Sérgio Telles*
Considerações sobre o filme CORINGA, de Todd Phillips (*)
CORINGA (2019), filme de Todd Phillips, foi indicado para Oscar em várias categorias e venceu o de melhor ator (Joaquin Phoenix) e trilha sonora.
É parte de uma safra de filmes baseados em personagens de histórias em
quadrinhos que pretende dotá-los de uma densidade psicológica
inexistente nas versões originais. Ao invés da convencional narrativa
onde o herói é a impoluta encarnação do bem e o bandido o perverso
representante do mal, essas versões mostram que ambos podem ter momentos
ambivalentes de dúvidas, medos, angústias. Seus inusitados
comportamentos passam a serem vistos como decorrentes de traumas e
sofrimentos vários sofridos em seus passados. É o que ocorre nesse
CORINGA, que já foi por muitos comparados ao filme TAXI DRIVER, de
Martin Scorsese.
A genealogia do Coringa é interessante, pois remete ao mito de dois
irmãos em luta e rivalidade. Embora negado, Wayne, pai de Bruce Wayne, o
Batman, de alguma forma é “pai” de Arthur Fleck, o que faz com que
Batman e Coringa sejam “irmãos”, uma espécie de Caim e Abel, um voltado
para o bem, outro para o mal.
Embora o filme tenha sido aclamado por público e crítica, nos Estados
Unidos alguns julgaram que ele estimula a violência e o crime,
encorajando solitários e desajustados a cometerem assassinatos em massa
nas escolas e ajuntamento de pessoas, como é frequente naquele país.
Outros aproximaram o personagem aos incels – sigla referente a
Involuntary Celibates (Celibatários Involuntários), grupo formado por
homens heterossexuais brancos que não conseguem arranjar parceiras
sexuais ou estabelecer relações amorosas e que estão listados entre os
haters, grupos de ódio que atuam na internet. Observadores negros
disseram que a simpatia e condescendência com as quais o personagem foi
construído seriam impossíveis se ele não fosse branco.
Do ponto de vista psicanalítico, uma visão après-coup da história de Arthur Fleck poderia ser resumida assim: uma criança rejeitada pelos pais biológicos é adotada por uma mulher psicótica, que a negligenciou, colocou várias vezes sua vida em risco, sem defendê-la das agressões de seus namorados. Posteriormente a envolve num romance familiar delirante, no qual assume a maternidade e atribui a paternidade a um homem importante e poderoso. É de se supor que para continuar vivendo com essa “mãe” numa relação simbiótica e indiscriminada (vide cena na qual a banha com desvelo), sem referências paternas, Arthur teve de fazer uso de maciças repressões, cisões e negações. Teve, pois, a sua disposição figuras frágeis e distorcidas para introjetar como modelos estruturantes de seu psiquismo, de sua identidade, deixando a porta aberta para a eclosão da psicose.
Com sua gargalhada compulsiva, uma internação psiquiátrica anterior e
tomando 7 medicações ao dia, Arthur vive em condições financeiras
precárias e tem um subemprego trabalhando como palhaço, enquanto sonha
uma carreira de comediante, fascinado pelas celebridades da televisão.
Poderíamos pensar que suas escolhas profissionais, e até mesmo sua
risada compulsiva, estariam marcadas pelo fato de a mãe chamá-lo de
Happy e dizer que ele viera ao mundo para trazer alegria e felicidade
para todos.
Arthur explicita seu frágil estado mental nas entrevistas com a
assistente social que lhe dá suporte terapêutico. Ali ele fala de seu
estado depressivo, suas vivências de despersonalização e dissociação,
confessando que “nunca teve um instante de felicidade” – o contrário do
vaticínio da mãe. Sua debilitada estrutura interna recebe forte abalo
com os dois episódios de violência física perpetrada pelos adolescentes e
pelos homens no metrô e com a humilhação pública trazida pela exibição
na televisão de sua apresentação vexaminosa no clube de stand-up comedy.
A isso se soma a traumática descoberta de suas origens, o que faz
entrar em colapso os parcos remanescentes de seu equilíbrio psíquico.
Quando Arthur mata a mãe, de certa forma estava apenas concretizando na
realidade algo que já ocorrera em seu mundo interno. A descoberta de
suas origens é um momento decisivo que marca a perda de importantes
sustentáculos simbólicos: a figura da mãe, que, por mais precária que
fosse, era um esteio identificatório – como também perde Wayne como uma
remota e idealizada figura paterna. O posterior assassinato de Murray, o
admirado homem de televisão, também vai nessa linha, ele também era uma
figura paterna que o traiu e humilhou, agindo de forma diferente
daquela como o tratara numa ida anterior ao programa, quando o protegeu
da chacota da plateia e lhe disse que gostaria de ter um filho como ele.
Provavelmente essas situações dramáticas atualizam os traumas arcaicos
primários de abandono e maus tratos.
Nesse sentido, o filme propõe uma explicação traumática clara e
transparente da psicose, da loucura, da violência. Artur é louco e
violento por ter sofrido inúmeros e variados traumas provocados pelo
meio externo – abandono, abuso, humilhações, feridas narcísicas
insuportáveis. Após suportar passivamente tais agressões por um longo
tempo, ele finalmente reage, devolvendo as agressões sofridas.
Colocada nesses termos, essa explicação traumática da psicose mais
parece decorrer de uma visão cognitivo comportamental do psiquismo,
próxima ao do arco reflexo automático de estímulo e resposta, bem
diferente da visão psicanalítica, que reconhece o trauma, mas pensa como
ele vai ser processado no mundo interno e suas dinâmicas inconscientes.
Essa visão revela sua deficiência quando lembramos que a agressividade
não estava circunscrita a Arthur, estendia-se a todos os demais
personagens. Como entender a violência dos colegas de trabalho, dos
adolescentes, dos homens de Wall Street, dos grupos de protesto que
provocam motins e saques nas ruas durante as manifestações políticas
contra as autoridades da cidade? Como entender os desmandos destrutivos
das autoridades, o descaso que deixou a cidade entregue ao lixo e aos
ratos? O que pensar da atitude agressiva e soberba de Wayne que despreza
os pobres e diz que eles são “palhaços” invejosos? Teriam todos sofrido
traumas como Arthur?
Seguramente eles não teriam sofrido agressões e traumas do meio ambiente
tão marcantes como Arthur. Não obstante, sem a intensidade extrema com
que se abateu sobre Arthur, o meio externo, o meio ambiente, atinge a
todos através do desejo e imposições dos pais, da família, do grupo, da
cultura. Sem exibir a forma brutal vivida por Arthur, o mundo externo,
através do desejo dos pais, vai sempre condicionar e organizar o
psiquismo do sujeito. É uma condição estrutural, pois nós nos
constituímos no desejo do outro.
Do ponto de vista psicanalítico, esse é um aspecto a ser corrigido no
filmes. A loucura e o próprio psiquismo não se reduzem a um
funcionamento reflexo simples de estímulo-resposta, há toda uma complexa
estrutura que possibilita o funcionamento consciente e inconsciente da
mente. Mais ainda, esse funcionamento psíquico é posto em movimento pela
força das pulsões de vida e de morte, Eros e Tânatos.
Da maneira como o filme mostra, Arthur sofre passivamente a violência do
meio e, ao se desestruturar, reage na mesma moeda. É como se ele fosse
uma vítima passiva que, num determinado momento. se vinga. Ele apenas
reage, nada vem propriamente dele, a não ser a reação.
Ao incluirmos na equação o entendimento de que existe uma complexa
estrutura psíquica movida por uma dotação pulsional, vemos que o mundo
interno não é apenas uma cópia do mundo externo. Ele é internalizado e
transformado pela pulsão e pelos mecanismos do inconsciente, pelo
processo primário. No caso de Arthur, a inclusão do pulsional faz entrar
em jogo o sadismo e o masoquismo, o que lhe dá uma outra complexidade.
Ao sofrer e exercer a violência e a destrutividade, ele não estaria
apenas suportando ou descarregando de forma ativa o que tivera de sofrer
passivamente, mas está gozando de forma sádica ou masoquista.
Talvez o filme reflita aspectos da psicanálise norte-americana das
relações de objeto, excessivamente centrada no relacional em detrimento
do pulsional.
Na verdade, essa é uma questão central na psicanálise – o que predomina
na constituição do sujeito, os fatores internos (o pulsional) ou os
fatores externos (o outro, o relacional)?
Laplanche diz que essa questão se inicia com Freud ao ouvir suas
pacientes relatarem ter sido seduzidas na infância por um adulto, o pai,
quando elabora a teoria da sedução. Logo substitui essa visão pela
teoria pulsional – as cenas de sedução relatadas pelas pacientes não são
lembranças de fatos ocorridos e sim fantasias decorrentes das pulsões.
Apenas mais tarde Freud sistematiza a teoria do complexo de édipo, mas
sem articulá-la suficientemente com a teoria pulsional das fases de
evolução da libido. Laplanche diz que nesse percurso se sintetiza a
oscilação teórica entre a primazia do outro ou do pulsional no acontecer
psíquico.
Disso deriva duas concepções do aparelho psíquico, a primeira que o vê
como uma mônada solipsista pulsional, e a outra como uma estrutura
aberta para o outro. Um exemplo mais simples desse impasse teórico se
apresenta com o narcisismo: é ele uma estrutura fechada em si,
anobjetal, ou implica necessariamente o outro, a mãe?
A psicanálise atual pende para a concepção aberta do aparelho psíquico,
que permite ir além do intrapsíquico e incluir o interpsíquico, o
interrelacional, o intersubjetivo, o transubjetivo. Tal visão
psicanalítica se inicia com os estudos sobre a transferência e
contratransferência, que levantam uma importante questão tópica, desde
que ambas acontecem não nos aparelhos psíquicos individuais de cada um
da dupla analista-analisando, e sim entre eles, é um produto hibrido que
ocorre num espaço comum criado pela fantasia dos dois, espaço
posteriormente chamado de transicional por Winnicott. Além das
considerações em torno da transferência e contratransferência, a questão
da relação com o outro já aparecia em Freud em seus estudos de grupo
(“O ego e a psicologia das massas”), nos trabalhos de Melanie Klein
sobre identificação projetiva, nos estudos de Bion sobre grupo e todos
os trabalhos mais recentes dos autores que propõem diferentes enfoques
para o que chamam de “terceira tópica”.
O enfoque pulsional e o relacional (relação de objetos) não se excluem, a
pulsão e o objeto estão intimamente ligados, na medida em que o último é
onde ela descarrega sua energia. As pulsões são moduladas através das
relações com o outro e essas relações, por sua vez, são internalizadas e
reinvestidas pelas pulsões, que as submetem aos mecanismos psíquicos
inconscientes.
Vê-se que a violência de Arthur não decorre apenas das experiências
traumáticas violentas com o mundo externo, mas também da intensidade de
sua dotação pulsional e de sua estrutura psíquica, que não permitem
integrá-las e processá-la respeitando o princípio da realidade.
Que a agressividade deva ser modulada dentro do princípio da realidade
não deve ser confundido com a adaptação à realidade social. E esse é um
outro aspecto interessante no filme – a ligação entre a loucura de
Arthur e a loucura social, colocada já na primeira cena: vemos a cidade
tomada pelo lixo e pelos ratos, ao mesmo tempo em que aparece Arthur se
maquilando e forçando, de forma dissociada, expressões faciais
grotescas. Já aí entramos em contato com a dificuldade de Arthur com seu
corpo – as caretas, a risada, a deformidade da face do Coringa, sua
surpreendente dança.
A superposição da loucura de Arthur e a loucura social é mostrada várias
vezes em seus encontros com a multidão vestida de palhaço. Os
manifestantes estão assim vestidos como resposta à agressão de Wayne
que, como vimos, chamara os pobres e despossuídos de “palhaços” e também
como uma identificação com o palhaço que matara os executivos de Wall
Street – o assassinato cometido por Arthur adquirira uma inesperada
conotação política, representando a revolta contra o poder constituído
que zela pelos interesses dos ricos e ignora os pobres, como diz sua
terapeuta ao avisá-lo de que não terá mais medicação ou seguimento pois o
serviço foi descontinuado “e eles estão se lixando para gente como
nós”. A greve dos lixeiros tem uma conotação simbólica, quer seja como
referência ao lixo da corrupção política, ou metáfora do “lixo” humano
produzido por uma economia criadora de grandes injustiças sociais.
Essa superposição é interessante na medida que confunde a loucura
psicótica de Arthur com a violência de um protesto ou revolta política. É
necessário discriminar a primeira – violência psicótica, regida por
conflitos internos, da segunda, imposta por questões reais, como
situações de tensão ou opressão social quando o protesto e o uso da
violência podem ser legítimos e não expressão de loucura. Não se pode
patologizar o protesto político.
As cenas com os palhaços são interessantes não só por proporem uma
confusão entre a loucura psicótica e a violência política, mas por
mostrar, por um lado, o esfacelamento da identidade de Arthur (o palhaço
Arthur se dissolve no meio de uma multidão de palhaços) e, por outro,
mostrar as situações de psicologia de grupo e do mal-estar na cultura,
tal como descritas por Freud.
Essa confusão entre a violência psicótica e a social leva a outra
distinção – a que existe entre violência e destrutividade. A violência é
a expressão direta da força que muitas vezes é necessária para defender
a vida e seus próprios interesses. A destrutividade visa aniquilar o
outro enquanto ameaça ao próprio narcisismo. A violência e a agressão
podem estar a serviço das pulsões de vida, a destrutividade é uma
expressão da pulsão de morte. Melanie Klein afirma ser a inveja o
sentimento destrutivo por excelência, avatar direto da pulsão de morte.
Para Arthur, entretanto, essa superposição reforça seus delírios de
grandeza. Sente-se reconhecido como herói e exemplo seguido por todos. A
psicose está consolidada. Ele mata mais um, a psiquiatra, e foge para
dar seguimento a sua vida de crime, assumindo a nova identidade como
Coringa, uma imagem que bem sintetiza vários aspectos de sua história.
É interessante que Arthur escolha se caracterizar de Coringa e sua
maquiagem justamente acentue um riso perpétuo, que apontaria para a
negação maníaca, a impossibilidade de deprimir, de fazer lutos. Alguns
autores acham que o personagem foi vagamente inspirado no livro “O homem
que ri”, de Victor Hugo. No livro, quando criança, o personagem foi
roubado dos pais aristocratas por uma trupe ambulante de saltimbancos e
sofreu incontáveis abusos e o acidente que lhe deformou definitivamente o
rosto com um riso imutável. O ter um romance familiar complicado
toldando as origens leva a problemas de identidade, como aparece no
filme. A esse respeito, não esqueçamos que no baralho o coringa é uma
carta sem “identidade”, ela pode assumir o valor de qualquer outra, o
que bem ilustra o quadro psicológico.
Voltando ao filme, a fuga de Arthur, já metamorfoseado de Coringa, se dá
ao som de That´s life, cantada por Frank Sinatra. Deveriam ter
traduzido a letra, pois não é à toa que a música toca naquele momento
final. É uma canção desesperada de alguém lutando com todas as forças,
disposta a pagar qualquer preço para não perecer.
Para sintetizar, diria que o filme mostra uma visão parcial e um tanto
ingênua da loucura, na medida que a descreve como uma mera reação
reflexa a agressões externas, sem se dar conta da complexidade da
atuação dos fatores do mundo externo, que não se reduzem aos traumas
como os de Arthur e dependem fundamentalmente do desejo do outro, da
fusão desses elementos externos provenientes do outro com os fatores
pulsionais e o intricado jogo dos mecanismos inconscientes que eles
colocam em andamento.
Outra confusão que o filme promove é equiparar a violência psicótica
louca de Arthur com a violência de protestos políticos. O palhaço de
Arthur não pode ser confundido com os palhaços que protestam contra
Wayne.
Se quiséssemos ampliar mais ainda, diríamos que o filme aborda as origens do mal.
*Psicanalista.
(*) Mesa redonda com Dora Tognoli, promovida pela Associação de Psicoterapia Psicanalítica (SP), em 16/05/2020, disponivel em YouTube
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