Por Pilita Clark, Financial Times
O atrofiamento da escrita começa a afetar profissionais como os peritos forenses em caligrafia, entre outros
No mês passado, fui em férias a uma cidadezinha no sul da Espanha que eu visito há mais de 20 anos, onde uma amiga perguntou: “Por que seu espanhol ainda é tão ruim?”. “Bem”, disse eu, fazendo força para lembrar como dizer em espanhol que, após décadas de estudos intermitentes, houve, na verdade, épocas em que eu conseguia falar tão bem quanto qualquer nativo de 4 anos de idade.
Esta não era dessas épocas, infelizmente. Por isso, fui para casa, sentei e comecei a escrever listas de conjugações de verbos à mão — e foi aí que descobri coisa ainda pior. Minha letra, que nunca foi boa, tinha se transformado em rabiscos quase ilegíveis. O próprio ato de escrever era um esforço. Anos de digitação de mensagens ao celular tinham cobrado um preço pouco atraente.
É extremamente improvável que eu seja a única. Quase 60% dos britânicos dizem que escrevem menos à mão do que cinco anos atrás, segundo pesquisa realizada no ano passado, e 12% nunca escreveram sequer uma lista de compras. As crianças mandam e-mails para Papai Noel e algumas têm dificuldade em segurar a caneta.
A pergunta é: será que isso é realmente importante? O mundo não seria um lugar melhor se tudo o que escrevemos fosse tão claro e inequívoco quanto a palavra impressa? O mundo da medicina certamente seria: um americano de 42 anos morreu certa vez após um farmacêutico, ao ler a receita escrita de maneira desleixada por um cardiologista, lhe vendeu comprimidos errados.
Mas os dados mostram que, no campo da aprendizagem, escrever à mão é, definitivamente, importante. Vários estudos revelaram que tanto crianças quanto adultos aprendem e lembram mais quando escrevem à mão. “Isso estimula o cérebro de uma maneira muito diferente do que o teclado”, diz a professora de neuropsicologia Audrey van der Meer, da Noruega, cuja pesquisa sobre o assunto é amplamente citada.
Isso joga uma melancólica luz sobre dados recentes, indicativos de que despencou de 70% em 2019 para 59% em 2022 a parcela de alunos mais jovens das escolas primárias britânicas que alcançam os padrões de escrita previstos.
Van der Meer reconhece que ela mesma dificilmente escreve à mão e que não reconheceria a letra de sua filha de 19 anos “porque, pelo que sei, ela não escreve nada à mão”. Quando Van der Meer dá aula na universidade, vê, admirada, “uma muralha de símbolos da Apple” dos laptops dos alunos, poucos dos quais fazem anotações à mão. “É uma pena, de verdade”, diz ela.
O atrofiamento da escrita começou a afetar outras vidas também, como as dos peritos forenses em caligrafia. “É uma preocupação”, diz Steve Cosslett, um perito britânico que forneceu provas em centenas de casos judiciais desde o começo de sua carreira, em 1983. Para atestar a autenticidade de, digamos, uma assinatura ou um testamento, precisa-se de uma série de assinaturas autênticas. Mas elas são mais difíceis de encontrar agora, quando as pessoas deixaram de assinar coisas como cheques. “As pessoas não conseguem fornecer material de referência suficiente”, diz ele.
Cosslett também pondera que o campo da perícia forense de escrita à mão está encolhendo. O número de analistas de documentos que trabalham em laboratórios credenciados de investigação policial na Inglaterra e em Gales encolheu de pelo menos 25 na década de 1980 para cinco ou seis hoje.
Isso é inquietante, considerando-se alguns dos casos nos quais a empresa de Cosslett trabalhou. Sua análise contribuiu para condenar Victorino Chua, um enfermeiro do noroeste da Inglaterra sentenciado, em 2015, a 35 anos de prisão por envenenar e assassinar pacientes injetando insulina em sacolas de soro fisiológico. E as provas de colegas de Cosslett foram usadas no caso de uma cuidadora condenada à detenção por um tempo quase equivalente após ter adulterado o testamento de um milionário solitário antes de matá-lo por inanição.
É difícil imaginar um mundo em que a escrita à mão desaparece completamente, menos ainda uma época em que todos preferem digitar uma carta de amor ou ditá-la para Siri, a assistente inteligente da Apple. Acho que alguma coisa também vai se perder se deixar de existir gente como a grafóloga Tracey Trussell.
Os grafólogos, ao contrário da maioria dos peritos forenses em letra de mão, analisam a caligrafia para avaliar traços de personalidade. São muitos os céticos sobre esse tipo de coisa, mas Trussell diz que é muitas vezes contratada pelas empresas — hotéis, administradoras de imóveis, empresas de engenharia — para avaliar candidatos a empregos.
“A área de negócios é tão rápida quanto sempre foi”, ela afirmou. Curiosa, perguntei se ela analisaria um trecho da minha letra à mão e, em 24 horas, recebi sua avaliação de oito páginas de meus garranchos. Fiquei sabendo que minha “autoestima é saudável” porque meu pronome pessoal “eu” é de bom tamanho, enquanto minhas palavras inclinadas para a a direita revelam um barômetro muito bem regulado, embora dotado “da capacidade de ser áspera e pungente por vezes”.
Acertou na mosca!”, disse meu marido. Os demais entre nós podem ser mais difíceis de convencer, mas a vida certamente será mais pobre sem esse tipo de coisa. Como observa Trussell em seu livro “Life Lines”, escrever à mão é uma das conquistas basilares da nossa espécie. Nós a consideramos ponto pacífico, mas, se ela desaparecer totalmente, sentiremos sua falta mais do que jamais pudemos imaginar. (Tradução de Rachel Warszawski)
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2022/08/17/por-que-o-habito-de-escrever-a-mao-nao-deveria-desaparecer.ghtml 17/08/2022
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