sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Somos todos cavalos

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Imagem: Salman Toor

Eles eram muitos cavalos, emblemático (e polifônico) romance de Luiz Ruffato completa 20 anos. A metrópole, o trabalho e os “sem-nome” são seus personagens centrais. Em Milton Santos, Marx e George Orwell, chaves para compreendê-lo

1.

“Onde está o conteúdo senão na forma?”,i descreve Leyla Perrone-Moisés na apresentação do livro As estruturas narrativas, de Tzventan Todorov. Há vinte anos, Luiz Ruffato (1961) lançava Eles eram muitos cavalos (2001), quebrando o que poderíamos chamar das estruturas formais de um romance. No livro ambicioso e singular, cada capítulo é narrado em um único dia, 9 de maio de 2000, em São Paulo, com personagens que transitam entre o que sobrou de humano e as relações corroídas pelo cotidiano embrutecido. Os personagens são apresentados como num mosaico, forma de percepção típica das cidades, de fragmentos de vida simultâneos, de situações provisórias.

Qual seria a melhor maneira de transpor a complexidade da cidade de São Paulo para a ficção? Através de vestígios que estão ali, mas ninguém percebe que estão, de uma maneira não naturalista, de uma forma não convencional, expondo um jogo de “contaminações” de gêneros, diante dessa miséria de carências infindáveis, quase como um obituário de “homens infames”. “Aqui, é a raridade e não a prolixidade que faz com que real e ficção se equivalham. Não tendo sido nada na história, não tendo desempenhado nos acontecimentos ou entre as pessoas importantes nenhum papel apreciável, não tendo deixado em torno deles nenhum vestígio que pudesse ser referido, eles não têm e nunca terão existência senão ao abrigo precário dessas palavras”,iiescreve Michel Foucault em A vida dos homens infames.

Ruffato ordena sua ficção “cartográfica” (de cenas, narrativas e formas múltiplas arraigadas na cidade, explícita ou oculta), como algo geolocalizado, naquilo que imaginamos ser uma relação entre uma geografia física e uma geografia humana ou aquilo que Milton Santos “define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente […] representada por relações sociais que estão acontecendo diante de nossos olhos”,iii nas desventuras e aventuras que juntadas em um punhado de palavras, transforma os acontecimentos do dia a dia em acontecimento estético vivo.

Ao utilizar uma estrutura polifônica, característica das cidades modernas, deixa transparecer que “a vida urbana tornou-se uma mercadoria, assim como a própria cidade”.iv Os personagens da obra nos fazem ver, em seus percursos, que as linhas se cruzam na luta encarniçada pela sobrevivência. Uma sociedade de mortos-vivos que não conseguem nem viver, nem morrer. São personagens que, na criação de significados, se permitem contornados pela normatividade. Tais figuras acordam, vão à luta e olham com receio e esperança para as engrenagens da máquina em que serão depenados.

A obra não está voltada para nenhum herói ou sujeito de destaque. Atém-se aos sujeitos despercebidos, que não desfrutam de nenhuma notoriedade, nenhum reconhecimento público e talvez por isso mesmo “ninguém mais sabe os seus nomes [ou] sua origem…”.v

2.

“A obra não é feita para o bem do mundo, mas é o mundo que existe para a subsistência da visão. […] a fúria de impor aos outros a própria visão; fúria que é simbólica da violência diariamente realizada na vida competitiva”,vi escreve Roberto Schwarz sobre o cinema em comentário sobre o filme Fellini 8½. Ao entrelaçar os vários discursos e as paisagens correlatas, sobretudo das classes médias baixas: exclusão social, vida urbana, anonimato, Eles eram muitos cavalos inscreve sua materialidade. Nesse repertório de narrativas, tempo e espaço vão aos poucos compondo essa polifonia, que exige uma atitude peculiar, um tipo de atenção quase sensorial, habitualmente reservado à música. Encontros, desencontros, violência, deslocamentos, pertencimentos e um texto estético sagaz para “não pra ficar sepultadas nas páginas […], mas pra se tornarem parte da nossa memória coletiva”.vii

Nesse “caderno de exercícios formais”, como pontua o próprio Ruffato, enxergamos uma cidade demarcada por diferentes realidades, representados por vendedores, cobradores, trombadinhas, camelôs, policiais, engravatados, miseráveis, os forjadores do mundo moderno, visualizando “a dor dos que já não veem mais saída para os seus problemas”,viiicompartilhando os dilemas crônicos de uma cidade contaminada, homens e mulheres que enfrentam as mazelas diárias, lutando para sobreviver neste “inferno provisório”.

O personagem Luciano sentencia em “tudo acaba” que “São Paulo inteira decadência e todos a abandonarão e uma cidade-fantasma como as dos filmes de faroeste preto e branco”.ix Expressa os traumas em um simulacro de cidade que “estimula a realização dos aspectos materiais da vida (mais dinheiro e prestígio)”,x as inúmeras promessas de felicidade fracassadas da civilização, de forma que, como diria Milton Santos, “o espaço é, então, um verdadeiro campo de forças cuja aceleração é desigual”.xi Os não-lugares de visibilidade, os corpos marcados, essas vidas-obras que emergem do caos da cidade se dispõe lado a lado em modulações de discurso e formas narrativas variadas.

A cidade fragmentada, nas suas múltiplas possibilidades de forma, vida e coisa, é correspondente à própria estrutura dos textos: ora narrativas organizadas de personagens – humanos, animais, coisas, ora as palavras como personagens, ora lista de livros em uma estante (como numa fotografia), ora informativo meteorológico ou horóscopo profético, ora texto poético em que a tensão da narrativa força a palavra a encontrar espaço no papel, ora forma e sujeitos que se confundem no texto (explorando sinais gráficos ordenadores do discurso de forma inesperada ou apagando-os), entre outros inúmeros arranjos formais e de recortes de indícios da realidade ou de expressão da percepção, da emoção e do pensamento.

Ao tematizar e amplificar o anonimato e mesmo a atividade urbana sem sujeito, o autor arremessa uma pedra na nossa vidraça. Como lidar com esses estilhaços? Como lidar com a memória e com o esquecimento? O personagem Claudionor indaga no episódio “táxi” que “a única coisa que resta é a memória da gente, mas o quê que é a memória da gente?”xii Para Pierre Nora “os lugares de memória, são antes de tudo, restos”,xiii o nada, os vestígios, os vácuos, exige um pouco de atenção e de veracidade ao ver a cidade.

3.

É nessa rede de ligações, rupturas e contrastes formais entre cada uma das histórias que é tecida uma reflexão contundente sobre o Brasil dos anos 2000, realçando os fenômenos da cidade, tendo o centro e a periferia de São Paulo como flexões fundamentais, quebradas em pedaços variados, de tamanho, forma, ocupação do espaço, opacidade e brilho diferentes, embaralhados, constituídos a partir da trama de sentidos e relações e não como espacialidades geográficas delimitadas. É nessa gramática de nosso espaço urbano e tempo que se confirma o lugar único do autor na literatura contemporânea nas últimas décadas.

“A entrevista às duas horas, esquina da avenida Ipiranga com a rua da Consolação, Tem tempo, vasculha as lojas da Galeria do Rock, Cada cedê!, uma tentação, mas, nem um nada no bolso, a conta de voltar para casa, desanima, bate perna, rua Conselheiro Crispiniano, rua Xavier de Toledo, rua Bráulio Gomes, praça Dom José Gaspar, avenida São Luís, avenida Ipiranga”,xivescreve em “a espera”.

Milton Santos aponta em Por uma geografia cidadã “que cada um de nós são dois, oscilando entre a necessidade e a liberdade, entre o que somos e o que queremos ser, entre a dificuldade de afirmação diante das situações e a crença de que podemos ser outra coisa e de que podemos construir outra coisa. Esse duplo homem e esse duplo cotidiano nos remetem de volta às relações de corporeidade, individualidade, sociabilidade e espacialidade”.xv

No Brasil ano 2000, reduzira-se a cerca de 19% o contingente de brasileiros vivendo na zona rural, que havia sido maioria, em torno de 55%, no censo de 1960. Em um país eminentemente urbano, essas novas configurações da estrutura social vieram acompanhadas por grandes desafios, com ameaças à apropriação do espaço público e ao sentimento de pertencimento dos cidadãos, a persistente desigualdade social e distanciamentos cada vez maiores, simbólicos, espaciais, de experiência no âmbito da vida nas cidades. De uma hora para outra, milhões de pessoas empurradas para a nova Zeitgeist.

4.

“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”xvi – frase do celebre livro 1984 de George Orwell. O domínio do presente ajuda a entender o passado e pode se alastrar, freando a destruição da nossa memória popular, buscando olhar um futuro mais possível. Passado e presente rompem de forma brusca na ficção de Ruffato e se reencontram nos estilhaços.

“Ela entreabre o basculhante da janela que dá para a rua e observa, resguardados pela luz anêmica do poste, os primeiros passageiros do ônibus que daqui a pouco começa a circular. Mastiga o pedaço de pão, empurra-o com o resto do café”, narra sobre uma das personagens o capítulo (ou fragmento) “o que quer uma mulher”.xviiO território em que vivemos não é apenas delimitado por espaços de atividades e suas coisas, onde moramos, trabalhamos, estudamos e circulamos, mas é um espaço também de construção da dimensão do simbólico. O desafio e o desejo de traduzir o campo de significados em torno dos cruzamentos de memórias privadas, suas temporalidades e naturezas, é que trazem à tona uma experiência comum popular, de São Paulo e do Brasil.

O retrato desse trabalhador e trabalhadora, bem como de suas coisas, cenas, paisagens, visões, deslocamentos, vai ganhando espaço, não mais como símbolo da pureza divina, idealizado, mas como personagem com múltiplas facetas. Fazendo um paralelo com a observação de Vera Telles em Mutações do trabalho e experiência urbana, o que“esses personagens […] nos fazem ver em seus percursos é que essas linhas perpassam as fortalezas globalizadas da cidade, transbordam seus muros ou vazam pelos poros dessas muralhas, e tal como outros tantos fluxos urbanos vão também redesenhando os territórios e seus circuitos”.xviii Na literatura sobre a qual estamos falando, essas narrativas não caminham para uma grande redenção, não temos uma vitória do oprimido, não há salvação.

Na trama, ressalta-se a relação entre a trajetória dos personagens e a vivência deles no espaço urbano através das múltiplas formas, majoritariamente precárias, de se fazerem conhecer no livro. A cidade não só como palco da trama, mas também uma de suas personagens. São Paulo é a história, em seus endereços reais especificados e seus trajetos nos quais personagens se deslocam, o próprio deslocamento como lugar. Há muitas histórias ocultas na cidade, desde migrantes e imigrantes que ofuscam seu passado para tentar uma nova chance, procurando se reinventar em uma nova vida.

“A velha, esbugalhada, tenaz grudada na poltrona número 3 da linha Garanhuns-São Paulo, não dorme, quarenta e oito horas já, suspensa, a velocidade do ônibus, Meu Deus, pra que tanta correria?”xixquestiona a personagem do capitulo “mãe”. São dessas histórias que emergem Luciano, Claudionor, Maria, Brabeza, Crânio, entre outros. O livro se constrói principalmente na relação entre os personagens e deles com o meio, um lugar da falência da modernização, da eficácia violenta do capitalismo, com um vasto exército de trabalhadores autônomos e do trabalho precário sendo destruídos aos poucos.

5.

“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha”,xxdescreve Karl Marx em O 18 brumário de Luís Bonaparte. A produção de literatura ficcional brasileira nas últimas décadas, coloca poucos personagens desempenhando alguma atividade de trabalho.

“Todo dia às cinco horas da tarde toma rumo de casa, no Boi Malhado, a pé, porque nem trocado pra passagem do ônibus tem”, como descreve um dos personagens no episodio “trabalho”.xxi

José de Souza Martins questiona, em 1997, no contexto de um forte neoliberalismo mundial e discussão sobre a desigualdade, a forma de aplicação do binômio inclusão e exclusão social. O questionamento segue atual: “existem vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes; existe o conflito pelo qual a vítima dos processos excludentes proclamam seu inconformismo, seu mal-estar, sua revolta, sua esperança […] Essas reações, porque não se trata estritamente de exclusão, não se dão fora dos sistemas econômicos e dos sistemas de poder. Elas constituem o imponderável de tais sistemas, fazem parte deles ainda que os negando. As reações não ocorrem de fora para dentro; elas ocorrem no interior da realidade problemática, ‘dentro’ da realidade que produziu os problemas que as causam”.xxii

A questão do trabalho ocupa um lugar de destaque em Eles eram muitos cavalos. São raros os escritores brasileiros conhecedores das trajetórias das classes médias baixas. O autormira seu olhar sobre os sem-nomes, onde as vozes do mundo do trabalho e do banal rangem, compondo um painel poderoso do mundo laboral em uma cidade que não dorme. Ao revelar o cotidiano, a história de um projeto de país fracassado, frustrando as expectativas pessoais, a própria ideia de nação que naufraga.

O autor, capta os personagens, grava seus rostos ou suas coisas, tira ou mantém no anonimato a que foram rebaixados, sendo que a elaboração desse espaço se faz através de uma perfeita simbiose, cuja construção narrativa aponta para as dinâmicas sociais e para compreensão de seu tempo.

O escritor é inquieto do ponto de vista formal, adotando um viés crítico da realidade em forma de percepção, com implicações estéticas, incluindo sua vinculação a diversos campos da arte e que pode ser notado durante todo o percurso da obra. Ao tentar capturar a precariedade da existência, da estrutura e do olhar, debruçado sobre a história dos trabalhadores e trabalhadoras na cidade, Eles eram muitos cavalos constrói sua narrativa sem reducionismo, sem afetação, sem “flores artificiais”.

Tendo uma expressão própria, capaz de traduzir a realidade incômoda, em sua inconstância e consistência imperfeita, não de forma banal, mas aproximando o leitor dos elementos da realidade que se pretende projetar e projeta, o autor transforma episódios e ingredientes cotidianos em oportunidade para falar de seu país e de sua sociedade, quase como um “estive em São Paulo e lembrei de você”. Eles eram muitos cavalos é a latência de vida à margem na grande metrópole. Os espaços, imprecisos, são, na clave urbana, a resposta à nossa estranheza ante o mundo, ante a nossa cidade, ante a nós mesmos.

Passado vinte anos, Luiz Ruffato nos releva na São Paulo inteira decadência que os “esqueletos de colunas, lajes por acabar, pipas singrando o céu cinza, fedor de esgoto, um comichão na pálpebra superior esquerda, a solidão e o desespero” imprimem como algo momentâneo e permanente, a partir do que outrora foi vivido pelo personagem no capítulo “13”. O autor no fundo vai tentando reatar os fios soltos de um Brasil que parece ir do projeto de nação à ruína a todo momento. Sonhar de olhos abertos tentando achar o horizonte é algo muito incerto. Somos todos cavalos e “de mim já nem se lembra”.

Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios?
Salmo 82.

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Notas

iTODOROV, Tzventan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 10.

iiFOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In MOTTA, Manoel Barros da. (org.) Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 207.

iiiSANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: da critica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo: Hucitec, Edusp, 1978, p. 122.

iv HARVEY, David. O direito à cidade. São Paulo: Lutas Sociais, n. 29, p. 73-89, jul./dez. 2012, p. 81.

vRUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 5.

vi SCHWARZ,Roberto. O menino perdido e a indústria. Suplemento literário do O Estado de S. Paulo, 1964.

viiRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 96.

viiiRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 50.

ixIbidem, p. 61.

xIbidem, p. 17.

xiSANTOS, Milton. op. cit., p. 122.

xiiRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 72.

xiiiNORA, Pierre. Entre memória e história: A problemática dos lugares. São Paulo: Projeto História. (10), dez. p. 12.

xivRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 35.

xvSANTOS, Milton.Abertura do XVI Encontro Estadual de Professores de Geografia. Porto Alegre: Boletim Gaúcho de Geografia (UFRGS), nº 21, 1996, p.10.

xvi ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

xviiRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 22.

xviiiTELLES, Vera. Mutações do trabalho e experiência urbana. São Paulo: Tempo Social, v. 18, n. 1, 2006, p. 191.

xixRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 15.

xx MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Centauro Editora, 2003, p. 7.

xxiRUFFATO, Luiz. op. cit., p. 77.

xxiiMARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997, p. 14.

* Wilq Vicente é pesquisador de audiovisual popular, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC) e mestre em Estudos Culturais (USP). É organizador do livro Quebrada? Cinema, vídeo e lutas sociais (2014).

Fonte: https://outraspalavras.net/poeticas/ensaio-somos-todos-cavalos/#sdendnote6anc

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