segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Tariq Ali entrevista Rashid Khalidi: “Os palestinos estão pagando por toda história europeia de ódio aos judeus”

 


Confira a seguir a primeira parte da entrevista de Rashid Khalidi a Tariq Ali, na qual o historiador palestino aborda a história política e intelectual do movimento nacional da Palestina, suas relações com os regimes árabes vizinhos, as hipocrisias do dito “processo de paz” e os vasos comunicantes entre Israel e o complexo-industrial-militar estadunidense.


Tariq Ali entrevista Rashid Khalidi

Rashid Ismail Khalidi é um dos mais proeminentes historiadores da Palestina e do Oriente Médio da atualidade. Advindo de uma família notável de Jerusalém, nasceu em Nova York no fatídico 1948 – sua família, assim como centenas de milhares de palestinos expulsos, não pôde retornar à sua terra natal após a Nakba. Filho do escritor e diplomata palestino Ismail Khalidi e sobrinho de Hussein Khalidi, que fora prefeito de Jerusalém (1934-37), seu interesse em história e geopolítica começou em casa. Nas mesas de jantar, era comum o assunto percorrer os bastidores da política internacional. Seu pai trabalhou por uma década e meia na Divisão de Assuntos do Conselho de Segurança da ONU e estava lá durante momentos-chave da política da região, como a Guerra dos Seis Dias, em 1967. “Desde cedo, aprendi a perceber a diferença entre o que sabíamos ser verdade e o que era noticiado”,1 conta.

Depois da morte do pai, em 1968, Khalidi traçou uma trajetória acadêmica prestigiosa. Formou-se em Yale, em 1970, e obteve seu doutorado na Universidade de Oxford, em 1974. Sob orientação de Albert Habib Hourani, apresentou um estudo aprofundado da política britânica no Oriente Médio pré-Primeira Guerra Mundial, analisando os antecedentes do Acordo Sykes-Picot e da Declaração de Balfour. Na sequência, mudou-se para o Líbano, país de sua família materna, e lá, entre 1976 e 1983, lecionou na Universidade Americana de Beirute e na Universidade do Líbano, além de ser pesquisador do Institute for Palestine Studies, cofundado em 1963 por seu primo, o renomado historiador Walid Khalidi. Acompanhou em primeira mão as tensas tratativas pela evacuação da OLP de Beirute diante da invasão israelense em 1982.2

Após o massacre de Sabra e Shatilla e com o acirramento das tensões no país, a família partiu para os Estados Unidos com um recém-nascido. A previsão era passar um ano fora, mas a guerra civil libanesa se agravou eles nunca voltaram para sua casa em Beirute, onde os três filhos haviam nascido. Khalidi passou dezesseis anos lecionando na Universidade de Chicago, onde também dirigiu o Centro de Estudos Internacionais. Entre 1991 e 1993, aconselhou a delegação palestina nas negociações de paz em Madri e Washington, tema de seu livro Brokers of Deceit [Negociadores do engano].3 Em 2002, passou a editar o Journal of Palestine Studies e, no ano seguinte, assumiu a recém-criada cadeira Edward Said de estudos árabes na Universidade de Columbia.

No primeiro semestre de 2024, sua universidade foi palco de uma série de ocupações estudantis contra o massacre patrocinado pelos EUA em Gaza. Em maio, horas depois da tropa de choque invadir um dos prédios ocupados e prender dezenas de estudantes, Khalidi fez um discurso apoiando os manifestantes e condenando a administração universitária. Depois de mais de vinte anos à frente da cátedra, ele se aposentou em junho, desvinculando-se da Columbia.

Nesta edição, a Margem Esquerda traz uma densa conversa entre Khalidi e Tariq Ali. Publicada com o título “The Neck and the Sword”4 [O pescoço e a espada], a entrevista versa sobre a história política e intelectual do movimento nacional palestiniano, suas relações com os regimes árabes vizinhos, as hipocrisias do dito “processo de paz”, os vasos comunicantes entre Israel e o complexo industrial-militar estadunidense, as realidades da ocupação e os cálculos (ou erros de cálculo) do Hamas, bem como os desafios e as perspectivas para as próximas décadas.

Tariq Ali – Comecemos com o presente, não só no sentido dos horrores infligidos à Palestina agora, mas o presente como parte do ainda ativo passado palestino. A brutal repressão anglo-sionista da Grande Revolta Árabe de 1936-39 foi seguida pela Nakba de 1948, a Guerra dos Seis Dias de 1967, o cerco a Beirute de 1982 liderado por Ariel Sharon, os massacres de Sabra e Shatila, as duas Intifadas e a contínua chuva de terror por parte de Israel desde então. Ainda assim, o genocídio do pós-7 de outubro parece ter um impacto global maior que todos esses acontecimentos.
Rashid Khalidi – Sim, alguma coisa mudou em nível global. Não sei por que aqueles episódios históricos não tiveram o efeito de mudar completamente a narrativa – a narrativa popular, em especial. Não quero especular sobre fatores como as mídias sociais. Mas esse tem sido o primeiro genocídio que uma geração testemunha em tempo real, nos seus telefones. Foi o primeiro em tempos recentes em que os Estados Unidos, a Inglaterra e os países ocidentais foram participantes diretos, diferente dos do Sudão e de Mianmar? Será que o trabalho dos militantes pró-Palestina sobre uma ou mais gerações preparou as pessoas para isso? Não sei dizer. Mas você tem razão quando diz que, como resultado dos horrores infligidos a Gaza durante oito meses contínuos, e dos que estão sendo infligidos agora, algo novo aconteceu. O deslocamento de 750 mil pessoas em 1948 não teve o mesmo impacto. A Revolta Árabe de 1936-39 foi quase completamente esquecida. Nenhum desses eventos prévios teve um efeito parecido com esse.

TA – A Revolta Árabe sempre me fascinou como um dos maiores episódios da luta anticolonial, que recebeu muito menos atenção do que merece. Começou como uma greve, depois uma série de greves, até se tornar uma enorme revolta nacional que deixou os ingleses “nas cordas” por três anos. Você poderia nos explicar as origens dela, seu desenvolvimento e consequências?
RK – A Revolta Árabe foi essencialmente uma revolta popular, em escala massiva. A liderança Palestina tradicional foi pega de surpresa, assim como Arafat e as lideranças da Organização para Libertação da Palestina (OLP) foram pegos de surpresa com a Primeira Intifada em 1987. Ambas as insurreições se iniciaram com incidentes menores; no caso da Revolta Árabe, foi a morte em batalha do xeque ‘Izz al-Din al-Qassam em novembro de 1935, por forças britânicas. Nascido em 1882 em Jableh, na costa da Síria, al-Qassam foi um intelectual religioso, treinado em Al-Azhar e militante anti-imperialista que lutou contra as forças ocidentais na região, começando com os italianos na Líbia, em 1911, depois as forças francesas na Síria, em 1919-20. Ele se instalou na Palestina controlada pelos britânicos, onde viveu e trabalhou principalmente entre os camponeses e os pobres urbanos. O assassinato de al-Qassam teve uma amplitude enorme; dentro de alguns meses tinha ajudado a detonar a mais longa greve geral do entreguerras na história colonial. O melhor relato dessa história é de Ghassan Kanafani, o grande escritor palestino assassinado pelos israelenses em 1972; era para ser o primeiro capítulo de sua obra sobre a luta palestina, inacabada quando de sua morte.5 A análise de Kanafani se sustenta até os dias de hoje. Entre outras coisas, ele salientou o impacto econômico sobre as classes populares do aumento da imigração judaica para a Palestina nos anos 1930, depois que Hitler chegou ao poder; a demissão de trabalhadores árabes de fábricas e obras, conforme a política de “mão de obra exclusivamente judaica”, de Ben-Gurion; o despejo de 20 mil famílias camponesas das suas terras, vendidas aos colonos sionistas por donos de terras absenteístas; o aumento da pobreza. Essas revoltas populares eclodem quando as pessoas atingem um ponto em que perceberam que não poderiam mais continuar como antes, e nesse caso a ira social se somou a poderosos sentimentos nacionalistas e religiosos. Os palestinos se impuseram contra todo o poderio do Império Britânico, que em um século e meio não havia sido obrigado a conceder independência a nenhuma colônia, com exceção da Irlanda em 1921. A Revolta Árabe foi esmagada pelo que ainda era o império mais poderoso do mundo, mas os palestinos lutaram por mais de três anos, com cerca de um sexto da população masculina morta, ferida, presa ou exilada. Nos anais do período entreguerras, foi uma tentativa sem precedentes de derrubar o domínio colonial. Só foi suprimida com o envio de 100 mil tropas e a RAF (Força Aérea Britânica). Essa é uma página esquecida da história da Palestina.

TA – Essa derrota não levou também a uma desmoralização no seio das massas palestinas, de modo que, quando a Nakba começou propriamente, em 1947, eles ainda não haviam se recuperado dos horrores de 1936-39?
RK – A derrota da Revolta Árabe criou um legado pesado, que afetou os palestinos por décadas. Como Kanafani escreveu, a Nakba, “o segundo capítulo da derrota – do final de 1947 a meados de 1948 –, foi notável por sua brevidade: era apenas o epílogo de um capítulo longo e sangrento ocorrido entre abril de 1936 e setembro de 1939”.6 O que os britânicos fizeram foi depois copiado em quase todos os detalhes pelos líderes sionistas de Ben-Gurion em diante. Só por isso já vale a pena recordar o custo para a sociedade palestina. Pelo menos 2 mil casas foram explodidas, plantações foram destruídas e centenas de rebeldes foram fuzilados por portarem armas de fogo. Tudo isso acompanhado de toques de recolher, detenção sem julgamento, exílio interno, tortura, práticas como amarrar os habitantes dos vilarejos na frente das máquinas a vapor, como escudos contra os ataques de combatentes da liberdade. Em uma população árabe de cerca de 1 milhão de pessoas, 5 mil foram assassinados, mais de 10 mil, feridos, e mais de 5 mil presos políticos foram deixados apodrecendo em prisões coloniais.  

TA – No processo de aniquilação da Revolta Árabe os britânicos deram um valioso treinamento em contrainsurgência às forças sionistas que estavam trabalhando com eles.
RK – Sim. Especialistas em contrainsurgência, como Orde Wingate e outros experts em tortura e assassinato, ensinaram aos sionistas todas as suas técnicas coloniais sujas. Os britânicos trouxeram veteranos da Índia, como Charles Tegart, o notório chefe de polícia de Calcutá, alvo de seis tentativas de assassinato por nacionalistas indianos. As mesmas fortalezas e campos de prisioneiros construídos por Tegart estão ainda em uso por Israel nos dias de hoje. Eles trouxeram gente da Irlanda e de outras partes do império, como o Sudão, onde Wingate começou, e onde o primo do seu pai, Reginald Wingate, fora governador-geral e oficial de inteligência antes disso.

TA – Orde Wingate, um nome esquecido há muito tempo. Eu duvido que muitos leitores tenham sequer ouvido falar da sua figura doentia, de quem [Bernard] Montgomery disse que a melhor coisa que fez foi estar no avião que caiu e o matou em Burma, em 1944. Quem foi ele? Ele tinha algum vínculo especial com as forças sionistas? Me lembro vagamente de uma série da BBC de 1976 em que ele foi retratado como um herói.
RK – Ele era um assassino colonial de sangue frio, que acabou como major-general e foi odiado por muitos do seu próprio lado, como as palavras de Montgomery sugerem; Montgomery também descreveu Wingate como “mentalmente desequilibrado”. Churchill, que não se fazia de rogado quando o assunto era infligir sofrimento a populações submetidas, chamou Wingate de “louco demais para comandar”. Ele nasceu na Índia britânica, em uma família religiosa da igreja Plymouth Brethren. Cristão fundamentalista e literalista bíblico, ele promovia a versão do Velho Testamento de uma redenção judaica. Chegou na Palestina como capitão na inteligência militar, justamente quando a revolta de 1936 estava começando. Sabia árabe, aprendeu hebraico e se tornou figura-chave do treinamento de integrantes do Haganá como “Esquadrões Especiais Noturnos” – em outras palavras, esquadrões da morte –, que localizavam e matavam habitantes dos vilarejos palestinos nas montanhas, assim como os grupos de militares e colonos israelenses fazem hoje. Sua notoriedade era tamanha que, quando explodiu a guerra europeia de 1939, figuras árabes proeminentes demandaram que Wingate fosse expulso da região. Ele foi. Seu passaporte foi carimbado proibindo seu retorno. Seu trabalho estava feito. Ele treinou muitos dos homens que se tornaram comandantes do Palmach e mais tarde do Exército israelense, como Moshe Dayan e Yigal Allon. Vários lugares em Israel carregam seu nome, e ele é corretamente considerado o fundador da doutrina militar israelense.

TA – Ele os ensinou bem.
RK – Sim. O que antes fora uma especialidade colonial britânica se transformou em uma especialidade colonial israelense. Tudo que os israelenses fizeram, eles aprenderam dos britânicos – incluindo as leis, as regulações emergenciais de defesa de 1945, por exemplo, que os britânicos usaram contra a Irgun. As mesmas leis estão ainda vigentes, agora usadas contra os palestinos. Tudo isso veio do manual colonial dos britânicos.

TA – Uma vitória – ou mesmo um empate – da Revolta Árabe teria estabelecido as bases de uma identidade nacional palestina e aumentado sua força para as batalhas que viriam. Assim como [Ghassan] Kanafani, você argumentou que as vacilações da liderança tradicional palestina tiveram um papel-chave na derrota, curvando-se, como fizeram – na Conferência de Saint James, por exemplo – aos reis árabes, que haviam sido colocados em seus tronos pelos britânicos…
RK – Assim como agora, a liderança palestina estava dividida. Eles estavam estorvados por sua própria incapacidade de chegar a um acordo sobre uma estratégia apropriada para mobilizar a população e criar um fórum de representatividade nacional, uma assembleia popular em que esses assuntos poderiam ser discutidos. Diferentemente do que ocorreu na Índia, no Iraque e em outras partes da África, os britânicos negaram aos palestinos qualquer acesso ao Estado colonial. Então o argumento em defesa de uma assembleia popular para romper decisivamente com as estruturas do controle colonial era muito importante.

TA – Outra condição de fundo para a Revolta foi a emergência do fascismo na Europa.
RK – A partir do momento em que os nazistas tomaram o poder, toda a situação mudou para os judeus no seu relacionamento com o mundo e com o sionismo. O que é totalmente compreensível. Isso produziu mudanças na Palestina também: entre 1932 e 1939, a proporção de judeus na população cresceu de 16% ou 17% para 31%. De repente os sionistas tinham uma base demográfica viável para tomar a Palestina, o que não tinham em 1932.

TA – Os palestinos se tornaram vítimas indiretas do judeocídio europeu.
RK – Absolutamente. Os palestinos estão pagando por toda a história europeia de ódio aos judeus, desde os tempos medievais. Eduardo I expulsou os judeus da Inglaterra em 1290, os franceses os expulsaram no século seguinte, os éditos espanhóis e portugueses, nos anos 1490, os pogroms russos de 1880 e, por fim, o genocídio nazista. Historicamente, esse é um fenômeno quintessencial da cristandade europeia.

TA – E se não tivesse havido um judeocídio na Europa e a Alemanha fascista tivesse sido somente fascista, sem a obsessão de exterminar os judeus?
RK – Esse é um grande “e se…”. Mas olhe para a situação em 1939. Já havia um forte projeto sionista, com apoio imperial britânico, por razões que nada tinham a ver com judeus e sionismo. Tinha a ver com interesses estratégicos. A Declaração de Balfour foi feita pelo homem responsável por emplacar a lei mais antissemita da história do Parlamento britânico, o Aliens Act de 1905. A classe dominante britânica não se importava com os judeus per se. Talvez se importassem com a leitura que faziam da Bíblia, mas eles se interessavam sobretudo pela importância estratégica da Palestina e do Oriente Médio, como porta de entrada para a Índia, muito antes de 1917. Esse era o interesse deles, do início ao fim. Quando foram forçados a sair, em 1948, eles o fizeram porque já tinham desistido da Índia em 1947, e já não precisavam mais da Palestina da mesma maneira. Mesmo que Hitler tivesse sido assassinado, haveria um projeto sionista, com apoio imperial britânico. Ainda assim o sionismo teria tentado tomar a totalidade do território palestino, que sempre foi seu objetivo, e ainda assim teria tentado criar uma maioria judia através de limpeza étnica e imigração. Eu não poderia especular mais do que isso.

TA – Mas não havia também correntes antissionistas dentro das comunidades judaicas?
RK – Certamente. Havia judeus comunistas, judeus assimilacionistas. A grande maioria das populações judaicas perseguidas do Leste Europeu decidiu emigrar para colônias de povoamento branco: África do Sul, Austrália, Canadá, Nova Zelândia e, acima de tudo, Estados Unidos; alguns também foram para a Argentina e outros países latino-americanos. Essa é a maioria [dos países] para onde a maior parte da população judaica do mundo foi, além daqueles que ficaram na Europa. O antissionismo era um projeto judeu. Antes da ascensão de Hitler, os sionistas eram uma minoria, e seu projeto era altamente contestado nas comunidades judaicas. Mas o Holocausto produziu um tipo de uniformidade compreensível no apoio ao sionismo.

TA – Derrotas costumam ter o efeito de parar tudo por um tempo; aí a resistência ressurge, de diferentes formas. No caso de 1936-39, contudo, imediatamente depois da derrota, eclodiu a Segunda Guerra Mundial – que começou na China, apesar de muitos a chamarem de uma guerra europeia. Qual foi a atitude da liderança palestina nesse momento? Na Indonésia, na Malásia, na Índia e em partes do Oriente Médio alguns grupos de movimentos nacionalistas disseram: o inimigo do nosso inimigo é nosso amigo, ainda que temporariamente. Sendo o nosso inimigo o Império Britânico, isso significa alemães e japoneses. Em seu livro sobre o Egito, Anouar Abdel-Malek escreve que, quando parecia que [Erwin] Rommel iria tomar o país, multidões se reuniram nas ruas de Alexandria, gritando: “Adiante, Rommel, adiante!”. Queriam qualquer um, menos a Inglaterra. Qual foi a reação na Palestina?
RK – A reação na Palestina foi altamente dividida. A facção minoritária da liderança se alinhou com os alemães, seguindo o Grande Mufti. Ele tinha uma extraordinária carreira militar: os franceses o expulsaram de Beirute, os ingleses o enxotaram do Iraque, quando reocuparam o país em 1941, e depois o expulsaram do Irã. Ele tentou ir para a Turquia, mas os turcos não o deixaram ficar, então ele acabou em Roma, e depois em Berlim. Mas a maioria dos palestinos não adotou essa linha. Muitos se uniram ao Exército britânico para lutar com as Forças Aliadas. Claro que muitos líderes foram mortos pelos britânicos, tanto no campo de batalha quanto executados. Outros foram exilados. Os ingleses adoravam exilar seus oponentes nacionalistas nas ilhas sob seu protetorado: Malta,Seychelles, Sri Lanka e as Ilhas Andamão. Meu tio foi mandado para as ilhas Seychelles por alguns anos, junto com outros líderes palestinos, e depois exilado em Beirute por outros tantos anos. A liderança, via de regra, entendia que a Inglaterra nunca poderia ser uma nação amiga. Dá para ler isso nas memórias do meu tio – ele se tornou virulentamente antibritânico. Ele fora sempre nacionalista e antibritânico, mas a Revolta [Árabe] mudou de maneira extraordinária a visão dos palestinos. Antes, a liderança tentava sempre se conciliar com os britânicos, nos moldes de várias elites coloniais cooptadas. Isso mudou com a aniquilação da Revolta. Em última análise, a derrota da Revolta e depois a Segunda Guerra Mundial deixaram os palestinos mal-preparados para o que viria depois, quando duas novas superpotências – Estados Unidos e União Soviética – apoiaram o sionismo, enquanto os britânicos colaboraram in loco com os sionistas e os jordanianos para prevenir o estabelecimento de um Estado palestino naquele território. Os palestinos não estavam suficientemente organizados para enfrentar o assalto dos militares sionistas, que começou em novembro de 1947, meses antes do fim do Mandato Britânico, em 15 de maio de 1948, quando a repartição da ONU entraria em vigor, e os exércitos árabes entraram na briga. Àquela altura, as forças sionistas tinham tomado Jaffa, Haifa, Tiberias, Safad e uma dúzia de outros vilarejos, expulsando cerca de 350 mil palestinos, e já haviam superado em muito o que havia sido designado como Estado Árabe no Plano de Repartição da ONU. Ou seja, os palestinos já haviam perdido antes mesmo da proclamação do Estado de Israel e da deflagração da guerra árabe-israelense.

TA – Vamos chegar ao papel dos Estados Unidos em tudo isso. Mas como você explica o apoio da União Soviética aos sionistas, fornecendo armas tchecas para que eles continuassem na luta?
RK – Stálin deu uma guinada repentina, como você sabe. De uma firme potência antinacionalista e antissionista, a União Soviética subitamente se transformou em uma defensora de um Estado judeu. Isso foi um choque enorme para os partidos comunistas do mundo árabe. Havia várias motivações, penso eu. Foi por certo uma tentativa de cobrir o lance dos Estados Unidos, e havia uma sensação de que talvez Israel pudesse ser um país socialista a se alinhar à União Soviética. Stálin também queria minar o poderio britânico no Oriente Médio. Lembre-se de que ele havia passado sua juventude lutando no sul do que mais tarde seria a União Soviética, durante a Guerra Civil Russa, quando os britânicos foram os maiores apoiadores do Exército Branco – os financiando, armando e treinando. Eles os apoiaram com tropas e armadas do mar Báltico ao mar Cáspio e ao mar Negro. Stálin tinha desde cedo desenvolvido uma animosidade em relação aos britânicos e uma obsessão com a ameaça que eles representavam no sul da União Soviética. Ele agora via esse momento como uma oportunidade para minar os regimes árabes marionetes dos britânicos na região.

TA – Foi uma intervenção política desastrosa. Mas não durou muito.
RK – Alguns anos. Mas sim, totalmente. Se você olhar a votação na Assembleia Geral da ONU, sem a União Soviética e seus anexos Ucrânia e Bielorrússia, assim como os países que eles influenciavam, os estadunidenses teriam dificuldade em impor a resolução de repartição. Talvez eles o fizessem, mas o resultado poderia ter sido outro. E o acordo de armamentos tcheco foi crucial para as vitórias de Israel contra os exércitos árabes no campo de batalha.

TA – Isso nos traz às elites árabes – as monarquias e califados instalados pela Inglaterra depois do colapso dos otomanos –, sua colaboração com os britânicos e seu fracasso em ajudar a derrotar essa entidade que foi criada pelo Império Britânico.
RK – As monarquias do Egito, da Jordânia e do Iraque tiveram o papel mais importante aqui. Elas estavam sujeitas a pressões opostas, de cima e de baixo. Por um lado, os britânicos não tinham a menor vontade de ver um Estado palestino. Eles ainda mantinham uma enorme hostilidade contra os palestinos, ainda que também tenham se tornado hostis aos sionistas, por causa da campanha sangrenta levantada contra eles pela Irgun, a Gangue Stern e a Haganá, no final da Segunda Guerra Mundial. A Inglaterra se absteve na votação da ONU sobre a repartição. Um Estado judeu seria estabelecido e nada poderia ser feito para evitar isso. Mas eles esperavam manter o equilíbrio de poderes através dos regimes clientes e manter influência em parte da Palestina através do emir Abdullah, da Transjordânia, cujo Exército era comandado por oficiais britânicos. Por outro lado, havia uma pressão por parte da opinião pública. O mundo árabe havia muito se preocupava com o sionismo. Quando eu estava pesquisando sobre esse assunto, descobri inúmeros artigos antigos de jornal sobre a Palestina, em publicações de Istambul, Damasco, Cairo e Beirute. Havia voluntários da Síria e Egito lutando na Palestina durante a Revolta Árabe. Então esses regimes vizinhos estavam sob pressão popular para fazer alguma coisa sobre a catástrofe que estava se desenvolvendo em 1947-48, com os sionistas em clara vantagem, e os refugiados destituídos chegando às capitais árabes. Os britânicos queriam que os jordanianos invadissem a região para anexar a Cisjordânia e Jerusalém Oriental. O Egito e os demais países árabes foram forçados a intervir por conta da pressão popular. Mas o fizeram de maneira pouco incisiva e somente depois que os britânicos haviam abandonado o local. Isso teve um enorme efeito de radicalização no jovem oficialato envolvido, incluindo Abdel Nasser. Nas suas memórias, ele escreve algo como: ‘não nos foram dados os meios com os quais lutar, mas à medida que lutávamos contra os israelenses, pensávamos na monarquia corrupta controlada pelos britânicos em casa’. Junto com outros dois colegas próximos do grupo nacionalista Free Officers, Nasser foi lotado em Gaza e Rafah, e observou em primeira mão a ira dos soldados rasos contra o Alto Comando no Cairo. Ele cita um soldado que ficava repetindo a cada ordem sem sentido: “Vergonha, vergonha”, na entonação prolongada e sarcástica do egípcio do interior.7 A guerra aumentou a popularidade dos Free Officers e, em última instância, levou à queda da monarquia em 1952. O mesmo aconteceu com os iraquianos e os sírios. Praticamente assim que a guerra acabou, ocorreram uma série de golpes na Síria, seguidos pela revolução de 1952 no Egito, e no Iraque em 1958. Todos os oficiais militares envolvidos haviam lutado na Palestina.

Notas
1 Chris Hedges, “Casting Mideast Violence in Another Light” [perfil de Rashid Khalidi na editoria “Public Lives”], The New York Times, 20 abr. 2004.
2 Sobre a experiência, Khalidi escreveu Under Siege: PLO Decisionmaking During the 1982 War
(Nova York, Columbia University Press, 1985).
3 Rashid Khalidi, Brokers of Deceit: How the US Has Undermined Peace in the Middle East (Boston, Beacon, 2013).
4 Publicada originalmente em New Left Review, n. 147, maio/jun. 2024, p. 5-38, e traduzida aqui por Luiz Guilherme Osório.
5 Ghassan Kanafani, A revolução palestina de 1936 a 1939: antecedentes, detalhes e análise (trad. Letícia Bergamini Souto, São Paulo, Expressão Popular, 2024)
6 Ibidem, p. 115.
7 “Nasser’s Memoirs of the First Palestine War”, traduzido para o inglês por Walid Khalidi para a edição do Journal of Palestine Studies publicada no inverno de 1973, é um relato fascinante do caos e da falta deliberada de planejamento do corrupto Alto Comando no Cairo.

Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2024/10/21/tariq-ali-entrevista-rashid-khalidi-os-palestinos-estao-pagando-por-toda-historia-europeia-de-odio-aos-judeus/

A romaria e a treva

 Por EUGÊNIO BUCCI*

 Foto: Thiago Cruz


Existe a guerra da Ucrânia, existem os massacres do Oriente Médio, existe a tal polarização da política brasileira e existem os romeiros de bicicleta. E Deus, existe?

Eu seguia pela Dutra, rumo a Paraty, onde deveria chegar até o meio da tarde para um painel na Flip. Tinha subido no carro bem cedo. Para ser preciso, devo dizer que “vesti” o automóvel pouco antes das oito da manhã. Som desligado. Silêncio no veículo. Motorista solitário, quase contente em cismar sozinho em trânsito, eu pensava na vida e nas mulheres que não amei (Manuel Bandeira me ensinou certo, mas eu aprendi errado).

Foi em Taubaté que me dei conta. Era sexta-feira, dia 11 de outubro, véspera do feriado-mor, o de Nossa Senhora Aparecida, e, no acostamento, afloravam andarilhos em trajes típicos de praticantes de jogging. Em minutos, o número de caminhantes cresceu. Como diriam os economistas, cresceu a taxas exponenciais. O fluxo da via, como diriam os repórteres de rádio, ficou mais carregado.

No celular, o navegador georreferenciado e seu algoritmo recomendaram um desvio, para ganhar tempo. Obedeci. Passei por outras franjas do município e, quando retomei a Dutra, a rodovia estava enfartada. Tudo parado. Em seguida, começou a fluir vagarosamente. Para continuarmos no jargão dos boletins radiofônicos, o motorista encontrou dificuldades. Consideráveis.

O que passava de um lado e de outro da pista tinha ares de uma dessas intervenções urbanas que artistas encenam no meio da rua para alterar a rotina das metrópoles. Gente, gente aos milhares, escorrendo a pé. Eram os romeiros de Aparecida. Umas pessoas abriam as palmas das mãos para o alto, na altura do peito, como se quisessem sentir as gotas de uma chuva que não caía. Outras pareciam rezar em voz alta. O vidro fechado não me deixava ouvir.

Moças esbeltas, de bermudas de lycra bem coladas à anatomia, não tinham um ar muito católico, mas marchavam convertidas. Como um grito da moda, predominavam uns chapéus de pano, do quais escorria um lenço largo para proteger do sol a nuca, pescoço e ombros. Fiéis carregavam cruzes de madeira de proporções variadas: umas, homeopáticas, não eram maiores que uma sombrinha; outras superavam as dimensões de uma cama de casal. Bandeiras imensas, com a imagem da Santa, se projetavam contra o vento.

Camisetas litúrgicas acompanhavam a padronagem dos estandartes. Casais de mãos dadas avançavam com os olhos pregados no chão. Grupos maiores conversavam e gesticulavam distraídos, como se estivessem saindo do trabalho para almoçar. Havia quem pendurasse o par de tênis nos ombros para palmilhar o asfalto com os pés em chinelos de borracha sintética. Vi romeiros de bicicleta.

Existe a guerra da Ucrânia, existem os massacres do Oriente Médio, existe a tal polarização da política brasileira e existem os romeiros de bicicleta. E Deus, existe? No aconchego seco do ar-condicionado, a trinta quilômetros por hora, pensei na velhíssima questão e logo me senti pedante, ridículo e culpado. Se eu estacionasse ali mesmo, abrisse a janela e puxasse assunto, seria mal-recebido, e com justiça. No meu solilóquio passageiro, porém, não desisti de indagar: do que fogem os peregrinos? Da pós-modernidade? Não creio. Das brigas familiares? Do vício? Não creio tampouco.

Fugirão de si? Nunca saberemos, assim como não sabemos o que se busca na peregrinação. Será que cada ser humano busca uma dádiva distinta, mas ainda assim uma dádiva? Pode ser. As caminhadas rituais simulam o curso da vida, mas, até aí, é apenas uma metáfora, não é uma solução.

Nas cercanias dos postos de gasolina, barracas portentosas, como pequenos circos mambembes com armação de alumínio e lonas de plástico, acolhiam as procissões intermináveis, oferecendo um pouco de descanso, um copo d’água, um dedo de prosa. Considerei que as pessoas que fogem de si mesmas estão sempre em busca de si mesmas, e em seguida admiti que eu estava julgando meus semelhantes, de um modo pusilânime, pretensioso e estéril. Meus semelhantes usavam cajados feitos de metal. Eu usava o pisca-alerta. O trânsito ia parar de novo.

Quando eu podia acelerar um pouco mais, o que fazia com gosto, vinha o pedágio. Outra vez, o motorista encontrava dificuldades. Nesses trechos, eu me desprendia das especulações pedestres e me concentrava em identificar de longe as cabines equipadas com cobrança automática. Você pode achar que é fácil, mas eu erro.

Logo depois de Aparecida, com aquela catedral que é maior que um estádio de futebol, o aplicativo me mandou pegar uma estrada menor, mais estreita. Os romeiros milagrosamente desapareceram. Minha cabeça se deixou povoar por outras fantasias, como as ondulações mais íngremes das terras de Cunha, recobertas pelo capim baixo e pelas vaquinhas em preto e branco, que deveriam estar na Suíça e não aqui.

No dia seguinte, na volta, ainda vi peregrinos. Não poucos. Foram quase 37 mil ao todo, segundo a Polícia Rodoviária Federal. Quatro morreram atropelados este ano. Cheguei em São Paulo. Tudo às escuras. São Paulo é a treva. Eu fugiria a pé da Enel? Sim, mas dá preguiça. Eu iria a pé até Paraty? Dou risada sem querer. Se fosse para chegar lá e jantar com Adauto, Maria Rita e Jaime, eu iria, sim.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Fonte:  https://aterraeredonda.com.br/a-romaria-e-a-treva/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-10-21

A sabedoria é uma virtude, mas como julgamos se alguém a tem?

Por Maksim Rudnev e Igor Grossmann

Photo of six people sitting on a bench in a waiting area appearing bored or pensive.

Ilustração de Clayton Junior Studio

Nossa equipe explorou quem é considerado sábio em culturas com tradições filosóficas contrastantes. Os resultados nos surpreenderam

Imagine que você está enfrentando uma decisão que altera a vida. Você foi oferecido uma oportunidade de emprego única na vida no exterior, mas isso significa deixar para trás seu parceiro que não pode se mudar. Dividido entre suas aspirações de carreira e seu compromisso com o relacionamento, você começa a se perguntar qual seria a maneira mais sábia de tomar tal decisão. Você deve abordar o dilema com uma mente fria e pesar todos os prós e contras de maneira analítica e lógica, ou seria mais sensato sintonizar seus sentimentos e tomar uma decisão alinhada com seu coração? Além disso, qual dessas maneiras de lidar com o dilema seus amigos e familiares perceberiam como sábios?

A velha questão do que constitui a sabedoria tem intrigado grandes mentes durante séculos. De filósofos gregos antigos como Aristóteles, que enfatizaram o valor do raciocínio lógico, a sábios chineses como Confúcio, que priorizavam o caráter moral e a harmonia social, a busca da sabedoria tem sido um esforço humano universal. No mundo complexo de hoje, onde muitas pessoas enfrentam desafios ambientais, econômicos ou sociais sem precedentes e decisões difíceis, a busca por sabedoria permanece tão relevante como sempre.

Como criaturas sociais, os seres humanos muitas vezes olham para os outros em busca de orientação e inspiração. Escutamos os líderes que admiramos, os mentores que nos guiam e nossos parceiros que nos apoiam. Indivíduos sábios servem como um contraste com os imprudentemente; eles são aqueles que escolhemos seguir, votar e se esforçam para se tornar. Quando confrontados com um dilema difícil semelhante ao cenário de abertura, as pessoas muitas vezes se voltam para os modelos que consideram exemplos de sabedoria. Eles podem se perguntar: “O que Jesus faria?” ou, brincando, “O que Beyoncé diria?”

Mas o que exatamente faz a sabedoria? Em outras palavras, quais características as pessoas percebem como centrais para um julgamento sábio – e isso varia em todo o mundo? Para responder a essa pergunta, nós e um grande grupo de colegas de todo o mundo realizamos um estudo envolvendo 2.707 participantes de 16 grupos culturais, incluindo populações tão diversas e distantes como Marrocos e Peru, Japão e Eslováquia, índia e Canadá. Apresentamos-lhes retratos verbais de 10 indivíduos – incluindo um cientista, um político e um professor – e pedimos-lhes que comparassem esses alvos uns com os outros e com eles mesmos, com base em 19 maneiras de lidar com uma situação complexa em que não havia respostas certas ou erradas.

Nossas descobertas revelaram uma semelhança surpreendente na forma como as pessoas ao redor do mundo percebem a sabedoria.

Por exemplo, os participantes compararam “Dr. Morgan, um cientista que reúne informações sobre plantas, animais e pessoas para dar sentido ao mundo” com “Alexis, um professor que educa crianças de 12 anos sobre história e literatura locais”. Eles decidiram quem era mais propenso a “pensar antes de agir ou falar”, “pensar logicamente”, “considerar a perspectiva de outra pessoa” (e outras 16 maneiras de lidar com situações complexas) ao tentar fazer uma escolha difícil; então, eles classificaram a sabedoria de cada um desses indivíduos e de si mesmos. Analisamos todas essas comparações para elaborar as dimensões ocultas em que os participantes confiaram para julgar as ações e sentimentos dos 10 caracteres hipotéticos; e então calculamos o peso que eles deram a essas dimensões ao inferir a sabedoria desses personagens.

Nossas descobertas revelaram que, quando as pessoas fazem julgamentos sobre sabedoria, elas estão essencialmente ligando a sabedoria a duas dimensões-chave que chamamos de orientação reflexiva e consciência socioemocional. A orientação reflexiva é provavelmente o que vem à mente quando você pensa sobre uma pessoa “inteligente”: envolve lógica, racionalidade, controle sobre as emoções e a aplicação de experiências passadas. Imagine um cientista brilhante que passa todo o seu tempo no laboratório estudando os mistérios do Universo, analisando cuidadosamente dados e tirando conclusões baseadas em evidências. Este indivíduo exemplifica o aspecto reflexivo da sabedoria.

Por outro lado, a consciência socioemocional envolve cuidar dos outros, escuta ativa e a capacidade de navegar em situações sociais complexas e incertas. Imagine um professor compassivo que não apenas transmite conhecimento, mas também leva tempo para entender as necessidades e desafios únicos de cada aluno, adaptando-se de forma flexível às suas necessidades. Este professor encarna a dimensão sócio-emocional da sabedoria.

Descobrimos que as duas dimensões estão intimamente relacionadas, e as pessoas pensam sobre ambos ao determinar se rotulam como um personagem como sábio. Nossos participantes classificaram os personagens hipotéticos como os mais sábios quando pontuaram alto em ambas as dimensões.

Também nos perguntamos como as atitudes das pessoas em relação a essas dimensões da sabedoria podem variar entre as culturas. Estudos psicológicos antropológicos e culturais há muito sugerem suggestedque a sabedoria está profundamente enraizada em normas e valores culturais específicos. Muitos pesquisadores têm enfatizado as diferenças entre as concepções de sabedoria “oriental” e “ocidental”. O presumido coletivismo da cultura chinesa, por exemplo, é frequentemente atribuído às tradições confucionista e taoísta, que dão grande importância à consciência social e contextual. Em contraste, o individualismo das culturas ocidentais está frequentemente ligado a um foco no pensamento analítico proveniente de antigos filósofos gregos e romanos, bem como os ideais intelectuais do Iluminismo. Consequentemente, parecia simples supor que a dimensão de consciência socioemocional que identificamos estaria mais intimamente associada à sabedoria dos participantes do Oriente global, enquanto a dimensão de orientação reflexiva seria priorizada por aqueles no Ocidente.

Em vez disso, nossas descobertas revelaram uma semelhança surpreendente na forma como as pessoas ao redor do mundo percebem a sabedoria em si mesmas e nos outros, com ambas as dimensões-chave recebendo uma ponderação semelhante em todas as culturas. Achamos que essa semelhança provavelmente está enraizada na necessidade de avançar e na necessidade de se dar bem, que alguns estudiosos se referiram referredcomo necessidades humanas fundamentais. A frente envolve reconhecer quem é competente e tem a agência para fazer as coisas acontecerem – qualidades que se alinham com a dimensão de orientação reflexiva da sabedoria. Conhecer requer habilidades relacionadas à dimensão de consciência socioemocional da sabedoria.

As pessoas estão dispostas a reconhecer suas imperfeições cognitivas, mas acreditam que se destacam em empatia.

Parte do nosso estudo também envolveu pedir aos nossos participantes que classificassem sua própria sabedoria em comparação com os personagens hipotéticos. Isso revelou um viés interessante na autopercepção que também estava presente entre as culturas. As pessoas geralmente reconheciam suas próprias limitações cognitivas, classificando-se mais baixas em orientação reflexiva do que os indivíduos mais sábios. No entanto, eles tendiam a se ver mais social e emocionalmente consciente do que a maioria dos outros. Em outras palavras, eles estavam dispostos a reconhecer suas imperfeições cognitivas, mas acreditavam que se destacavam em empatia, comunicação e consciência do contexto social.

Este grau de coerência transcultural surpreendeu-nos novamente. Pesquisas anteriores sugeriram que uma visão excessivamente favorável da consciência socioemocional é uma característica das culturas ocidentais, mas em nossos dados esse viés de autopercepção estava presente em várias culturas, incluindo aquelas tipicamente descritas como não-ocidentais, como na China, India, Japão e Marrocos. Isso novamente desafia alguns dos estereótipos persistentes que as pessoas têm sobre o Leste vs Oeste e Sul vs Norte.

Propomos que esse viés universal na autopercepção decorre de diferenças no feedback que recebemos na vida cotidiana sobre nós mesmos em relação às duas dimensões da sabedoria. É muito mais difícil preservar um senso inflado das qualidades reflexivas e analíticas de alguém, porque as séries escolares e os resultados da carreira constantemente nos forçam a calibrar nossas auto-opiniões. No entanto, quando se trata de nossa consciência socioemocional, há menos formas de feedback objetivo que nos obrigam a ajustar uma opinião inflada. Imagine um gerente impopular que acredita que ele é atencioso e acessível porque ele tem uma “política de portas abertas” – mesmo que ele ouça um comentário negativo ou dois, pode ser mais fácil ignorá-los ou minimizá-los do que ignorar um fracasso no exame ou rejeição do trabalho.

Enquanto navegamos em nossos dias ocupados, vale a pena todos nós tomarmos um momento de vez em quando para refletir sobre nossa própria sabedoria. Temos agido com sabedoria suficiente? Como podemos equilibrar a razão com a empatia em nossas vidas? De muitas maneiras, o caminho para a sabedoria é profundamente pessoal, moldado pela reflexão sobre nossas experiências individuais, origens culturais e os exemplos sábios que escolhemos seguir. Mas, ao mesmo tempo, quando se trata de julgar onde os outros estão nesse caminho, parece que todos nós, onde quer que estejamos no mundo, estamos olhando através de uma lente compartilhada.

 *Maksim Rudnev é pesquisador associado da Universidade de Waterloo. Ele é um cientista social interessado em valores humanos e percepção social, variabilidade cultural, bem como os métodos quantitativos para a pesquisa comparativa.

* Igor Grossmann é professor de psicologia na Universidade de Waterloo e membro do Colégio da Royal Society of Canada, e estuda sabedoria, julgamento e mudança cultural. Seu trabalho apareceu em Ciência e PNAS. Ele recebeu honras, incluindo o APS Rising Star Award e o SAGE Early Career Award.

OBS: Texto em português traduzido p/Google. O texto original aqui:

https://psyche.co/ideas/wisdom-is-a-virtue-but-how-do-we-judge-if-someone-has-it?utm_source=Aeon+Newsletter&utm_campaign=7d56bd044a-EMAIL_CAMPAIGN_2024_10_21&utm_medium=email&utm_term=0_-d88b59c7bc-%5BLIST_EMAIL_ID%5D

domingo, 20 de outubro de 2024

O deserto, a lava e o fogo

Luiz Felipe Pondé*

O deserto, a lava e o fogo

  A ilustração de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com pastel oleoso sobre papel. 
Na horizontal, proporção 13,9cm x 9,1cm, a ilustração apresenta a imagem de um incêndio em um horizonte de uma paisagem deserta, com vegetação queimada, terra vermelha e laranja refletindo o fogo ao fundo. O céu escuro inteiro está em fumaça, misturado as cores do fogo. Ilustração da Coluna Pondé de 21.out - Cammarota

Sem agonia e sofrimento a travessia do deserto, não há autoconhecimento

Uma das tradições mais ricas no cristianismo antigo é aquela conhecida como os padres do deserto. Homens e mulheres que se exilavam no deserto em regiões como o Egito, Israel, Síria, Turquia (Capadócia) a fim de buscar Deus. Aquilo que conhecemos como a prática monástica é descendente direta desses padres e mães do deserto.

Nesse processo de desconstrução interior, de entrar em contato com seus demônios na solidão e no silêncio, sob a fúria dos elementos naturais, como se falava então, como frio, calor, fome, sede, escuridão, essas testemunhas de Deus —"monachói", raiz grega da palavra "monge"— fundarão a linhagem da busca enlouquecida de Deus atravessando suas defesas psicológicas e máscaras sociais.

 Dostoiévski (1821-1881), segundo a fortuna crítica, se inspira nesse tipo de atravessamento de si mesmo, sem misericórdia, para escrever seu monumental "Memórias do Subsolo", um dos maiores livros já escritos na Europa. Logo na abertura, nosso homem do subsolo se refere a possível causa médica de ele ser um homem tão amargo: ele sofreria do fígado. Mas, tomado pela busca desenfreada de não mentir sobre si mesmo, nosso homem do subsolo fala um pouco mais abaixo algo mais ou menos assim: o problema não é o meu fígado, eu sou mesmo um homem mau.

Até hoje existem homens e mulheres que buscam essa solidão acompanhada pelo Eterno, inclusive no Brasil —não vou citar exemplos de locais assim para não destruir a solidão, a paz e o silêncio dessas pessoas. Em nosso tempo, devemos cuidar para a multidão não destruir tudo.

Seria possível pensar num processo como esse fora da instituição religiosa? E, evidentemente, fora da nebulosa de picaretagem que assola o mundo da espiritualidade desde a segunda metade do século passado?

Essa ideia aparece, por exemplo, na gigantesca nebulosa de picaretagem citada acima, sob a rubrica falsamente facilitada da busca de autoconhecimento. Mas, existem formas consistentes de se atravessar um
 processo assim fora do contexto propriamente religioso institucional. Vejamos um exemplo.

O grande psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) descobriu por si mesmo esse caminho fora de qualquer instituição religiosa —com essa referência, não quero passar a ideia de que seria "melhor" ou "pior" atravessar esse processo fora ou dentro de uma instituição religiosa porque não sofro de qualquer anticlericalismo démodé.

Num sonho em 1927, relatado na sua autobiografia "Sonhos, Memórias e Reflexões", atravessando um período de intenso sofrimento psíquico que muitos se referem como "seu surto", Jung "descobriu" questões essenciais que serão tratadas ao longo
da sua vida profissional e sustentarão a teoria que ficará conhecida como psicologia analítica.

Nesse período ele entrará em contato com o inconsciente coletivo e seus arquétipos —assim ele denominará este conceito— caracterizado por ser algo universal, ancestral e definitivo na história pessoal de cada um, assim como da espécie, como um todo. Como diz o próprio na obra acima citada, foram necessários 45 anos para ele dar conta das experiências que ele viveu até então.

No sonho de 1927 —resumidamente— ele se encontra em Liverpool, suja e escurecida pela fuligem, a conhecida poluição causada pela revolução industrial então ainda recente. Ele se encontra em meio a outras pessoas, cercados pela sujeira, chuva e escuridão. Mas, no centro de um lago à frente, numa ilhota —que ele dirá ser percebida só por ele— uma luz do sol resplandecia numa árvore. Em meio a agonia da vida e do mundo, uma esperança de que se possa viver com algum sentido —a luz— não destruído pela "escuridão".

Para Jung, este sonho indicará seu destino, destino este que ele se referirá como "seu mito". Mas, o conceito que nasce daí será o de "si mesmo", ou "self" cuja trajetória na vida, quando minimamente bem realizada, será o encontro consigo mesmo e o entendimento que a vida só tem sentido quando banhada nessa "corrente de lava e a paixão nascida do seu fogo", como ele mesmo descreve.

A metáfora da corrente de lava e a paixão que nasce do seu fogo não deve ser de modo nenhum menosprezada neste contexto porque ela indica, justamente, a agonia que um processo como esse implica. Agonia esta que poderá se materializar numa paixão por viver sendo fiel ao fogo que queima e aquece ao mesmo tempo, mas que é luz.

Nesse período, Jung desiste de sua promissora carreira de professor na faculdade de medicina de Zurique para se dedicar a sua obra. Sem agonia e sofrimento —a travessia do deserto— não há autoconhecimento.

* Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP. 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2024/10/o-deserto-a-lava-e-o-fogo.shtml