domingo, 28 de agosto de 2022

‘Criminalização da pobreza é a maior ameaça à infância’

Crianças indígenas do povo Xokleng Laklano brincam em aldeia de Santa Catarina : elas estão agachadas e brincam em uma área com terra e árvores  

Crianças indígenas do povo Xokleng Laklano brincam em aldeia de Santa Catarina
Foto: Amanda Perobelli /Reuters 15.08.2021

Historiador da infância e da juventude explica ao ‘Nexo’ como o conceito de ser criança mudou ao longo do tempo e quais fatores podem afetar essa ideia no futuro

Antes de revoluções burguesas que ocorreram no século 18 – como a francesa e a industrial – o conceito de infância como entendemos hoje era inexistente. As crianças eram vistas como mini-adultos, sem proteção ou direitos, e o alto índice de mortalidade infantil resultava numa menor atenção aos primeiros anos da vida.

Com a evolução de áreas do conhecimento como medicina, pedagogia e psicologia, a inserção de teorias que designaram a família e a infância “ideal”, uma mudança positiva foi proporcionada na educação e políticas públicas. Por outro lado, para o pesquisador da historiografia infantil Eduardo Silveira Netto Nunes, a imposição de uma imagem idealizada sobre o que é ser criança criminaliza a pobreza – e traz a ideia de que, se criada fora do padrão, a criança torna-se, automaticamente, uma ameaça social.

Nesta entrevista, Nunes fala ao Nexo sobre como a ideia de infância se formou, e as maneiras como esse conceito ainda está em disputa e transformação.

Doutor em história social pela USP (Universidade de São Paulo), Nunes leciona na UFAC (Universidade Federal do Acre) e é coordenador do Grupo de Trabalho de História da Infância e Juventude da ANPUH (Associação Nacional de História – seção SP). Abaixo, os principais trechos da conversa.

Quando o conceito de infância passou a ser entendido como o entendemos hoje?

Eduardo Nunes Durante certo tempo existiu a ideia de que não havia infância propriamente dita. Antes do século 18 e 19 de maneira especial, a criança era entendida como um adulto em miniatura. Por influência de um autor francês, chamado Philippe Ariès, se entendia que a infância teria aparecido junto com a emergência da chamada sociedade burguesa a partir do século 18.

Esse autor, que ainda é muito influente nessa interpretação, afirma que existe um momento da vida específico que marca essa fase, dos 4 aos 14 anos. Do nascimento até essa idade, a criança viveria uma fase em que não havia muita dedicação, porque a mortalidade infantil era muito grande. O Ariès também incorpora essa visão da infância ideal, com a família nuclear de pai, mãe e filhos, em uma casa de alvenaria, com o quarto da criança e os cuidados. E que o que estiver fora desse padrão é visto como um problema.

A partir do momento que consideramos que a infância parte da relação com os adultos, entendemos que todas as sociedades construíram as suas infâncias. Essa infância da sociedade burguesa, industrial, dos países ocidentais, não é o único parâmetro. Porque são modos de pensar normativamente um tipo de infância. Nós como estudiosos buscamos pensar nas infâncias de cada época que não necessariamente se adequam ao padrão defendido pelo Ariès.

Países como o Brasil não se inserem nessa dinâmica histórica. Você teria, até os dias de hoje, uma infância que vive mais próximo disso, que seria a infância da classe média, e outra que nunca viverá isso, a infância mais humilde, popular, ribeirinha, indígena.

O sr. pode citar fatos históricos que contribuíram para essa mudança?

EDUARDO NUNES A emergência das revoluções burguesas fizeram emergir um novo tipo social, particularmente do século 18 em diante, com as revoluções francesa e industrial. É quando as crianças começam a receber um investimento social, que fica mais agudo e forte no século 19 e 20.

Essa classe burguesa, que diferenciava-se da aristocracia e dos plebeus, emerge e passa a construir uma dinâmica de vida. Entenda-se classe burguesa como se fosse a classe média hoje, em que não há grandes posses, mas que também não é tão empobrecida. Ela vai atribuir um valor grande a uma concepção de família, que conhecemos como família nuclear burguesa: pai, mãe e filhos. Em contraposição à aristocracia, que forma o seu patrimônio pela hereditariedade, a sociedade burguesa se distancia dessa dinâmica e se constitui em torno da família, com patrimônio construído pelo trabalho e herdado pelos filhos. Nessa mudança de dinâmica, as crianças passam a ser valorizadas e a família passa a dedicar atenção à sobrevivência.

Foto: French Revolution Digital Archive
Ilustração da queda da Bastilha, marco da Revolução Francesa
Ilustração da queda da Bastilha, marco da Revolução Francesa

A Revolução Francesa, demarcação de um chacoalhar da ordem aristocrática, tensiona as ordens aristocráticas e faz uma reforma da educação moderna, que atribui também à escola a responsabilidade pela infância. A Revolução Industrial também reproduz uma nova dinâmica, empurrando famílias e crianças para a cidade, e foi fundamental para a criação de infâncias escolarizadas. Na mesma ideia de hoje, de formação para o futuro, que é construído pela ideia da criança como “folhas em branco”.

Na dinâmica estatal, a finalidade é formar cidadãos leais, que se identifiquem com a ideia de pátria e país, para que possam ser soldados no futuro em um ambiente de Estados-nações em conflitos militares que vão precisar de soldados para lutar nas guerras. As crianças passam a ser importantes para os Estados-nações e nova ordenação da vida social, tanto para criar famílias tanto como para criar uma população identificada e leal a uma nação e a um Estado, estratégico para seu estabelecimento e continuidade.

Na dinâmica familiar, forja o sentimento da vida doméstica que não era comum antes: de uma casa, com os pais, com o quarto da criança, com o amor. Esse sentimento chamado amor, de amor filial, foi construído culturalmente, não vem desde sempre.

Qual o peso das contribuições acadêmicas de áreas como psicologia e pedagogia para essa evolução?

EDUARDO NUNES Temos o desenvolvimento da pedagogia como a ciência que vai lidar com essa invenção das infâncias, o da psicologia, de maneira especial no final do século 19, que vai levar muito em consideração a experiência da vida familiar a íntima e na construção da ideia de paternidade, maternidade e filiação.

As áreas de conhecimento vão inventar novas infâncias dentro da pedagogia, da psicologia, da assistência, da medicina, com expressão maior na primeira metade do século 20. Na medicina, por exemplo, foi realizado um grande investimento na redução da mortalidade infantil, com a criação de maternidades, de clínicas de saúde infantil, de manuais de conduta para pais e mães, que surgem de maneira especial no fim do século 19 e século 20, e viram um guia de como ser uma mãe e um pai “corretos”, que valoriza o investimento sentimental.

Foto: FOTO: Pablo/Creative Commons
foto aproximada de mão de bebê sobre peito da mãe
foto aproximada de mão de bebê sobre peito da mãe

Hoje, temos mulheres que têm depressão pós-parto, por exemplo, e há uma tentativa de compreensão. Antes, isso era visto como negligência e falta de amor. Porque os manuais diziam: a mãe é uma abnegada, tem que amar. Vai se construir um referencial moral e normativo de tentar induzir sensibilidades que nem sempre, na vida concreta, as mães conseguiam dar conta. Isso são construções que essas áreas do conhecimento – medicina, pedagogia e psicologia – farão.

No Brasil, quais foram os principais marcos históricos e legais na mudança de percepção sobre a infância?

EDUARDO NUNES Enquanto na Europa, em termos históricos, passávamos por essa era moderna, no Brasil e na América estávamos passando por processos que são a continuidade de uma sociedade escravista, patriarcal e colonial. Se você pegar 1850: a infância vivida na Europa não era a das crianças indígenas brasileiras. Como eram as infâncias das crianças escravizadas? Sim, elas tinham infância. Não essa infância idílica, bucólica. Era dura, pesada, mas havia.

Essa realidade ideal da infância, da propaganda de margarina, é parte de uma realidade brasileira que não é a experiência de um contingente gigantesco de crianças, e elas não viveriam infâncias. Nós como historiadores da infância tensionamos essa ideia de uma infância ideal e vamos trabalhando com a ideia de que a experiência infantil são as vidas que as crianças vivem e que os adultos que se relacionam com elas constroem com elas.

Nós tivemos desde a Proclamação da República [1889] olhares diferentes para as crianças e suas infâncias. Teremos uma tentativa de construção de infância de um modelo ideal entre classes mais abastadas, que passa pela escolarização e aquisição de patrimônio cultural. Durante o século 20 no Brasil se teve o entendimento, na legislação, de que as crianças podem ser o futuro, mas também podem ser um potencial risco à ordem coletiva.

A criança pobre será vista pela classe média e pela ordem legal de maneira sempre suspeita: o que será que vai acontecer com essa criança? Ela vai ser um delinquente, ela vai ser um problema? Ela está vivendo de um jeito que não é exatamente o “correto”. Teremos a história das crianças sendo objeto de intervenção do Estado pela condição de pobreza. Nós vamos cunhar um termo que é a criminalização da pobreza, a estigmatização de ser pobre. Quem é pobre no Brasil ao longo do século 20? São os filhos, os descendentes de escravos e escravas, as crianças libertas.

Foto: Ricardo Moraes /Reuters
Morador da Rocinha, com uma criança no colo, tem mochila revistada por policial em operação na comunidade.
Morador da Rocinha tem mochila revistada por policial em operação

Depois do final da escravidão, temos no Brasil as primeiras leis que vão lidar com crianças. Primeiro o código criminal da República, de 1893, e depois a lei Mello Mattos, de 1926, que vai estabelecer o chamado direito para as crianças pobres [também fixou a menoridade em 18 anos]. Esse código criou um aparato normativo de que todas as crianças pobres podem sofrer intervenção do Estado brasileiro pela condição de que não vivem a infância “ideal”. Essa lei coloca as crianças vulneráveis como tuteladas pelo Estado, porque vivem, pressupostamente, como desajustadas, segundo a norma do que seria a boa infância.

Ao longo do século 20, essa legislação passou por mudanças, o que permitiu ao Estado o direito de colonizar as famílias pobres. Seja através da retirada da família e colocação em internatos, do medo de que as famílias podem perder a guarda das crianças, seja através da regulação de sub trabalhos das crianças, que se chamava de contrato de soldada, quase uma continuidade de um trabalho doméstico de crianças submetidas à escravidão. Vamos ter um contingente gigantesco de crianças que vão ser literalmente sequestradas e colocadas em famílias mais abastadas e que serão as “criadas”, o “quase um filho ou uma filha”.

Essa tutela do Estado culminou depois, a partir da ditadura militar (1964-1985), na criação dos sistemas da Febem [hoje Fundação Casa], e interfere de modo mais numericamente amplo nas famílias pobres. Aí sim, nesse período da ditadura, ser criança pobre é uma patologia muito grave aos olhos do Estado e da sociedade, nomeando-a como criança em situação irregular.

Classificar crianças pobres como patologia é completamente ruim, a criminalização da pobreza é uma das maiores ameaças à infância. Porque se entende que não existem formas diferentes de viver uma infância digna, que não existe possibilidade de se viver infâncias diferentes. E se cria a ficção de que viver a infância na classe média é um paraíso: as crianças não são abusadas física e psicologicamente. E quando tem algum problema, se lida secretamente com ele: você vai bater na porta do psiquiatra e do psicólogo, não da polícia. Casos muito raros da classe média acontece isso: de os pais perderem a guarda.

No Brasil, como é a vida de uma família popular? É a de mãe solo, em muitas e muitas gerações. Durante o período colonial no Brasil [1530-1815], em São Paulo, as chefes de família não eram os homens. Os bandeirantes e tropeiros iam para dentro dos territórios, e a urbe em São Paulo se constituía majoritariamente por mulheres chefes de família. Ao invés de ter patriarcados, tínhamos matriarcado em uma sociedade patriarcal. As mães que faziam a vida das famílias acontecerem, famílias que não eram nucleares e burguesas.

Temos uma quantidade enorme de crianças que têm uma experiência de relação familiar com mulheres: a mãe, as avós, as tias. O pai, muita das vezes, é quando muito um nome na certidão de nascimento, ou uma pensão. Portanto, como se dá a experiência infantil dessas crianças? Essas crianças vivem infâncias? A infância brasileira, desde sempre, é muito diversificada, como as infâncias indígenas. Temos centenas de povos e culturas diferentes, e cada povo terá um modo específico de lidar com as suas crianças. Ao invés de defender uma infância normatizada, temos que entender essa comunidade, esse povo, essa cultura. Para aí sim compreendermos quais são as infâncias que eles concebem para os seus pequenos.

A Carolina Maria de Jesus (1914-1977), tem um trecho no “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” [livro publicado em 1960, sua obra mais], em que ela fala dessa condição de ser mãe trabalhadora, de ser mãe solo e ter crianças consigo, é uma condição sob constante vigilância. Por vezes, ela pode trazer consequências mais graves ou ser só uma “ameaça”, e a política pública não considera essa pluralidade.

O que muda com o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069 de 1990]: a afirmação de diversos grupos de luta social, como movimento nacional de meninos e meninas de rua e de mulheres trabalhadoras, que vai partir da ideia de que essas crianças vivem suas infâncias de forma dramática, mas constroem suas dinâmicas a partir do que pode se viver. Não são uma patologia, não são criminosas. Vivem a condição de criança de forma peculiar e a sociedade precisa compreender como se experimenta essa infância, para aí sim pensar as políticas públicas que, ao invés de punir porque se vive dessa maneira, vai buscar viabilizar que se viva dignamente a condição de criança. Ela não será mais concebida como criminalizada, de alguém que demanda sanção, mas sim que demanda atenção, atendimento dos seus direitos.

Foto: Ricardo Moraes/Reuters - 14.set.2020
Crianças no retorno às aulas presenciais durante a pandemia de covid-19, no Rio de Janeiro
Crianças no retorno às aulas presenciais durante a pandemia de covid-19, no Rio de Janeiro

Há uma mudança brutal e profunda na maneira como o Estado e a sociedade lidam com a pluralidade das infâncias. Na perspectiva de que é direito viver sua condição dignamente, que possa brincar, viver sua saúde, ter oportunidade pela escolarização, que tenha espaços de lazer e exerça sua autonomia. Essa emergência da afirmação que é direito viver múltiplas infâncias é um ponto bastante importante nessa movimentação que culminou no ECA.

A ideia de infância está em transformação atualmente? Qual pode ser esse futuro?

EDUARDO NUNES Continuamos a ter uma certa disputa pela compreensão dessas infâncias. Existem ainda no Brasil grupos como professores, juízes, entre outros, que não compreendem a ideia de infância plural. As múltiplas infâncias não são uma questão de escolha, mas de construção da vida social. E isso ocorre não só no Brasil, mas em todo o mundo. As infâncias dos imigrantes na Inglaterra não são as mesmas de ingleses com condições abastadas.

Como uma afirmação mais absoluta, podemos dizer que hoje temos maior abertura para essa multiplicidade de infâncias, gerações de gestores e gestoras públicas que atuam dentro de uma concepção ampliada. Porém, há forças reacionárias dessa concepção, com uma ideia essencialista de infância e família, que não consideram a historicidade das múltiplas infâncias e às vezes até esquecem de como foi a sua própria infância.

A política do governo federal atual é carregada de exemplos desses freios às múltiplas infâncias. Da ideia do “meninos usam azul e meninas usam rosa” [fala da ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, em janeiro de 2019], temos a afirmação de uma construção sociocultural que as crianças têm que representar uma identidade de gênero que vai sendo delimitada no processo da construção da vida. Exige-se uma identificação para levar adiante os valores patriarcais no Brasil, que produziram muita dor e sofrimento na história, em relação às crianças e às mulheres.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Damares Alves, em cerimônia em Brasília em que assumiu o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos
Damares Alves, em cerimônia em Brasília em que assumiu o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos

Outro exemplo são as escolas cívico-militares. Na norma, elas são destinadas a crianças e adolescentes pobres, vistas pelo Estado como ameaçadoras. A figura policial na escola, da disciplina militar, é uma ideia de submissão à força.

Entendemos que a educação brasileira tem grande potencial de levar em consideração as múltiplas infâncias, com a mudança da dinâmica escolar entendendo-as como diversas. Além de construir e promover nas cidades espaços de lazer pensados para as crianças, para que elas tenham a experiência da cidade. Outro ponto é o financiamento educacional. Temos uma legislação que é o custo qualidade-aluno [indicador que mostra o valor necessário de investimento ao ano por aluno em cada etapa escolar], para que a criança tenha garantido todos os seus direitos, que esse dinheiro esteja presente nos orçamentos públicos. O fortalecimento de medidas protetivas também é essencial. Temos uma capilaridade nessa estrutura, com os conselhos tutelares por exemplo, mas nem sempre há verba para que eles exerçam a fiscalização devida. Essa é a parte do dinheiro.

Outra parte é do imaginário: é preciso que circule mais a ideia de pluralidade de infâncias. Que leve em consideração as infâncias reais, e não as imaginadas. A família real não é pai, mãe e filhos, mas uma família que se impõe como realidade. Tem as famílias nucleares, mas que também não são perfeitas. Tem crianças órfãs, algo que aconteceu muito na pandemia de covid-19, o que implica que muitas crianças não vivam essa ideia de infância “ideal”, frente a essas místicas de que só existe um modo de família
 
Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2022/08/23/%E2%80%98Criminaliza%C3%A7%C3%A3o-da-pobreza-%C3%A9-a-maior-amea%C3%A7a-%C3%A0-inf%C3%A2ncia%E2%80%99

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