há para o vírus se transformar em variantes que serão
incontroláveis, que irão, claro, voltar aos próprios países ricos, como
foi com a variante Delta. É um exemplo de como a ganância e a estupidez
superam não apenas os valores morais elementares, mas mesmo um sentido
de auto-preservação. Agora, há um forte movimento anti-vacinação que,
nos EUA, é localizado. De forma esmagadora, nos estados republicanos,
praticamente na velha confederação e em alguns estados do noroeste, há
uma oposição muito forte à vacinação. E os hospitais estão lotados com
quase 100% de pacientes não vacinados. Estão a morrer e dizem "não quero
uma vacina, não vou deixar o governo fazer isso comigo". Sabe, é
maníaco, doentio, até alguns segmentos da esquerda são apanhados nisso.
Mas a maioria dos republicanos dizem que, simplesmente, não serão
vacinados.
Isso relaciona-se com as clivagens e a
polarização na política americana atual. Vê-as como uma ameaça
importante para a democracia dos EUA?
Bem, a democracia dos EUA está moribunda, está de partida. Podemos ver
isso no Congresso agora que está a debater a legislação que levaria os
Estados Unidos, em alguma medida, na direção de social-democracia que é
normal na Europa. Cuidados de saúde universais dificilmente radicais,
ensino superior gratuito, creches, isto é, as coisas normais na maior
parte do mundo mas que nos Estados Unidos são consideradas radicais. Os
republicanos são totalmente contra.
"A democracia dos EUA está moribunda, está de partida. Podemos ver isso no Congresso agora que está a debater a legislação que levaria os Estados Unidos, em alguma medida, na direção de social-democracia que é normal na Europa."
Pensa que um Partido Republicano
orientado e controlado pelo ex-presidente Trump pode ganhar as eleições
intercalares do próximo ano e voltar ao poder na Casa Branca em 2024?
É muito provável. E se o fizerem, o mundo estará em grande perigo. Eles
sabem que são um partido minoritário e que não podem ganhar eleições
livres. Portanto, têm uma estratégia que passa por reduzir os direitos
de voto. Em praticamente todos os estados republicanos estão a impor
novas leis que tornam mais difícil o voto de eleitores que tendem a ser
democratas, tornam mais difícil para que votem as minorias, os pobres,
os trabalhadores, as populações urbanas e assim por diante. Dessa forma,
aumentam o poder da base republicana, da direita, da supremacia branca,
do nacionalista cristão, do tradicional. A outra tática é desviar a
atenção das questões económicas e de classe, onde os republicanos estão
muito à direita e a esfaquear os seus próprios eleitores pelas costas,
desviando a atenção para as chamadas questões culturais. Concentram-se
nisso, ou no aborto, ou em garantir que todos tenham um arsenal de fuzis
na garagem, qualquer coisa menos a classe e as questões económicas.
Isso faz sentido para um partido totalmente leal aos super-ricos e ao
setor corporativo. Pode ver isso dramaticamente com Trump, um homem com
uma autoconfiança brilhante, ele poderia levantar-se, com uma mão dizer,
"eu amo-te e trabalho para ti"; e, com a outra mão, apunhalar-te pelas
costas. Uma terceira parte da estratégia, que é muito aberta e
explícita, é fazer com que o país sofra o máximo possível. Se ler os
projetos agora no Congresso: seguro-desemprego, creche, uma ajudinha de
saúde para o escandaloso sistema de saúde dos Estados Unidos, tudo isso
seria muito benéfico para a população. São medidas muito populares,
mesmo entre os eleitores republicanos. Mas Trump precisa ter a certeza
de que não serão aprovadas. Porque se o país sofrer o suficiente e for
ingovernável, eles podem culpar os democratas e voltar ao poder. Algumas
das coisas com as quais os republicanos se safam são quase cómicas,
como a retirada do Afeganistão, planeada por Trump. Fez um acordo com os
talibãs, sem sequer notificar o governo afegão, que era "vocês podem
fazer o que quiserem, assumir aquilo. Sem condições. Nós retiramos as
tropas. A única condição é não dispararem contra as tropas americanas
que vão embora. Fora isso, façam o que quiserem". Foi uma traição total.
Na Economist,
há algumas semanas , o senhor escreveu que os EUA permanecem sem rival
em força militar e económica, mas com terríveis consequências para o
mundo. Porquê?
Há uma luta em curso, que é muito mal compreendida pela imprensa. É,
sobretudo, uma questão de liberdade de navegação. São questões
relacionadas com o direito do mar. Há uma disposição que estipula que os
países têm uma zona económica exclusiva de 200 milhas, a partir da
costa. Agora, a questão da liberdade de navegação com a China está nesse
ponto. Os EUA não assinaram a Lei do Mar, nem a ratificaram, mas
insistem que a liberdade do direito do mar permite ações militares e de
inteligência dentro da zona económica exclusiva. A China aceita a
liberdade de navegação, mas sem nenhuma ação militar e de inteligência. É
aí que está o conflito que, certamente, pode ser resolvido por
diplomacia e negociações, mas os EUA querem resolvê-lo enviando uma
armada de navios de guerra para as zonas contestadas da China. Ao mesmo
tempo, enviam uma frota de submarinos nucleares avançados para a
Austrália, que a Austrália vai pagar, mas que estarão sob o comando
americano. Ao fazer isso, deram um pontapé na cara à França. E a
Austrália é que teve que lidar com a França, que ficou certamente muito
chateada e chamou os seus embaixadores na Austrália e nos EUA. Não se
preocuparam com a Inglaterra, porque reconhecem que a Inglaterra é
apenas um estado vassalo dos EUA, não um país independente. O principal
correspondente militar australiano fez uma análise detalhada do caráter
grotesco do negócio e como põe a Austrália em perigo. Mas isso não chega
à imprensa ocidental, aqui é um acordo maravilhoso.
"Pode ver isso dramaticamente com Trump, um homem com uma autoconfiança brilhante, ele poderia levantar-se, com uma mão dizer, "eu amo-te e trabalho para ti"; e, com a outra mão, apunhalar-te pelas costas."
No
caso do Afeganistão, o senhor é dos que pensa que invadir foi uma opção
má, e que a retirada foi provavelmente ainda pior. E agora? Acha que
este novo governo talibã, pode ser melhor para o povo afegão do que o
que houve entre 1996 e 2001?
Bem, a traição de Trump ao povo afegão e ao governo afegão foi severa. O
acordo que ele fez com os talibãs, de lhes entregar o país, foi uma
decisão para maio de 2021, o início da temporada de combates. Foi o pior
momento possível, não havia oportunidade para acomodações ou qualquer
outro arranjo. Bem, Biden tentou torná-lo um pouco melhor, acrescentou
algumas condições que Trump não havia adicionado. Era óbvio que o
governo afegão estava afundando, não era apenas um atoleiro de
corrupção, mas sim um colapso completo. Era bastante óbvio que o
exército afegão entraria em colapso. Eles não têm nada para lutar, os
soldados estão lá, mas não são pagos. Por que deveriam lutar pelo poder
estrangeiro? O colapso era óbvio. As únicas pessoas que não entenderam
isso foram as agências de serviços secretos. Eles sabem exatamente o que
está a acontecer e fornecem relatórios precisos. Mas, à medida que
esses filtros sobem na cadeia de comando, são modificados de acordo com o
que as pessoas no topo desejam ouvir. Quando chega ao poder executivo,
eles não têm nenhuma relação com o que está a acontecer. Há um longo
historial disso. Os serviços secretos no terreno são muito eficientes.
Mas o sistema leva a uma grande confusão no topo. Era bastante óbvio que
o exército afegão não resistiria; que o chamado governo afegão, com uma
corrupção massiva no seu interior, entraria em colapso imediatamente. E
foi o que aconteceu.
"China, Rússia, os estados da Ásia Central querem tentar trabalhar com os talibãs para tentar melhorar a situação e ver se os podem mover numa direção mais moderada. Isso teve a oposição de dois países, os EUA e a Índia."
O que podemos esperar destes talibãs 2.0?
Bem, há uma divisão entre os poderes que podem lidar com isso. China,
Rússia, os Estados da Ásia Central querem tentar trabalhar com os
talibãs para tentar melhorar a situação e ver se os podem mover numa
direção mais moderada. Isso teve a oposição de dois países, os EUA e a
Índia. Nas reuniões da Organização do Conselho de Cooperação de Xangai, a
Índia esteve sozinha e opôs-se aos esforços dos demais países para
caminhar nessa direção. O Tesouro dos EUA detém os recursos financeiros
do governo afegão. Os EUA congelam esses recursos e pressionam o FMI e o
Banco Mundial para reter os financiamentos. O povo afegão está a sofrer
muito: enfrentam fome massiva e destruição do país. E é aí que estamos.
A China liderou os esforços das potências regionais, são os que estão a
seguir a política certa. Os talibãs estão no comando, é um facto, são o
governo em funções. Há muitas coisas que são muito más neles mas também
há coisas muito más vindas de outros governos. O povo afegão deve ser a
nossa preocupação. E a forma de ajudar é exatamente trabalhar com os
talibãs, tentar induzi-los a tornarem-se mais inclusivos, menos
repressivos, fazer com que mudem a economia baseada na produção de ópio,
para o desenvolvimento dos seus próprios ricos recursos minerais,
tentar estabelecer projetos de desenvolvimento, para ver se gradualmente
podem ser incorporados no sistema regional, o que provavelmente
significará incorporarem-se na Organização de Cooperação de Xangai. Bem,
os EUA estão ocupados a tentar intimidar todos e a mostrar a sua força.
A China está a mover-se discretamente para integrar a Ásia Central,
partes da África, até mesmo a orientar-se para a América Latina e
integrá-los numa espécie de sistema económico com base na China. Não são
pessoas simpáticas que o estejam a fazer por motivos de caridade. Estão
a fazer isso por razões de poder.
Estamos a menos de um
mês da Conferência do Clima COP 26 em Glasgow, e o secretário-geral da
ONU disse recentemente que o mundo deve acordar, estamos à beira do
abismo e a mover-nos na direção errada. O senhor escreveu um livro com
Robert Poland, em que afirma que devemos ter um Novo Acordo Verde
Global, Global Green New Deal. Como é que deve ser esse acordo?
Temos ideias detalhadas explícitas nesse livro. São propostas viáveis
para reduzir o uso de combustíveis fósseis de petróleo todos os anos,
até atingirmos as emissões zero por volta de meados do século,
empregando meios para produzir energia melhor, sustentável e mais barata
e uma economia melhor; no fundo, uma vida e economia muito melhores
para as pessoas. Agora, voltemos ao mundo real. Os líderes do mundo
querem levar-nos ao limite o mais rápido possível, para conseguirem os
seus objetivos. Se ler os jornais do setor do petróleo, andam eufóricos a
discutir todas as novas perspetivas para novos campos de petróleo
enquanto descobrem como podem aumentar a produção de combustíveis
fósseis, um futuro maravilhoso pela frente. Se houvesse um observador do
espaço sideral a observar-nos, pensaria que somos clinicamente insanos.
As grandes empresas de petróleo precisam mudar a sua propaganda de
relações públicas. É interessante como fazem isso, continuando a
produção de combustíveis fósseis e investindo nalguma tecnologia
futurística, - que não existe, já agora -, que será capaz de remover os
venenos da atmosfera, depois de despejá-los numa lavagem verde. Essa é a
política deles. Veja o Partido Republicano nos Estados Unidos. São
todos negacionistas; para eles, não está a acontecer. Ou os chamados
democratas moderados, como Joe Mancini, aquele que impede os esforços de
fazer algo pelo meio ambiente no orçamento. A sua posição é clara e
explícita. Ele diz: só inovação; sem eliminação, continuem a produzir
combustíveis fósseis sem limites, mas encontrem uma maneira de superar
as críticas. É a pessoa que mais recebe financiamento das empresas de
combustíveis fósseis no Congresso, o que é muito significativo porque
essas empresas financiam e compram abundantemente membros do Congresso. É
o campeão nisso. Os seus próprios constituintes, os mineiros de carvão
na Virgínia Ocidental, estão a mover-se no sentido da energia
sustentável, mas o seu representante no Congresso está comprado pelas
petrolíferas, que querem continuar a correr para o precipício.
"[Greta Thunberg] terminou a dizer: vocês traíram-nos. Essas palavras devem ser gravadas na consciência de todos. Na minha geração e na sua. Traímos a juventude do mundo. Estamos a trai-los agora. Estamos a trair os nossos filhos e netos."
Há motivos para esperar que os jovens ainda possam fazer uma mudança e salvar o mundo para as gerações futuras?
Eles estão a liderar. Na sexta-feira da semana passada, houve uma greve
climática global de jovens, centenas de milhares deles nas ruas da
Europa, exigindo que as nossas gerações, a sua e a minha, façam algo
para acabar com a crise que está a destruir as vidas deles, mas isso
quase não foi relatado nos EUA. Não sei como foi em Portugal. Mas são os
jovens que nos imploram. Agora, voltemo-nos para a cimeira de Davos no
ano passado, dos ricos e poderosos. Greta Thunberg, uma adolescente, foi
lá e teve um discurso sóbrio e cuidadoso sobre a situação atual. O
secretário-geral da ONU teria concordado com cada palavra. Terminou a
dizer: vocês traíram-nos. Essas palavras devem ser gravadas na
consciência de todos. Na minha geração e na sua. Traímos a juventude do
mundo. Estamos a trai-los agora. Estamos a trair os nossos filhos e
netos.
Fonte: https://www.dn.pt/politica/-o-que-esta-a-acontecer-no-mundo-nao-e-so-profundamente-imoral-mas-tambem-suicida-14201301.html
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