Foto: Divulgação/Lucasfilm Com nove filmes principais, franquia virou um sucesso global que já marcou três gerações
Professores de direito constitucional acreditam que saga de filmes pode trazer ideias valiosas sobre a erosão democrática e a ascensão de tiranos
A saga “Star Wars” pode ser uma fonte rica de lições sobre política, argumentam os pesquisadores Conor Casey e David Kenny, professores de direito constitucional nas universidades de Liverpool e Dublin, no Reino Unido.
Em artigo publicado na revista americana Law & Literature no dia 10 de novembro, os autores afirmam que a franquia criada por George Lucas em 1977 mostra como um governo que não entende seu papel pode dar espaço para a ascensão de figuras autoritárias que, eventualmente, podem instaurar ditaduras autocráticas.
Neste texto, o Nexo apresenta as conclusões obtidas por Casey e Kenny a partir das intrigas palacianas da “Galáxia muito, muito distante”.
O filme como fonte de exemplos
Casey e Kenny, ainda na introdução do artigo, já esclarecem que a análise de um filme de fantasia para debater ciência política e direito constitucional pode parecer estranha para membros da academia, mas é algo que segundo eles faz todo o sentido.
“Neste trabalho, fizemos o que Jaakko Husa [cientista político finlandês] chama de ‘literatura legal comparada’: olhar para a literatura em busca de exemplos comparativos, da mesma forma que alguém pode observar sistemas legais de outros países”, dizem.
“Husa diz que, ao transpor ideias legais para um mundo ficcional controlado, os autores podem explorar suas implicações em um espaço muito menos problemático e imprevisível do que o mundo real.”
Além da busca de exemplos, os autores afirmam que usar “Star Wars”, uma das propriedades intelectuais mais conhecidas da atualidade, pode ser útil para a comunicação de ideias complexas para um público amplo.
“O alcance cultural de ‘Star Wars’ é amplo, fazendo com que as lições tiradas da saga possam ser maiores em magnitude do que exemplos históricos. Quase todo mundo conhece ‘Star Wars’. Ao transmitir essas mensagens por meio de uma história muito conhecida, podemos apresentar essas ideias para um público mais amplo, tornando-as mais acessíveis do que uma análise constitucional histórica e factual.”
A política de ‘Star Wars’
A política dentro do universo de “Star Wars” é dividida em dois grandes momentos: a República e o Império.
Segundo a mitologia da série, a República foi fundada cerca de 20 mil anos antes dos eventos dos filmes. O sistema era formado por representantes dos milhares de planetas da galáxia, dividido nos três Poderes tradicionais: Executivo, Legislativo e Judiciário.
O Legislativo, em “Star Wars”, era o Poder mais significativo e forte, como nos sistemas parlamentaristas. Por meio do Senado Galáctico, decisões sociais e econômicas eram tomadas.
O Poder Executivo era comandado pelo Chanceler Supremo, eleito pelo Senado a no máximo dois mandatos de quatro anos, e com poderes limitados. No universo da saga, o chanceler apenas era o chefe de Estado e o mediador oral das sessões no Senado. Por fim, havia o poder Judiciário, que investigava e julgava crimes quando eles aconteciam.
Militarmente, a República tinha dois braços principais: o exército de clones robôs e a Ordem Jedi. Os clones eram usados em guerras, como soldados de linha de frente. Os jedi, por sua vez, eram uma espécie de “tropa de elite”, intervindo em conflitos a mando do Senado e cumprindo seus papéis de “guardiões da ordem e da justiça”.
Em três filmes, lançados entre 1999 e 2005, o público vê como a República foi destruída pelas maquinações do chanceler Palpatine e posteriormente transformada no ditatorial Império.
Palpatine usou de brechas na Constituição Galáctica para tirar os poderes do Senado, perseguir e matar os jedi e instituir um sistema político autoritário e autocrático no qual ele tinha todo o poder de decisão – um processo que teve significativo apoio popular.
No Império, o Senado era apenas uma instituição decorativa, o poderio militar da antiga República foi expandido, poucos jedi sobreviveram e todas as decisões eram tomadas unicamente pelo imperador Palpatine, e executadas por seu braço direito, Darth Vader.
Palpatine era um Sith, facção formada por ex-jedi que queriam explorar o “lado sombrio da Força”, a energia quase mágica que une todos os seres da galáxia. Sua obsessão era encontrar uma forma de se tornar imortal para poder governar o Império por milênios a fio.
As inspirações de George Lucas para a organização política em “Star Wars” foram o Império Romano; os Cavaleiros Templários (ordem militar da Igreja Católica na Idade Média); a Alemanha nazista; o Vietnã da década de 1960 e os EUA do início dos anos 1970, quando o ex-presidente Richard Nixon estava no poder antes de renunciar em 1974 após o escândalo de corrupção Watergate.
A morte da liberdade
O artigo de Casey e Kenny tem um foco maior nos acontecimentos dos filmes “A ameaça fantasma” (1999); “O ataque dos clones” (2002) e “A vingança dos Sith” (2005), que mostram como as maquinações de Palpatine derrubaram o sistema da República. Segundo os autores, o sistema republicano da galáxia tinha três problemas principais:
- Uma difusão muito ampla de poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário
- Um excesso de burocracias que tornavam o processo institucional lento e pouco claro
- Uma obsessão excessiva com as tecnicalidades da lei, com poucas formas de deliberação sobre disputas, já que o Judiciário tinha uma atuação mínima e limitada a questões de segurança públicas cotidianas
Os pesquisadores argumentam que a República, tão preocupada com estabelecer centenas de formas dos Três Poderes se policiarem, criou um sistema em que o Legislativo tinha muito mais autoridade do que os outros dois, ao mesmo tempo em que essa jurisdição acabava sendo limitada pelo excesso de processos burocráticos.
“Palpatine explorou, mas não criou, as falhas na República”, afirmam os autores. “Nós acreditamos que o governo da República era muito fraco e difuso para conseguir lidar com os problemas de seus cidadãos, se tornando vulnerável à tirania.”
Na história da franquia, Palpatine só pôde instaurar o Império após o surgimento de um movimento separatista formado por milhares de planetas que acreditavam que a corrupção dentro da República tinha chegado a um ponto irreversível, e que a única solução para os problemas era a criação de uma confederação supostamente “apolítica”.
Diante de uma crise crescente e poucas formas de controlá-la, o Senado concordou em dar a Palpatine “poderes emergenciais” de estado de sítio, sem saber de seus planos autoritários. Assim, o chanceler-imperador ativou uma programação escondida dentro do exército de clones que matou a maior parte dos jedi, a última barreira contra a dissolução da República.
Na visão dos autores, trata-se de um exemplo claro do fenômeno conhecido na ciência política como Paradoxo de Publius, em referência ao pseudônimo usado por Alexander Hamilton, um dos pais fundadores dos EUA, para criticar a constituição do país no final do século 18.
Hamilton argumentava que, quanto mais salvaguardas institucionais fossem criadas, menor a chance de um governo tirano tomar o poder. No entanto, com a criação dessas salvaguardas, as funções de cada um dos Três Poderes ficava diluída, dando margem para a ascensão do autoritarismo.
“O excesso de limitações – que tentam garantir que um governo não será poderoso demais – podem ironicamente criar uma disfunção que leva justamente ao excesso de poder que tentam evitar”, dizem Casey e Kenny.
“O paradoxo se consolida em circunstâncias em que o Executivo é forçado a se libertar das amarras legais para responder às pressões sociais, agindo até mesmo de forma extralegal caso necessário”, escrevem no artigo.
Dentro da mitologia de “Star Wars”, a insurreição separatista, aliada às restrições constitucionais da Galáxia e à falta de um poder Judiciário efetivo criaram um cenário no qual o Senado apoiou a cessão de autoridade máxima a Palpatine.
Os pesquisadores também afirmam que uma obsessão com os mínimos detalhes da lei escrita em “Star Wars” também corroboraram com a ascensão do Império.
O Senado, diante de uma crise crescente, encontrou uma forma completamente legalizada de dar os poderes a Palpatine, ao mesmo tempo em que não precisou lidar com os problemas causados pelos separatistas – algo que causou grande alívio ao Legislativo Galáctico. “É assim que morre a liberdade, com aplausos trovejantes”, diz a senadora Padmé Amidala, uma das parlamentares protagonistas de “Star Wars”, ao ver que o chanceler tinha se tornado imperador com aval dos outros senadores.
“Podemos pens ar que a erosão democrática acontece em lugares em que a lei é desrespeitada ou inexistente. No entanto, isso pode acontecer também em locais com respeito máximo pela lei, mas nos quais os princípios legais são apenas um amontoado de palavras escritas em vez de um compromisso real com os propósitos de uma cultura política comprometida com a legalidade”, afirmam os autores.
“No mundo real, entender as lições da República de ‘Star Wars’ pode nos dar ideias valiosas sobre como não devemos amarrar o Estado em demasia a ponto de ser possível criar a exata tirania que queremos evitar”, concluem.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/11/23/As-li%C3%A7%C3%B5es-de-pol%C3%ADtica-de-%E2%80%98Star-Wars%E2%80%99-segundo-estes-autores?utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=anexo
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