terça-feira, 15 de outubro de 2024

Inteligência Artificial: “A autonomia está em perigo e isto é ruim para a democracia”.

 A entrevista é de Manuel G. Pascual, publicada por El País, 11-10-2024. A tradução é do Cepat.

 https://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2024/10/15_10_IA_pexels.png

Entrevista com Adela Cortina

15 Outubro 2024

Adela Cortina (Valência, 77 anos) nunca imaginou que escreveria um livro sobre Inteligência Artificial (IA). “Nós que trabalhamos no campo da ética temos muito interesse que o conhecimento progrida. A ciência e a tecnologia, bem direcionadas, são extraordinárias para a humanidade”, dispara ao iniciar a conversa com o El País. “A questão é que às vezes estão e às vezes não”. É disso que se trata a sua nova obra: Ética o ideología de la inteligencia artificial? (Paidós).

Professora emérita de Ética e Filosofia Política da Universidade de Valência e doutora honoris causa de oito universidades nacionais e estrangeiras, Cortina é uma das pensadoras mais conhecidas da Espanha. Foi a primeira mulher a ingressar na Real Academia de Ciências Morais e Políticas e é autora de mais de trinta livros, entre os quais se destacam Aporofobia: a aversão ao pobre (2017) e Para que serve realmente a ética? (Prêmio Nacional de Ensaio 2014). Nesta ocasião, a filósofa se concentra na tecnologia que monopoliza a atenção do mundo desde que, há dois anos, surgiu o ChatGPT.

Eis a entrevista.

Por que você está preocupada com a IA?

Penso que [Karl-Otto] Apel e [Jürgen] Habermas tinham razão quando diziam que existem três interesses do conhecimento: o técnico, o prático e o da emancipação. Quando o interesse técnico é regido pelo prático, o da moral, leva a uma verdadeira emancipação da sociedade.

A IA é saber científico-técnico que deve ser conduzido para alguma direção. Se quem o controla são grandes empresas que querem poder econômico ou países que querem poder geopolítico, então, não há nenhuma garantia de que será bem utilizado. Se esta tecnologia afeta toda a humanidade, deve beneficiar toda a humanidade.

Considera que o debate em torno da IA está ideologizado?

No livro, concentro-me nas duas posições principais: a dos temorosos da IA, que acreditam que ela será a fonte de todos os males, e a dos mais entusiastas, os transumanistas e pós-humanistas, que acreditam que a IA ajudará a alcançar um mundo absolutamente feliz.

Há quem, como Ray Kurzweil [diretor de Tecnologia do Google], apresente data: diz que em 2048 teremos acabado com a morte. Isso seria ideologia, no sentido tradicional do termo: uma visão distorcida da realidade que é mantida para perseguir determinados objetivos. Aí não se está agindo como na ética.

Parece-me extremamente perigoso mentir, dizer que vamos solucionar tudo com a IA. O perigo dessa posição é que está assentada na autoridade da ciência, e isto faz com que as pessoas a levem a sério. Sou seguidora da Escola de Frankfurt, que diz que a ciência e a técnica são maravilhosas, mas quando se tornam ideologia, porque já são uma força produtiva, então, mudamos o sentido do assunto.

Quais princípios éticos deveriam reger uma IA confiável?

A sociedade emancipada é a que está livre de ideologias e para isso deve estar dotada de uma ética. Os princípios básicos são o da não maleficência (não causar danos), o da beneficência (fazer o bem), o da autonomia e o da justiça.

Além desses, existem os princípios da rastreabilidade e explicabilidade, um tema complicado quando lidamos com algoritmos, e o da prestação de contas. E há ainda o princípio da precaução, que nós, europeus, demonstramos.

Existe uma boa legislação sobre este assunto?

Nós, europeus, costumamos ser chamados de excessivamente normativistas, mas penso que não está errado sermos cautelosos, há vidas humanas em jogo. Isto não deve impedir que a pesquisa prossiga. É necessária uma ética da responsabilidade. Delimitar até onde chegamos na pesquisa não é simples.

No livro, você debate se a IA pode ser sujeito ou sempre será uma ferramenta. Já está na hora de um debate a este respeito?

Os especialistas dizem que, no momento, não chegamos à inteligência artificial geral, o que seria equiparável à dos seres humanos. Para isso, seria necessário que tivessem um corpo biológico, pois é a forma de ter significatividade, intencionalidade etc. O que temos são inteligências artificiais especiais, capazes de realizar muito bem certas tarefas, até melhor do que nós.

Penso que é muito importante sabermos onde estamos e que se abra um debate sério sobre isso. Hoje, é um instrumento e, portanto, deve ser utilizado para um fim ou outro, mas nunca para substituir os seres humanos. Não se pode substituir os professores, os juízes e nem os médicos por algoritmos. Os algoritmos não tomam decisões, mas fornecem resultados. É a pessoa que deve ser responsável pela decisão última.

Uma das consequências muito ruins que o uso da IA pode ter é a de transformar as máquinas em protagonistas da vida. É preciso ter muito cuidado porque temos tendência ao comodismo, e quando um resultado já vem dado, você pode ter a tentação de simplesmente adotá-lo.

Faz sentido falar de ‘roboeticistas’ ou de ética das máquinas?

Já há algum tempo que se tenta criar máquinas éticas que tenham uma série de valores incorporados. Parece-me muito interessante que esses códigos possam ser assumidos de alguma forma, seja nos algoritmos que dirigem veículos ou nos robôs que cuidam dos idosos, para que tomem decisões sem a necessidade de ter um humano perto o tempo todo.

Você dedica a última parte do livro para abordar a relação entre a educação e a IA. Por que você se concentra nesta atividade?

A educação é a chave de nossas sociedades e está muito descuidada. Na China, estão muito preocupados em aplicar a IA na educação, porque dizem que se explicamos às pessoas sobre o ontem, perdemos o amanhã.

Para mim, o tema central da educação é a justiça: há muitas pessoas que não têm acesso a essas ferramentas, o que faz com que a desigualdade aumente cada vez mais. Também estou preocupada com a autonomia. Uma das grandes tarefas do Iluminismo é potencializar a autonomia das pessoas, para que saibam dirigir suas próprias vidas.

Devemos educar para que haja cidadadãos críticos, maduros, que se movam por si, por suas próprias convicções. Que não se deixem levar por andadores, como dizia Kant, mas, ao contrário, que se guiem por sua própria razão.

E isso é muito difícil em um mundo onde as plataformas estão buscando que as dediquemos muito tempo para que coletem os nossos dados. Estão tornando o ensino superficial e as pessoas cada vez menos autônomas. Penso que a autonomia está em perigo e isto é ruim para a democracia.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/644760-inteligencia-artificial-a-autonomia-esta-em-perigo-e-isto-e-ruim-para-a-democracia-entrevista-com-adela-cortina

Entreter não é ensinar

 Fabrício Carpinejar*

 

MicroOne / https://stock.adobe.com/Pela escassez de realidade, o professor se tornou tecnologia avançada, ultramoderna.

O professor não tem que recorrer a efeitos especiais, a exercícios pirotécnicos, a uma didática de palco para chamar atenção e ganhar a confiança



O professor deve ter em mente que ele não tem a função de entreter.

Entreter não é ensinar.

Não tem que fazer show, espetáculo, dancinha, stand-up, coreografia. Não tem que tocar violão, cantar, encenar. Não é animador de auditório.

Não tem que recorrer a efeitos especiais, a exercícios pirotécnicos, a uma didática de palco para chamar atenção e ganhar a confiança. Não tem sequer a obrigação de ser lúdico ou fingir que está brincando ou se divertindo. Senão matrículas seriam ingressos.

Exigimos demais dos professores, cobramos demais dos professores, criticamos demais os professores. Parece que eles precisam ser tudo, menos professores.

Diante das distrações do mundo contemporâneo, com olhar vidrado exclusivamente no celular, estudar é um momento raro.

Diante da intoxicação das redes sociais e avatares, ter um educador se expressando na frente da classe, escrevendo lições na lousa, é uma ocasião incomum.

No meio do excesso de virtualidade, sua presença é revolucionária.

O aluno recebe em aula o que jamais encontrará em outro ambiente no seu dia: cinco horas de foco.

Na convivência familiar, nunca ele vai experimentar tamanha concentração.

Só na escola existe ainda a vivência do silêncio, do respeito, de ouvir, de esperar a sua vez para falar, de levantar a mão para perguntar algo.

Só na escola há o contato com a caligrafia, sem digitar, sem corretor ortográfico.

Só na escola se pode exercitar a memória integralmente, sem dispersão, sem consultar o Google, raciocinando a partir das próprias ideias.

Só na escola se rompe a simultaneidade para privilegiar tarefa a tarefa. 

Só na escola a empatia é cultivada coletivamente, num movimento de turma.

Só na escola se exerce o direito de ficar off-line.

Só na escola é oferecido tempo para a inteligência natural.

Pela escassez de realidade, o professor se tornou tecnologia avançada, ultramoderna, disputadíssima.

É alguém que traz um conteúdo com testemunho de vida, com a sabedoria de quem lidou com aquela matéria desde sempre. É alguém que estabelece analogias e comparações, mostrando a ciência do cotidiano. É alguém que se formou para lecionar e explicar as fórmulas com exemplos práticos.

Não peça para o professor ser um artista. Ele é um mestre em seu ofício, na simplicidade sofisticada da transmissão de conhecimento. Basta a contundência da sua voz e dos seus gestos. E já é muito.

Já é muito controlar uma turma pelas palavras e pausas. Já é muito preparar e corrigir os temas e as provas. Já é muito participar das reuniões da escola e promover a aproximação com as famílias. Já é muito identificar cada estudante pelo nome, sobrenome e necessidades. Já é muita dedicação, doação, entrega em dois turnos diários. Querem mais do que isso? Que insalubridade emocional é essa?

A escola é o único lugar em que ainda é possível desenvolver rigor, disciplina, humildade, obediência.

* Poeta, cronista e jornalista, autor de 48 livros entre crônicas, poesia, reportagem e infanto-juvenil, duas vezes prêmio Jabuti. 

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/carpinejar/noticia/2024/10/entreter-nao-e-ensinar-cm292bpds001t014u6cxeb7tx.html

 

Modernidade e atraso

Por Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

Modernidade e atraso – Jornal da USP

Não é fácil sair do estado de inércia sob estruturas arcaicas que ligam o Brasil ao passado. Donde emerge a questão: que tipos de reformas se fazem necessárias para fazer avançar o país em sua trilha civilizatória? As indicações para se obter um estágio de modernização, de maneira quase consensual, assinalam para as necessidades de reformas do sistema político-partidário-eleitoral, da estrutura do Estado com a respectiva redefinição de atribuições e melhor divisão de competências entre os três poderes, do sistema tributário-fiscal e da previdência, reformas consideradas como prioritárias para redimensionar o perfil institucional do país.

Mas isso não é coisa muito vaga, um devaneio, uma chegada ao topo da montanha sem enfrentar o percurso vertiginoso do caminho? Sem dúvida, parece sonho. E como iniciar esse trajeto? Ora, fazendo coisas como o que se fez no último dia 6, ou seja, usando a ferramenta de poder do eleitor, o voto, para mudar a moldura da parede. Por isso, o processo eleitoral é importante. Quanto mais eleições, melhor para a democracia.

Urge mudar a fisionomia cultural do país. Tarefa complexa. De início, uma breve explicação. O sociólogo inglês Thomas Humphrey Marshall, em sua obra, diz que o desenvolvimento da cidadania depende de três elementos, surgidos e afirmados cada qual em um século diferente: os direitos civis teriam se formado no século 18; os direitos políticos, no século 19, e os direitos sociais, no século 20. A pirâmide, portanto, tem no topo os direitos civis, o direito à livre expressão, o direito à propriedade, o direito à associação etc.

No Brasil, ocorreu uma inversão dessas categorias. Getúlio Vargas, na década de 1930, começou a lapidar a pirâmide com os direitos sociais, a partir da febre de criação de sindicatos. No fundo, queria atrair a base de trabalhadores para seu intento ditatorial. Depois, garantiu ao país os direitos políticos, com a agenda eleitoral, o voto. Por último, vieram os direitos civis, aqueles que iniciavam a tríade inglesa da cidadania. A pirâmide varguista cunhou o conceito de estadania, na expressão do historiador José Murilo de Carvalho. A cidadania sob o escudo do Estado.

Com a estadania, descortina-se a paisagem do Estado protetor e provedor, que, na simbologia usada pelo escritor e embaixador J.O. Meira Penna, em sua obra Em Berço Esplêndido, ganha o nome de “vaca leiteira”, com as tetas que oferecem leite aos brasileiros. Acostumamo-nos a buscar a vaca, na crença de que ela tem a obrigação de saciar a sede dos nativos. A mamata se espraia. E finca em todos os espaços do território as raízes da cultura paternalista.

Mudar essa cultura é tarefa que demanda tempo, muito tempo. Ao fundo, esculpida no inconsciente coletivo a imagem de que o Estado tem a obrigação de nos salvar. Ora, essa é a barreira que impede avanços rápidos em nossa caminhada. E que atrapalham a criação de novos padrões de organização social e produtiva. Mesmo assim, por mais bem feitas, eventuais reformas não conseguirão gerar resultados suficientes para alterar, de modo profundo, a fisionomia cultural do país. Como se induz, há de se considerar o alto grau de canibalização de nossa cultura política. Reformas, mesmo as mais profundas, tendem a cair na garganta da homogeneização cultural. Com o tempo, perdem vigor, criam anticorpos e, após determinado ciclo, geram vírus (incluindo os jabutis) que as desfiguram por completo. Por trás dessa questão, há outra: as elites costumam promover reformas com a intenção de ajustá-las mais às suas necessidades do que às demandas sociais.

A reforma do sistema político-eleitoral-partidário poderá, por exemplo, melhorar a representatividade dos agentes, qualificando os quadros, redefinindo a proporcionalidade entre os Estados, de acordo com o princípio das densidades eleitorais; podem estabelecer um tipo de voto que traduza, com fidelidade, as reivindicações das comunidades; aperfeiçoar o perfil partidário, por meio de normas mais rigorosas para criação de partidos e formação de corpos doutrinários mais densos ou clarificar as campanhas, com disposições sobre financiamentos.

Tudo isso terá sua importância, mas não seriam suficientes para resolver questões de fundo. O ajuste nas regras do jogo não significa necessariamente melhoria da qualidade dos parceiros. O eleitor, em qualquer sistema ou sob qualquer regra, continuará a ser manipulado. A incultura política de imensos contingentes continuará dando espaço a uma categoria de representantes desqualificados.

Significa intuir que a modernização do país, vista pelo prisma das chamadas reformas clássicas, cobrirá apenas parcelas da sociedade, sistemas e setores da burocracia estatal, e terá, como contrapeso, a marginalidade de cordões periféricos, o chamado território dos excluídos dos benefícios da civilização.

Continuaremos a ter um Brasil franksteiniano, ilhas de modernidade e racionalidade com mangues de ignorância e miséria. Ou seja, reformas feitas por cima apenas protelarão o desenvolvimento integral e autossustentado do País.

Por último, sinaliza-se uma pista: a reforma da educação básica. Urge olhar para a escola pública deteriorada. Milhões de brasileiros permanecem fora do sistema educacional. Medidas paliativas, como as de combate à fome e à miséria (Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida) e congêneres, dentro de uma visão meramente assistencialista, podem ter méritos, no curto prazo, minorando o desespero que se alastra em alguns espaços. Jamais, porém, quebrarão os elos que prendem o país ao passado e que escancaram traços de uma comunidade que participa da fila dos cultivadores da mamata. Programas utilitaristas, de aplicação imediata, ou reformas de elite, para atender o clima das circunstâncias e a gritaria dos contrários, são apenas reboco nas paredes da crise.

Fonte:  https://jornal.usp.br/articulistas/gaudencio-torquato/modernidade-e-atraso/

A VIDA DOS LIVROS

 Por Guilherme d'Oliveira Martins

  

De 14 a 20 de outubro de 2024


O Papel da Literatura na Educação
(Paulinas, 2024) da autoria do Papa Francisco constitui uma importante reflexão sobre a importância da leitura, da literatura e da arte como fatores de enriquecimento humano e de emancipação.


 

UMA CARTA OPORTUNA
A carta intitulada O Papel da Literatura na Educação (Paulinas, 2024) da autoria do Papa Francisco constitui uma boa surpresa e uma leitura para todos, que pretende despertar para o amor pela leitura, propondo uma nova atitude para os cristãos em geral, para os candidatos à formação eclesiástica e para os leitores em geral, visando abrir espaço à leitura de obras literárias. A função pedagógica da obra é, assim, evidente, constituindo um precioso apelo à valorização do livro e da leitura. De facto, a literatura tem um efeito, inequivocamente positivo, de "educar o coração e a mente do pastor" para "um exercício livre e humilde da própria racionalidade", bem como para o "reconhecimento fecundo do pluralismo das línguas humanas". Deste modo, ler amplia a sensibilidade humana e permite "uma grande abertura espiritual". De facto, deve haver uma preocupação dos cristãos de "tocar o coração dos seres humanos contemporâneos para que eles possam comover-se e abrir-se diante da proclamação do Senhor Jesus". "A contribuição que a literatura e a poesia podem oferecer é de valor inigualável". Contudo, se o Papa refere em especial o caso dos cristãos, pode considerar-se que esta carta é dirigida a todas as pessoas, considerando a leitura e a arte fatores de aproximação entre todos no sentido do respeito mútuo, da imaginação, do pluralismo e da criatividade.  São incontestáveis os benefícios de um bom livro que, "muitas vezes no tédio das férias, no calor e na solidão de alguns bairros desertos", torna-se "um oásis que nos distancia de outras escolhas" e que, em "momentos de cansaço, raiva, deceção, fracasso", pode ajudar-nos a superar tais momentos e a "ter um pouco mais de serenidade". Porque talvez "essa leitura abra novos espaços interiores" que nos ajudem a não nos fecharmos "naquelas poucas ideias obsessivas", que "nos prendem de maneira inexorável". Aliás, muitas vezes as experiências com redes sociais têm conduzido a um fechamento ou a uma lógica de circuito fechado, que a literatura e a reflexão contrariam. E o Papa Francisco recorda que as pessoas costumavam dedicar-se à leitura com mais frequência "antes da onipresença dos meios de comunicação social, das redes sociais, dos telefones celulares e de outros dispositivos". Enquanto um produto audiovisual pode ser "mais completo", a verdade é que "a margem e o tempo para 'enriquecer' a narrativa ou interpretá-la são geralmente reduzidos", todavia a leitura de um livro desafia o leitor a um papel mais ativo, porque a obra literária é "um texto vivo e sempre fértil". Acontece que, quando lê, “o leitor é enriquecido com o que recebe do autor", tantas vezes distante no espaço e no tempo, mas que nos permite ir além e isso permite fazer florescer a riqueza de sua própria pessoa. Assim, importa alcançar um acesso privilegiado, através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano. Porque, na prática, a literatura tem a ver "com o que cada um de nós deseja da vida" e "entra em uma relação íntima com nossa existência concreta, com as suas tensões essenciais, com os seus desejos e os seus significados".


AS VIRTUALIDADES DA LEITURA
O Papa Francisco adverte ainda para que não se leia por obrigação, devendo-se selecionar as leituras "com abertura, surpresa e flexibilidade". E assim enuncia as consequências positivas que decorrem do "hábito de ler", como ajuda a "adquirir um vocabulário mais amplo", a desenvolver a própria inteligência, a estimular a imaginação e a criatividade, permitindo que as pessoas aprendam a exprimir as suas narrativas de uma forma mais rica, melhorando a capacidade de concentração, reduzindo os níveis de deficit cognitivo, e acalmando o stress e a ansiedade. Em termos concretos, a leitura "prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida", continua Francisco, "ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida". E com Jorge Luis Borges podemos chegar a definir literatura como a possibilidade de "ouvir a voz de alguém". E esse alguém, próximo ou distante no tempo e no lugar, torna-se um valioso companheiro, com quem temos possibilidade de dialogar, transformando esse intercâmbio num fator de compreensão mútua e de reconhecimento comum.


A literatura permite, afinal, “fazer eficazmente a experiência da vida”. E se a nossa visão ordinária do mundo é “reduzida” e limitada pela pressão que os objetivos operacionais e imediatos do nosso agir exercem sobre nós “também o serviço – cultual, pastoral, caritativo – pode tornar-se” somente algo a fazer, o risco passa a ser o cair na busca duma “eficiência que banaliza o discernimento, empobrece a sensibilidade e reduz a complexidade”. Assim, na "nossa vida quotidiana", devemos aprender “a distanciarmo-nos do imediato, a reduzir a velocidade, a contemplar e a escutar. Isto pode acontecer quando, de modo desinteressado, uma pessoa se detém para ler um livro. É necessário “recuperar formas hospitaleiras e não estratégicas de relacionamento: ocorre distância, lentidão, liberdade para uma abordagem da realidade, em palavras simples, a literatura nos permite "treinar o nosso olhar para buscar e explorar a verdade das pessoas e das situações", "nos ajuda a dizer nossa presença no mundo". Além disso, insiste o Papa, "lendo um texto literário" vemos através dos olhos dos outros, desenvolvemos "o poder empático da imaginação", "descobrimos que o que sentimos não é só nosso, é universal, e, por isso, até a pessoa mais abandonada não se sente só”. E assim descobrimos que aquilo que sentimos não é apenas nosso, é universal, e por isso descobrimos alguém que nos acompanha.

Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-vida-dos-livros-1758171

Os 12 Maiores Perigos da Inteligência Artificial

Por Jonathan Wai

O especialista em IA Gary Marcus detalha quais são os maiores riscos da tecnologia para humanidade


Gary Marcus, especialista em inteligência artificial, escreveu em seu novo livro sobre os maiores perigos da IA. “A longo prazo, não sabemos como criar uma IA segura e confiável, e isso não pode ser bom”, pontua. “Como, em algum momento, a IA substituirá a maioria dos empregos, e um pequeno grupo de oligarcas concentrará grande parte do dinheiro, talvez precisemos de uma renda básica universal”, acrescenta.
Acessibilidade

Além das afirmações acima, ele defende a criação de uma agência reguladora para a IA: “Gostando ou não, a IA está transformando tudo, e precisamos de uma agência que atue de forma dinâmica para aproveitar oportunidades e mitigar riscos. Uma função seria a pré-avaliação de novas tecnologias.”

Marcus também alerta: “Precisamos nos manifestar e insistir que descartaremos líderes que entreguem o controle às grandes empresas de tecnologia. O momento para boicotar a IA generativa pode estar próximo.”


Confira os 12 Perigos Imediatos da IA:


1. Desinformação política em massa e automatizada

“Sistemas de IA generativa são as metralhadoras (ou bombas nucleares) da desinformação, tornando-a mais rápida, barata e eficiente”, escreve Marcus. “Durante as eleições de 2016, a Rússia gastou US$ 1,25 milhão por mês em fazendas de trolls humanos, criando conteúdo falso para gerar discórdia nos EUA.”


2. Manipulação de mercado

“Além de eleições, agentes mal-intencionados também tentarão influenciar mercados. Alertei o Congresso sobre essa possibilidade em 18 de maio de 2023; quatro dias depois, isso se tornou realidade: uma imagem falsa do Pentágono em chamas se espalhou pela internet e fez a bolsa cair brevemente.”


3. Desinformação acidental

“Mesmo sem intenção de enganar, os modelos de linguagem podem gerar desinformação por acidente. Um estudo do Instituto de IA Centrada no Humano, da Universidade de Stanford, mostrou que as respostas desses sistemas a perguntas médicas são inconsistentes e, muitas vezes, imprecisas.”


4. Difamação

“Um caso específico de desinformação é o dano à reputação de indivíduos. Em um incidente grave, o ChatGPT alegou que um professor de direito esteve envolvido em um caso de assédio sexual durante uma viagem ao Alasca, com base em um artigo inexistente do The Washington Post.”


5. Deepfakes não consensuais

“Deepfakes estão cada vez mais realistas. Em outubro de 2023, alguns estudantes começaram a usar IA para criar imagens de teor sexual falsas e não autorizadas de colegas.”


6. Facilitação de crimes

“A IA já está sendo usada em golpes de clonagem de voz e phishing. Em um golpe conhecido, criminosos clonaram a voz de uma criança, ligaram para os pais simulando um sequestro e exigiram resgate em bitcoin.”


7. Cibersegurança

“Ao escanear milhões de linhas de código automaticamente, a IA pode descobrir rapidamente falhas de segurança em softwares e celulares, uma tarefa que antes só podia ser feita por especialistas.”


8. Discriminação e preconceito

“O viés em sistemas de IA é um problema antigo. Em 2013, a pesquisadora Latanya Sweeney mostrou que nomes afro-americanos geravam resultados de anúncios diferentes no Google, incluindo propagandas de checagem de antecedentes criminais.”


9. Privacidade e vazamento de dados

Marcus cita o livro The Age of Surveillance Capitalism, de Shoshana Zuboff, que debate a espionagem feita por empresas. “A experiência humana é tratada como matéria-prima para gerar dados comportamentais, que são vendidos para quem quiser”, acrescenta.


10. Uso não autorizado de propriedade intelectual

“Grande parte do conteúdo que a IA reproduz é protegido por direitos autorais e utilizado sem o consentimento dos criadores”, diz Marcus. “Esse fenômeno é chamado de Grande Roubo de Dados, um movimento que transfere a riqueza de muitos para poucas empresas, a menos que haja intervenção governamental.”


11. Dependência excessiva de sistemas pouco confiáveis

“Usar IA em aplicações críticas à segurança é um erro que pode acontecer. Imagine um carro autônomo usando IA para buscar a localização de outro veículo, ou uma arma automatizada que cria inimigos fictícios. E pior: sistemas de IA lançando armas nucleares por engano.”


12. Impactos ambientais

“O treinamento de modelos de linguagem demanda uma enorme quantidade de energia. A geração de uma única imagem consome tanta energia quanto carregar um celular. Como a IA será usada bilhões de vezes por dia, o impacto será significativo”, explica Marcus. Ele também alerta que a tendência é treinar modelos cada vez maiores, o que exigirá mais energia.

Leia mais em: https://forbes.com.br/forbes-tech/2024/10/os-12-maiores-perigos-da-inteligencia-artificial/?utm_campaign=forbes_daily_-_1510&utm_medium=Social&utm_source=NewsDaily

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Elitismo intelectual precisa parar de “matar a esquerda”

 por

 

Arte: “A Grande Mesa”, de Henri Fantin-Latour (1836–1904)

Safatle nos propõe assistir às dificuldades do campo da esquerda de braços cruzados, como se fôssemos espectadores da desgraça ou profetas do fim do mundo. É necessário sair dos bancos FFLCH, descer dos saltos e vir às periferias construir junto

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Em entrevista para Uol, o filósofo da USP, Vladmir Safatle afirmou novamente que a “esquerda morreu”. De maneira reiterada, Safatle tem feito esta afirmação, pautado por preocupações legitimas quanto ao posicionamento ideológico recuado dos partidos de esquerda, seja no processo eleitoral, seja na atuação do governo Lula. Há de se concordar, que sim, o recuo tático dos partidos de esquerda e sua postura reativa frente ao avanço da extrema-direita, é sim uma preocupação. Contudo, algumas afirmações de Safatle são bastante preocupantes, tanto por seu conteúdo, quanto pelo momento em que estão sendo feitas.

O resultado do 1º turno das eleições de 2024, mostrou que a centro-direita e a extrema direita, tiveram avanços significativos, seja na quantidade de prefeitos e vereadores eleitos, seja nas vitórias ocorridas nas grandes cidades (acima de 200 mil habitantes). Isso reflete, que a tática dos partidos de esquerda em adotar, discursos ideologicamente recuados, foi fracassada. Essa ideia apregoada pelas grandes empresas de marketing eleitoral, de que a esquerda precisaria moderar o seu discurso para não ser vista como “radical”, para supostamente conquistar o eleitor médio, foi o grande derrotado nestas eleições! Os partidos de esquerda escutaram o conto da carochinha de marketeiros ultrapassados, que tiveram a única intenção de abocanhar o fundo eleitoral e não em fazer enfretamento político. Esta tática acéfala e cunhada em dados estatísticos vazios e sem análise crítica da realidade, custou caríssimo aos partidos de esquerda, seja pelos volumes vultuosos de recursos do fundo eleitoral despejado com marketing eleitoral, seja pelas derrotas colhidas na eleição.

Entretanto, insistir na afirmação que isso representa a morte da esquerda, é um erro crasso! Este derrotismo de Safatle, nos leva ao mais puro imobilismo, nos leva a assistir as dificuldades do campo da esquerda, de braços cruzados, como se fossemos expectadores da desgraça ou profetas do fim do mundo. É necessário sair dos bancos mofados da FFLCH-USP, sair desta postura derrotista e elitista, e reconhecer que sim há dificuldades, mas nunca, jamais, haverá vitória, sem luta! É necessário apoiar os “renascimentos” dos ideais de esquerda e não apontar insistentemente sua morte, e muito menos “chutar cachorro morto”.

“Ah, mas naquele tempo de fundação do PT, a esquerda funcionava com uma tríade juntando a academia, os sindicatos e igrejas progressistas e isso precisa ser renovado”

Estamos em 2024, com outros fatores conjunturais e estruturais, no meio de uma eleição municipal disputadíssima, e este “Sebastianismo de Esquerda”, definitivamente não contribui em nada.

Safatle afirma, que a esquerda está envelhecida… Em São Paulo, Boulos é candidato do PSOL, apoiado pelo PT, e tem 42 anos. A vereadora mais votada do PT, Luna Zarattini, tem 30 anos, outro novo vereador do partido, Dheison Silva tem 36 anos, um jovem de periferia. No PSOL, Luana Alves da luta da educação popular, Amanda Paschoal da pauta LGBTQIAPN+, Keit Lima da pauta das periferias e da participação popular, todos, abaixo de 35 anos.

Ao menos, na cidade de Vladmir, São Paulo, esta afirmação de que a esquerda estaria envelhecida, é absolutamente falsa! Objetivamente, citamos jovens vereadores eleitos, e com discurso atuais e avançados, ligados a pauta das mulheres, das periferias, da participação popular na política. Por que Vladmir Safatle “assassina” a esquerda, mesmo enxergando estas novidades em São Paulo?

Além disso, Vladmir afirma que a esquerda não tem proposta para as periferias e ignora o fato de que movimentos populares, fóruns e redes dos 5 cantos da Capital paulista, se reuniram para realizarem o “Encontro das Periferias” no dia 25 de agosto de 2024, movimento autônomo, que reivindica voz política e direitos. Lutar por voz política não é lutar por Soberania Popular? Reconhecer as feridas da escravidão, o efeito nefasto do capitalismo na formação proposital das periferias urbana, e lutar por mobilidade urbana e empregabilidade nas periferias, não é uma luta pela igualdade?

O movimento entregou em suas mãos, em Itaquera, o Manifesto das Periferias. Por que este documento foi ignorado em sua análise? Dia, inclusive que, membros do Movimento o interpelaram sobre sua ideia de “Morte das esquerdas”. O documento sintetizou 98 propostas para as periferias, assinada por diversas candidaturas a vereador e pelo próprio candidato a prefeito, Guilherme Boulos. Por que novamente, Safatle insiste em “assassinar” a esquerda, mesmo com este evidente surgimento de um movimento popular autônomo?

Afirmar, que a esquerda não tem proposta para periferia e que está envelhecida, é absolutamente falso. É possível afirmar sim, que os Movimentos Populares poderiam ter sido mais ouvidos pelas campanhas eleitorais, que mais candidaturas avançadas poderiam ter tido mais espaço. É possível sim, afirmar que membros da Elite Intelectual, como ele próprio, ignoram a existência de novos Movimentos Populares nas periferias. Mas dizer que a esquerda está morta, sinceramente, é um equívoco!

Me parece, que sim, há uma esquerda morrendo, a esquerda burocrata, a esquerda dos gabinetes, a esquerda dos simpósios e congressos mofados da USP, a esquerda que ainda cai em contos da carochinha de marqueteiros.

A elite intelectual deste país, especialmente de esquerda, precisa perceber o nascimento de novos movimentos populares, novas ideias em disputa, novas propostas de organização partidária. É possível sair do banco confortável do niilismo, mas definitivamente não será fazendo ilações no meio de uma disputa eleitoral acirrada. Não há projeto legitimamente de esquerda que não seja construído com o povo e com as periferias… Cadê os intelectuais, membros das direções partidárias construindo novos projetos nacionais junto com as periferias? É necessário descer do salto e vir aqui pra base e construir junto! Há momentos adequados para autocrítica, hoje, dia 14 de outubro, não é o momento, agora temos que ir para cima de Ricardo Nunes, ir pras ruas e disputar uma eleição dificílima, em que esquerda precisa de apoio e não de gente do nosso campo atirando pedras!

* Editor de Outras Palavras. Formado em jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), colaborou com veículos como Superinteressante, Caros Amigos, Brasil de Fato, Rede Brasil Atual e Revista Móbile. Assessorou movimentos sociais e entidades envolvidas na pauta urbana. Especializado na cobertura de temas relativos ao direito à cidade e em conflitos urbanos, mantém o blog outraspalavras.net/doispontosEditor de Outras Palavras. Formado em jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), colaborou com veículos como Superinteressante, Caros Amigos, Brasil de Fato, Rede Brasil Atual e Revista Móbile. Assessorou movimentos sociais e entidades envolvidas na pauta urbana. Especializado na cobertura de temas relativos ao direito à cidade e em conflitos urbanos, mantém o blog outraspalavras.net/doispontos

Fonte https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/elitismo-intelectual-precisa-parar-de-matar-a-esquerda/

Jessé Souza, identitarismo e falência da esquerda.

Por Francisco Fernandes Ladeira*

Jessé Souza (reprodução)


Nos longínquos anos 80, quando eu estava na primeira série do que hoje chamamos ensino fundamental, nossa turma, recém-alfabetizada, teve como primeira leitura uma adaptação do livro “A roupa nova do imperador”, de Hans Christian Andersen.

Na obra, dois supostos tecelões alegavam ter feito uma roupa nova para o imperador, visível apenas para os indivíduos inteligentes. Não se tratava de vestimenta alguma. Porém, os habitantes do reino, com receio de se passarem por estúpidos, afirmavam visualizar a tal roupa. Por sua vez, uma criança, com toda sinceridade habitual a esta faixa etária, disse em meio a multidão: “o imperador está nu”.

Algo similar ao descrito acima tem ocorrido em nosso cenário político atual. O identitarismo – ideologia criada pelo imperialismo estadunidense para desmobilizar a luta dos trabalhadores – tem sido um dos principais fatores para as sucessivas derrotas eleitorais da esquerda e ascenção da extrema-direita, mas parte da esquerda – não por receio de parecer ignorante, mas por pura covardia – insiste em fingir que não ocorre essa realidade.
Eis que, no último domingo (13/10), em entrevista para o jornal O Globo, o sociólogo Jessé Souza denunciou o Cavalo de Troia que o identitarismo representa para esquerda. Ao contrário da história de Andersen, não se trata de sinceridade infantil, mas de honestidade e coragem intelectual. Diga-se de passagem, já há um bom tempo Jessé vem adotando essa linha crítica (e necessária).
A partir do resultado da última eleição municipal paulistana – com o sucesso eleitoral de Pablo Marçal em regiões periféricas e a dificuldade de Guilherme Boulos em mobilizar o eleitorado de Lula – Jessé afirmou que o candidato do PSOL pagou o preço da “esquerda legal”, que discute gênero e raça e deixou pobres na direita.
Segundo o sociólogo, o identitarismo ecoa na classe média e na elite, mas não no pobre, maioria dos eleitores (consequentemente, quem decide uma eleição). Assim, o campo progressista terá que lutar para reconquistar o eleitor pobre, que se sente valorizado (mesmo que de uma forma hipócrita, distorcida e oportunista) pelo bolsonarismo; por meio de pastores neopentecostais e coches picaretas (como o anteriormente mencionado Marçal).
Evidentemente, eleição é um processo complexo, envolve múltiplos fatores. No entanto, os exemplos recentes nos têm mostrado que, quando as pautas morais (agenda dos costumes) predominam numa campanha, há forte tendência a favorecer a extrema-direita. Em contrapartida, quando a esquerda deixa de lado o identitarismo, e foca em questões que realmente importam para a classe trabalhadora – como emprego, renda, transporte e saúde -, a possibilidade de êxito é bem maior.
O primeiro turno das últimas eleições municipais nos mostraram que a pauta identitária pode eleger um ou outro vereador, mas não chega ao poder de fato: o executivo. O PSOL, partido orgânico do identitarismo, não elegeu um prefeito sequer.
Basta conversarmos com as pessoas nas ruas para constatarmos o repúdio do povo ao identitarismo – que, como todo ideologia elitista, se dirige às massas de maneira arrogante e ditando regras. O cidadão comum – ocupado com as obrigações diárias pela sobrevivência – quer mudanças concretas, não medidas simbólicas e inócuas, como as alterações linguísticas, conforme apregoam os identitários.
Em suma, o recado das urnas é claro: ou a esquerda se livra do identitarismo, ou o povão vai se livrar da esquerda.
Fonte:  https://desacato.info/jesse-souza-identitarismo-e-falencia-da-esquerda-por-francisco-fernandes-ladeira/

Ironia, uma chave para ler Fernando Pessoa

Texto: Luiz Prado

https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/20241011_fernando-pessoa-o-ironista.png

Em livro LANÇADO PELA EDITORA DA USP, o professor caio gagliardi investiga a presença da ironia na obra do escritor português, destacando seu papel como identidade, gesto e performance.

Arte: Beatriz Haddad*


“O sorriso de Pessoa é um derivado de sua inteligência, nela fundado e implicado. Mas é também, e complementarmente, resultante da consciência trágica da existência, indulgente consigo e com a vida, gesto que supera a nota meramente cômica justamente por lhe acrescentar, como ocorre especialmente com o humorismo de Pirandello, a largueza da melancolia”, escreve o professor Caio Gagliardi – Imagem: Reprodução/Edusp

Nas páginas do póstumo Livro do Desassossego, Bernardo Soares, um dos heterônimos de Fernando Pessoa (1888-1935) – aqueles autores inventados, alguns com direito até mesmo a biografias –, apresenta uma distinção entre o ser humano e os animais que não se vê frequentemente por aí: “O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente”.

Colocada na tinta de um autor que “não existe de verdade” (afirmação bastante complexa em se tratando de Pessoa), a definição acima poderia passar batida, ser considerada trivial, mera provocação ou tirada de efeito. Mas ela também poderia ser muito mais. Levada a sério, guardaria a chave da visão de mundo – e de si mesmo – que compõe o próprio Fernando Pessoa e sintetiza boa parte dos procedimentos literários mobilizados pelo autor.

Essa é a investigação e a aposta que animam Fernando Pessoa Ironista, livro do professor Caio Gagliardi, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Lançado pela Editora da USP (Edusp), o volume reúne ensaios publicados anteriormente em livros e revistas, que ganharam revisões e acréscimos e se entrelaçam no estudo da presença da ironia como aspecto relevante da arte (e da figura) pessoana.

Melhor que “aspecto relevante” seria dizer “termo central”. Gagliardi defende que a ironia representa o combustível do espírito artístico de Pessoa. Foi através dela que o autor enxergou si mesmo e o mundo. A ironia teria sido uma válvula de escape diante da tomada de consciência de que o autoconhecimento não passa de utopia. Frente ao sentido trágico da existência, só restaria a autoironia.

Homem de óculos e com barba.
O professor da USP Caio Gagliardi - Foto: Arquivo pessoal
Capa de livro com o nome do autor, Fernando Pessoa, em letras grandes.
"Livro do Desassossego", obra póstuma de Pessoa - Foto: Pmms2005/Wikimedia Commons - CC BY-SA 4.0

O professor aponta que a ironia surge na obra de Fernando Pessoa como a perspectiva daquele que está apartado do mundo, vivendo uma sensação de não pertencimento, de exílio e de descompasso com a natureza e os outros. Um “desassossego” – para voltar ao título do livro de Bernardo Soares – que teria paralelo com o desconforto romântico e ganha destaque, sobretudo, na experiência dos heterônimos.

Isso porque Alberto Caeiro e Ricardo Reis – duas das principais personalidades literárias criadas por Pessoa – podem ser entendidos como resultado de aspirações de caráter romântico, tentativas irônicas de recuperar um elo rompido com o mundo. No que Gagliardi gosta de chamar “jogo heteronímico”, Álvaro de Campos – o terceiro elemento da trinca mais famosa dos heterônimos – representaria a dramatização dessa fissura. Em todos, a sensação de rompimento com o mundo, sentida e encarada de modos distintos em cada um, é uma chave que mobiliza a criação artística.

Três dimensões do emprego da ironia por Fernando Pessoa ganham destaque no volume. A primeira é sua parte na constituição do sujeito individualista, traço reconhecido e celebrado pelo próprio escritor. Depois, sua utilização como gesto, vista na relação que Pessoa estabeleceu com as publicações nas quais sua obra foi veiculada. E a terceira é seu emprego enquanto performance, como motor para a promoção do próprio autor Fernando Pessoa diante do público.

Escrita e existência são complementares na obra de Pessoa, afirma Gagliardi. É através da escrita que o autor – e também os autores, sem deixar de lado os heterônimos – ganham vida. Por outro lado, a existência – seja dos heterônimos ou do próprio Fernando Pessoa – só se realiza mesmo a partir da produção textual. Em sua obra, a escrita ganha status de elemento natural e indispensável. Fora dela, não há vida.

É com essa concepção em mente que duas imagens recorrentes na produção de Pessoa merecem atenção: a caneta e o espelho. “A escrita leva ao espelhamento, o espelho conduz à escrita”, assinala o professor. A criação literária faz o sujeito voltar-se para si, enquanto o olhar para o eu transborda no ato da escrita. Reunidos, espelho e caneta representam o isolamento e o individualismo que atravessam a obra pessoana.

Um individualismo que se coloca não apenas afastado dos outros, mas acima deles, pontua Gagliardi. É o que Bernardo Soares chama de “aristocracia da individualidade”, “consciência aristocrática” e “aristocracia da alma”, cuja atitude característica é, justamente, a ironia. Nesse ponto, o professor recorre ao pensamento do filósofo francês Georges Palante (1862-1925), que entendia a ironia como uma atitude estética e intelectual e, portanto, aristocrática.

Mas essa ironia aristocrática só é possível em relação. O olhar de cima precisa do objeto que está embaixo. É assim que um dos canais de diálogo para a ironia pessoana aparece na relação que o escritor estabeleceu com as revistas e jornais nos quais parte importante de sua obra foi publicada. Gagliardi mostra como o poeta, em sucessivas ocasiões, planejou a divulgação de seus trabalhos como uma espécie de jogo de xadrez, fazendo de cada publicação uma espécie de lance no tabuleiro.

Ao longo de sua carreira é possível acompanhar uma série de embates e provocações, repletas de irreverência e ironia, entre seus poemas e os veículos em que ganharam o público. Muitas vezes, o escritor desafiou e seguiu mão contrária às linhas editoriais e aos preceitos artísticos de seus diretores. Pessoa iria se voltar para o passado quando a revista bradava pelo novo. Ou exaltar o caráter de artifício e ficção do ato poético quando seus editores ordenavam verdade e sentimento puro.

Homem de bigode com chapéu.
Fernando Pessoa - Foto: Domínio público/Wikimedia Commons

É o que Pessoa faz, por exemplo, quando publica na precursora do Modernismo português A Renascença (1914) Impressões do Crepúsculo, poema a respeito da infância perdida, envolto em nostalgia. Ou então quando apresenta os quatorze sonetos de Passos da Cruz na revista Centauro (1916), trazendo elementos do cristianismo para uma publicação cujo título invoca o fantástico híbrido de homem e cavalo da cultura pagã.

Gagliardi traz ainda mais exemplos. Como o caso dos cinco poemas de Episódio: A Múmia, reunindo decadentismo metafísico e imagens sombrias para circular de maneira deslocada no interior do primeiro número de Portugal Futurista (1917).“O que ele tem a ver com a velocidade, o simultaneísmo e a força – com os automóveis, os aeroplanos e os transatlânticos de Marinetti?”, questiona o professor, referindo-se ao manifesto futurista de Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), também publicado no volume inaugural da revista.

Nesse jogo sofisticado, o “xeque-mate”, para Gagliardi, está no conjunto reunido ao longo dos anos nas páginas da revista Presença (1927-1940). Trata-se da publicação com a qual Pessoa mais vezes colaborou, descontando-se os veículos em que ele mesmo foi diretor. É nela que estão, entre outros, Autopsicografia, assinado pelo próprio Fernando Pessoa, Tabacaria, de Álvaro de Campos, e o oitavo poema do Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro.

Em prosa ou versos, esses textos marcam tensionamentos com uma série de ideários estéticos de seus editores – como aparece logo de início em Autopsicografia, que afronta as noções de ingenuidade, pureza e sinceridade propagadas por José Régio em Literatura Viva (1927), manifesto que inaugura a revista.

Sem que a apreciação do contexto de publicação represente mudança radical na leitura de sua obra, o que Gagliardi sugere é que novas camadas de sentido aparecem quando se leva em conta o movimento irônico de Pessoa. “De forma mais ou menos decisiva, o que se entrevê em todos esses gestos editoriais é uma sombra tênue, quase invisível, mas que, se repararmos bem, risca por trás de cada composição o sorriso sibilino de seu autor”, escreve o professor.

Sorriso aristocrático, solitário e que olha de cima. O sorriso de um gênio. Cujo destino é ser incompreendido. Mas não um destino que simplesmente se oferece ao poeta, mas que é construído, performado. A ironia não foi mobilizada por Pessoa apenas como gesto, mas também como ferramenta de construção de si próprio perante o público. É o que revelam as análises das intervenções públicas do escritor, materializadas em manifestos e reflexões estéticas.

Boa parte do que Pessoa escreveu nesses textos, indica Gagliardi, pode ser visto como peças autopromocionais, que mobilizaram o embate e a ironia para colocar em evidência o próprio autor e estabelecê-lo como o grande poeta que surgiria em Portugal. Exemplo bem acabado e metalinguístico disso é o ensaio O Provincianismo Português, no qual teoriza sobre a própria ironia.

Para Pessoa, o provinciano é incapaz de ironia. Nas palavras do próprio:

“A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment – o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele ‘desenvolvimento da largueza de consciência’ em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.”

Exigências que Pessoa, evidentemente, satisfaz até a última gota. São o domínio da expressão, a ampla cultura, a largueza de consciência e o poder de se afastar de si mesmo, sublinha o professor, que se contrapõem ao provincianismo. E é esse afastamento que se realiza através de sua multiplicação nos heterônimos, a marca definitiva de seu manejo da ironia. “A criação de escritores independentes de si não seria, seguindo essa mesma lógica, uma heteronia, a realização suprema de sua ironia?”, escreve o professor.

Uma performance de si que mobiliza a ironia até mesmo para afirmações ideológicas. Gagliardi não se furta a penetrar um dos textos mais controversos de Pessoa, O Interregno, cujo subtítulo é Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal, publicado em 1928. Para grande parte dos leitores e críticos, seria preferível não vê-lo associado ao escritor lisboeta. O professor, contudo, sugere que o manifesto poderia ser lido justamente na chave da ironia, sendo assim colocado de cabeça para baixo.

Se podemos considerar a ironia, comenta Gagliardi, como “dizer uma coisa para dizer o contrário”, Pessoa estaria jogando deliberadamente com a construção de suas posições políticas. Algo comum: Pessoa mais de uma vez contradisse suas convicções. Traço da dimensão irônica do seu caráter individualista. “A formulação ideológica de Pessoa é obra de ficção, não menos elaborada do que os seus poemas”, sintetiza o professor.

“O conjunto desses textos”, escreve Gagliardi, “revela um escritor que muda de opinião e produz contradições com uma liberdade desnorteadora. O que lhe interessa é o jogo das grandes ideias, o raciocínio como finalidade, sem correspondente direto na realidade. Que resultado na vida social poderia ter, por exemplo, a formalização teórica de um Quinto Império?”

A vida social, contudo, jamais contou tanto para Fernando Pessoa quanto as formalizações teóricas. Jogo de grandes ideias, nas quais provavelmente a importância recaia sobretudo na palavra jogo. O sociólogo francês Roger Caillois (1913-1978) elenca como princípios centrais do jogo a competitividade, o simulacro, a sorte e a vertigem. Dependendo do jogo, uma ou outra dessas categorias assumiria a proeminência. Não teria Fernando Pessoa reunido todas elas em seu xadrez literário, fazendo da ironia e da construção de si mesmo o jogo definitivo?

Filho da Dor e da Inteligência

Em entrevista para o Jornal da USP, o professor Caio Gagliardi retomou e aprofundou alguns dos principais pontos desenvolvidos em Fernando Pessoa Ironista. O professor chama atenção, em primeiro lugar, para a necessidade de se entender o tempo cultural e político do escritor quando pensamos a questão do individualismo.

Pessoa é herdeiro estético do simbolismo e do decadentismo e viveu a queda da Monarquia e a implementação da República em Portugal, período de agitação e crise social, no qual um presidente foi assasinado – Sidónio Pais, em 1918 – e um golpe militar foi desferido em 1926. Mas o escritor não presenciou a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a notícia dos campos de extermínio nazistas e tampouco os movimentos de libertação das colônias portuguesas (1961-1974). É esse contexto específico que não pode ser desconsiderado, sublinha Gagliardi, quando se fala de um individualismo pessoano.

“Tendo em mente a quantidade de textos antissalazaristas que Pessoa elaborou a partir de 1933, os quais anunciam uma nova orientação política em sua obra, é legítimo conjecturarmos que, se tivesse sido produzida à luz das transformações que Portugal e o mundo sofreram ao longo dos cinco anos seguintes à morte do escritor, seria ainda mais nítida a relativização de seu individualismo patente”, afirma Caio Gagliardi.

Sem ter vivido para testemunhar todos esses episódios, contudo, temos na obra de pessoa o que Gagliardi define como “um princípio que propõe a abdicação dos valores morais para se traduzir como uma estética individual”.

É dentro desse quadro, explica o professor, que deve-se analisar a tendência ao recolhimento, o retraimento de caráter, a misantropia e o exílio psicológico que compõem o individualismo de Pessoa. Aspecto fundamental, mas pouco comum, segundo Gagliardi, na fortuna crítica a respeito do escritor, possivelmente pela conotação depreciativa que termos como “individualismo” e “individualista” agregam.

Deixando o preconceito de lado para tentar compreender esse individualismo é que Gagliardi procurou aproximar Pessoa de Georges Palante. “As obras desses escritores conversam intimamente ao se afastarem do politicamente correto, das variegadas formas de dogmatismo e moralismo social, e ao manifestarem, com um tom inconfundivelmente melancólico, o individualismo como uma forma de sensibilidade”, conta o professor.

Segundo Palante, é preciso distinguir individualismo – que é um dos traços que se aplicaria a Pessoa – do egoísmo vulgar. Nos egoístas, encontra-se uma sensibilidade grosseira, arrivista e adaptada para atingir seus objetivos. Já a tendência do individualista é dobrar-se sobre si mesmo ao constatar que suas necessidades íntimas são anuladas pela energia coletiva. Se o egoísta é um homem de ação, diz Gagliardi, o individualista  é um estático.

“Refugiado, portanto, em seu ceticismo e diletantismo sociais, o individualista cultiva a exceção e se define por oposição à mentalidade corporativa e solidarista, que ele toma por insincera, ou, como dirá Palante, solidarité de façade (solidariedade de fachada)”, explica o professor. “Em contrapartida, a ironia é uma atitude aristocrática, individualista e, decerto, uma forma de escapar às armadilhas do sentimentalismo. O sorriso irônico é a superação do riso como manifestação meramente social. A ironia é filha da dor e da inteligência. O olhar de Pessoa, dirigido do alto sobre todas as coisas, o qual Bernardo Soares designou como ‘aristocracia da individualidade’, é uma atitude essencialmente estética e intelectual”, finaliza Gagliardi.

Fernando Pessoa Ironista, de Caio Gagliardi, Editora da USP (Edusp), 176 páginas, R$ 48,00.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

Fonte:  https://jornal.usp.br/cultura/ironia-uma-chave-para-ler-fernando-pessoa/