Tolentino Mendonça*
A morte ocupa um capítulo importante na história das mentalidades. Desde o último quartel do século passado que a chamada História da Morte ganhou um impulso gigante, com nomes como Philippe Ariès, François Lebrun ou Pierre Chaunu, que com os seus estudos relançaram inclusive o interesse pelo tema noutras áreas disciplinares (desde a antropologia, à filosofia ou aos estudos de religião). Mas o efeito disso parece não ter chegado ao modo concreto como a morte é encarada na contemporaneidade. Caminhou-se em duas direções radicais: a privatização da morte e a sua remoção da iconografia da vida. Na sociedade da imagem a morte torna-se sempre mais invisível e anónima, como que perdendo existência civil. A única descrição que se consente é do boletim clínico, que diz tudo e não diz nada daquilo que a morte efetivamente é. Um dia se refletirá sobre a contemporânea ocultação da morte, sobre este embaraço social em que a morte se tornou, sobre esta espécie de afasia que deflagrou em nós como um sintoma a que não prestámos a atenção devida. Em “O Livro da Pobreza e da Morte”, o poeta Rainer Maria Rilke fala de duas atitudes contrapostas em relação à morte. Uma de escapismo e alheamento que torna a nossa morte “um fruto que passou/ verde e sem doçura, sem amadurecimento”. E a outra, a atitude de quem compreende que “a grande morte, que cada um em si traz,/ é o fruto à volta do qual tudo gira”. Não é certamente por acaso que tantas sabedorias, a começar desde logo por aquela bíblica, recomendam que o nosso quotidiano ponto de partida seja o “Memento Mori!” (o adágio latino “Lembra-te que és mortal!”). Conta-se que na Roma Antiga, quando os vitoriosos festejavam e eram publicamente festejados por uma conquista significativa, um escravo recebia o encargo de lhes repetir ao ouvido: “Memento Mori!” À nossa contemporaneidade, que no domínio da tecnologia e das ciências alcança metas que nenhuma época sonhou, faltam, no entanto, mestres que nos ajudem a nos avizinharmos da nossa própria morte com outra consciência e apaziguamento, seguros do que ela representa em termos da nossa humanidade. A morte justamente assumida como limite, mas também como supremo ato de confiança.
Conta-se que na Roma antiga, quando os vitoriosos festejavam e eram publicamente festejados por uma conquista significativa, um escravo recebia o encargo de lhes repetir ao ouvido: “Memento Mori!”
Outras épocas da história têm alguma coisa a ensinar-nos, bem como o infindo cortejo de mulheres e de homens que mantiveram perante a morte os olhos bem abertos. Penso, por exemplo, no extraordinário relato que faz Tomás de Celano (1190-1260 aprox.), o primeiro biógrafo de Francisco de Assis. Com a linguagem hagiográfica do tempo, mas que não deixa de narrar uma verdade fundamental, ele enumera quatro momentos impressionantes. O primeiro é quando o Poverello de Assis “prostrado pela doença grave que encerrou todos os seus sofrimentos, fez com que o colocassem nu sobre a terra nua”, em coerência, até ao fim, com o radical espírito de pobreza em que havia vivido. A morte surge, assim, como uma coisa indistinta da vida. O segundo surge quando Francisco ousa interpretar a morte como libertação e louvor. Diz Celano que ele “passou em ação de graças os poucos dias que ainda restavam até sua morte”. O terceiro momento corresponde ao revigoramento que ele próprio fez dos irmãos que o rodeavam, tornando-os herdeiros de uma visão profética da vida, expandindo a vida para lá das fronteiras da morte. E, no final, quando se dirigiu à própria morte para saudá-la com palavras amáveis. Testemunha Celano: “Chegou a exortar para o louvor até a própria morte, que todos temem e abominam, e, correndo alegre ao seu encontro, convidou-a com hospitalidade: ‘Bem-vinda seja a minha irmã morte!’”
*Cardeal português. Exegeta. Escritor. Poeta.
[SEMANÁRIO#2557 - 30/10/21]
Fonte: https://expresso.pt/opiniao/2021-10-30-Irma-morte-36e02b03
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