terça-feira, 26 de outubro de 2021

Pandemia estabelece novas regras do sono

Cena de "O Clube da Luta" — Foto: Divulgação 

Cena de "O Clube da Luta" — Foto: Divulgação

A vida profissional amarrava a maioria de nós a um horário único para todos; vamos torcer para que isso mude

Por Simon Kuper, Financial Times

23/10/2021

Quando passo algum tempo em Madri, fico maravilhado com as manhãs. Esta é uma cidade que dorme tarde. Na primeira vez que cheguei aqui, fiquei vagando antes das 9h da manhã à procura de algum café, apenas para encontrar suas portas ainda fechadas.

Os espanhóis acordam em horários que os americanos já estão no trabalho. Eu sei que a Espanha tem problemas com o sono: as pessoas aqui dormem, em média, 30 a 40 minutos a menos por noite do que a média dos europeus, possivelmente porque estão no fuso horário errado. Em 1940, o ditador Franco passou o país ao fuso alemão, para mostrar solidariedade com Hitler, e nunca mais ninguém voltou os relógios para o fuso de antes.

De qualquer forma, as manhãs tardias da Espanha são o que busquei por toda minha vida. Sempre achei que os horários tradicionais de entrada na escola e no trabalho me obrigavam a sair da cama cedo demais. Muitas outras pessoas, claramente, sentem o mesmo: durante as medidas de confinamento da pandemia, quando quem trabalhava em casa pôde, repentinamente, escolher os próprios horários para acordar, a maioria passou a dormir até mais tarde.

Vamos torcer para que a atual revolução nas práticas de trabalho institucionalize essa liberdade. Antes da pandemia, a vida profissional amarrava a maioria de nós a uma tabela de horários única para todos os tipos de pessoas.

Os americanos se deram particularmente mal. “Working nine to five, what a way to make a living” (trabalhar das nove às cinco, que jeito de ganhar a vida), canta Dolly Parton. Na realidade, porém, o horário mais comum de início do trabalho para a maioria dos americanos em 2015 foi entre 7h45 e 7h59 (o que pode ser uma das muitas explicações para a atual grande onda de “Eu me demito” em andamento nos Estados Unidos).

Cena de "O Feitiço do Tempo" — Foto: Divulgação

Cena de "O Feitiço do Tempo" — Foto: Divulgação

A entrada no trabalho ao amanhecer favorecia as pessoas com o cronotipo (a inclinação do ciclo de sono, determinada geneticamente) de “pássaros madrugadores”. Walter Mischel, o psicólogo criador do famoso “experimento do marshmallow”, percebeu que ficava satisfeito em acordar às 5h, de forma que era frequente ele já ter trabalhado duas horas quando a maioria dos demais ainda mal começa a se automedicar à base de café. O executivo-chefe da Apple, Tim Cook, diz acordar antes da 4h.

Dada a tola associação entre acordar cedo e a virtude, aqueles com inclinações a passarinhos eram considerados trabalhadores dedicados. Eles, então, se tornaram chefes e passaram a definir os horários para o resto de nós. Em geral, também não eram afeitos a cochilos: a “siesta” deveria ser reconhecida como uma solução mundial para a produtividade, mas, em vez disso, tem sido em grande medida objeto de perseguição, até na Espanha.

“Os horários padronizados de trabalho forçam as corujas [de hábito noturno] a um ritmo antinatural de sono-despertar”, escreve Matthew Walker em “Por que nós dormimos - a nova ciência do sono e do sonho” (ed. Intrínseca). “O desempenho no trabalho das corujas, como um todo, pelas manhãs é bem inferior ao ideal, e elas são impedidas ainda mais de mostrar seu verdadeiro potencial de desempenho no fim da tarde e no início da noite, já que o horário padrão de trabalho acaba antes”.

Além disso, as “corujas”, em particular, sacrificam horas de sono para chegar ao trabalho em horários ridículos. Antes da pandemia, cerca de 30% dos americanos tinham em média seis horas ou menos de sono por noite.

Compromissos em horários demasiado cedo são especialmente nocivos para adolescentes, que naturalmente acordam mais tarde. “As escolas começam cedo demais”, declara sem meias palavras a agência federal americana Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC). A Academia Americana de Pediatras recomenda que as escolas comecem as aulas do ensino fundamental II e do ensino médio às 8h30 ou depois. Ainda assim, nos EUA, em 2014, 93% das escolas de ensino médio e 83% das de ensino fundamental II iniciavam as aulas antes desse horário, deixando as crianças “pescando” de sono na classe.

“Quanto mais tardio o cronotipo, pior os resultados na escola”, disse o cronobiólogo alemão Thomas Kantermann. As pessoas escolhem suas profissões, em parte, com base nos cronotipos. Os “pássaros madrugadores” se dão bem como padeiros ou professores, enquanto os jornais matutinos tradicionalmente eram feitos pelas “corujas”: claro, antes da chegada da internet, o pico do trabalho se dava à noite, quando a edição do dia seguinte era “colocada na cama”.

Mas, seja como for, os hábitos de sono dos adultos foram modelados pelo trabalho — parte da hegemonia do capitalismo sobre nossos corpos, argumenta o antropólogo Matthew Wolf-Meyer.

Abandonei o escritório e comecei a trabalhar em casa em 1998. Descobri nisso uma vida de maior produtividade: em vez de vagar pelos corredores do escritório atordoado demais para funcionar bem, me levanto quando me sinto suficientemente dormido (muitas vezes até volto um pouco para a cama depois de pegar as crianças da escola) e tiro um cochilo revigorante de 20 minutos à tarde. Tenho o raro privilégio de viver em meu horário natural.

A pandemia estendeu esse direito a dezenas de milhões de novos trabalhadores remotos. Durante o lockdown, a maioria deles começou seus dias mais tarde, embora não houvesse vida noturna para deixá-los acordados mais tempo.

No outono britânico passado, por exemplo, a jornada média de trabalho de quem trabalhou em casa começou às 10h45 (e também terminou tarde). Em estudo internacional com 113 mil pessoas em 20 países, Ju Lynn Ong, da Universidade Nacional de Cingapura, e outros descobriram que o início mais tarde, assim como a convergência dos horários de despertar nos dias da semana e nos fins de semana, ajudaram a diminuir a média dos batimentos cardíacos em repouso — um indicador de boa saúde.

Tendo em vista que o trabalho remoto veio para ficar, a moral é óbvia. Deixem as pessoas escolherem seus próprios horários de início de trabalho, sempre que possível. Pode ser necessário definir alguns horários essenciais, em que todos da equipe estejam trabalhando — entre 10h e 15h, digamos —, mas, fora isso, vamos destronar a tirania dos madrugadores, preferencialmente depois de dar uma boa cochilada de protesto. (Tradução de Sabino Ahumada)

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/10/23/pandemia-estabelece-novas-regras-do-sono.ghtml?VALOR-POST-TOP-24H-item-sel-10,top,0e32de05-03de-434f-b068-6b9bde9da4cc

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