José Costa Júnior*
Numa das cenas mais interessantes do filme polonês “Rede de ódio”, de Jam Komasa, o personagem principal, Tomasz Giemza, um ex-estudante de direito, conversa com um candidato a prefeito da capital polonesa. Nesse encontro, que definirá os acontecimentos da história, o político questiona Tomasz sobre sua visão política e seus ideais. O candidato pergunta: “tem interesse em política?” O ex-estudante responde: “absolutamente não”. “E pelo que você se interessa?”, pergunta o candidato, “por pessoas”, responde prontamente Thomas. Trata-se de um diálogo curto, porém revelador sobre o filme e reflexivo sobre as nossas atuais circunstâncias no globalizado e complexo mundo contemporâneo.
Tomasz foi expulso da faculdade em que estudava por copiar um trabalho acadêmico. Além dessa tensão, seu curso era pago pela rica família Krasuckis da qual era próximo, a quem estava conectado numa relação estranha de proximidade e dependência, que impacta sua estima e identidade. Essa relação se torna mais complexa à medida em que os desejos e objetivos de Tomasz mudam, inclusive manifestando um interesse afetivo pela filha mais nova do casal que o ajuda. No entanto, parece que algumas coisas não são possíveis, mesmo que ele se esforce para se inserir naquele mundo de grandes possibilidades de realização. O fato de ser expulso da universidade, junto à necessidade de revelar isso para seus “padrinhos”, irá contribuir para o crescimento dessa mágoa e de um ressentimento em Tomasz. Mesmo sendo pessoas “esclarecidas”, “progressistas” e “defensoras de causas”, que criticam “políticas autoritárias”, a família não aceita as explicações pela expulsão, além de demonstrar que Tomasz não é nem pode ser um igual. Numa das cenas, a jovem rica pela qual é apaixonado coloca uma nota no bolso de Tomasz, situação que configura uma mistura de superioridade e desprezo.
Tomasz também trabalha como moderador de conteúdo de rede social, o que o aproxima de imagens e conteúdos violentos e agressivos. Dispensado desse trabalho em meio ao conflito da universidade, encontrará uma oportunidade numa empresa de marketing digital, voltada para campanhas de desconstrução de imagem de celebridades e políticos. Ali conhecerá tecnologias de vigilância, desinformação e manipulação através das redes sociais e da inteligência artificial. Seu ressentimento encontrará nessas ferramentas um meio de reagir e demonstrar sua existência e insatisfações. Porém, como toda reação, Tomasz é violento. O candidato a prefeito citado é apoiado pela família Krasuckis e, como ela, é progressista, defensor da igualdade, da liberdade e do diálogo, e é contra tudo isso que Tomasz irá direcionar suas ações. Encontrará pessoas como ele, ressentidas e limitadas naquela sociedade, disponíveis para discursos e ações violentas. Dessa forma, irá promover a mentira e a desinformação na vida e nas redes sociais, gerando mobilização e cada vez mais extremismo. Para alcançar seus objetivos e atender ao seu “cliente”, sua experiente superior na empresa irá orientá-lo: “Jogue com as emoções”.
Conforme o diálogo transcrito acima, Tomasz não possui interesse em política. Suas ações e reações são realmente pautadas no interesse por pessoas, que desprezam e são desprezadas a todo momento num mundo com uma brutalidade pouco comum nos círculos civilizados da família Krasuckis. As promessas de realização e reconhecimento não se efetivam e os discursos dos políticos e daqueles que se intitulam “progressistas” também não produzem resultado. O ressentimento e a revolta são práticos: estão ligados ao que o próprio Tomasz vive. Longe de ser uma vítima, ou de culpar o “sistema”, seja lá o que isso for, ele vai direcionar seu ódio para aqueles que o negaram e o rejeitaram. Nesse sentido, a “rede de ódio” do feliz título em português do filme diz respeito não apenas à internet ou às redes sociais, mas também à contagiante reação entre as pessoas na mesma situação de Tomasz – que não são poucas. São pessoas impactadas pelas tensões relativas à incerteza econômica, social e política, num mundo já desigual e com intensas mudanças, que obtém nas redes sociais o combustível para o ressentimento e a raiva – sendo emocionalmente contagiadas pelos sofisticados meios para o controle da atenção e para o direcionamento comportamental.
No filme, Tomasz trabalha para um “cliente” que busca amplificar o caos para alcançar o poder e o controle através da desinformação e mobilização dos insatisfeitos, com mobilização e extremismo ao alcance de um clique. Talvez esse seja outro grande desafio do nosso tempo, onde as insatisfações das pessoas podem ser mobilizadas e dirigidas por programas e projetos pouco comprometidos com qualquer expectativa de melhora das condições de vida. A família Krasuckis, defensora de “ideais humanistas”, se surpreende com os “fascistas que tomam as ruas” e com a violência que os impactará, mas não com a desigualdade que cresceu constantemente ao seu redor. Ajudar Tomasz é, sem dúvida, uma atitude louvável, mas a dignidade das pessoas exige algo mais, que a muitos foi negado: reconhecimento, cidadania, voz. Sem isso, é bem possível que o “pior de nós mesmos” apareça.
Vivemos na atualidade circunstâncias sociais e políticas emocionalmente carregadas, pouco abertas a debates
“Rede de Ódio” apresenta o ponto de vista de um personagem que não possui o controle que espera ter sobre sua vida. Incertezas materiais e existenciais não encontram respostas concretas, numa situação onde tudo é transitório e precário (a faculdade, o trabalho, a família, entre outros elementos). Nesse contexto, as fragilidades sociais e psicológicas de Tomasz são potencializadas e sua revolta encontra eco nas redes sociais povoadas por ressentimentos e emoções, muitas vezes estimuladas e engajadas por projetos de poder. O sociólogo e economista britânico William Davies abordou tais relações entre emoções, sociedade e política em “Nervous States: How Feeling Took Over the World” (2018), no qual aponta que vivemos na atualidade circunstâncias sociais e políticas emocionalmente carregadas, pouco abertas a debates e distantes dos ideais de uso da razão na política para estabilizar e organizar a vida das pessoas. Em tais condições, o debate e a construção política racional perdem espaço para posicionamentos extremos, que encontram eco nas diversas bolhas produzidas através das tecnologias de informação e comunicação.
Na análise de Davies, as tensões, incertezas e desigualdades abrem uma via para que as emoções sejam cada vez mais estimuladas. A sensação de medo e insegurança é constante, juntamente com dificuldades de organização e estabilização da vida, num presente caótico e num futuro em aberto. As ansiedades se avolumam, juntamente com um sentimento de abandono, que impacta subjetividades, relacionamentos e instituições, configurando os “estados nervosos”. Emoções morais intensas são mobilizadas nas redes, muitas vezes através de mecanismos de direcionamentos e estímulos comportamentais próprios, sempre em nome de causas como a “justiça”, o “bem” e a “verdade”, contra “um inimigo comum” que “ameaça e precisa ser enfrentado”. Sentimentos ligados à injustiça, como a ira e o ressentimento, também ligados a circunstâncias políticas e econômicas críticas, podem contribuir para manifestações ligadas a preconceitos e extremismos. Tais mobilizações não se limitam ao cenário virtual, gerando efeitos sociais e políticos, como passeatas e protestos, ampliadas através de contagiantes ondas emocionais e afetivas. No filme, Tomasz convoca passeatas em nome de ideais nacionalistas, direcionando estímulos específicos para determinados grupos nas redes sociais, devidamente mapeados através de seus dados disponibilizados nas plataformas. Nas palavras de Davies,“muitas das forças que na atualidade transformam as democracias procedem de aspectos da condição humana que estão profundamente arraigados na nossa mente e nos nossos corpos, mais além das questões de fato: a dor física, o medo do futuro, a consciência de nossa própria mortalidade, a necessidade de ser cuidado e protegido. Tais aspectos da humanidade podem soar algo obscuros, macabros até, mas são aspectos que compartilhamos com os outros”.
Nesse sentido, o simples convite à racionalidade e à análise detida das próprias circunstâncias não produz efeitos nas circunstâncias atuais, uma vez que estamos todos imersos em circunstâncias de alta volatilidade emocional. Prova disso são as intensas polarizações e discursos extremistas da atualidade, onde é cada vez mais difícil estabelecer diálogos e construções coletivas, sem muito espaço para a reflexão e para a dúvida. Nesse contexto, onde é difícil estabelecer consensos, onde discursos racionais, civilizados e informados já não surtem o mesmo efeito que convites ao conflito e à injustiça, que “joga com as nossas emoções”, torna-se urgente a compreensão das dinâmicas emocionais envolvidas nas manifestações de insatisfação das pessoas. Segundo Davies, “se aqueles que estão comprometidos com a paz não estão preparados para este trabalho de investigação, então outros o farão alegremente em seu lugar, justamente aqueles que estão comprometidos com a guerra”. Um rápido olhar para o noticiário político parece confirmar as expectativas de Davies.
Porém, se a revolta e o ressentimento tomaram o espaço público, e se é necessário compreender o que envolve tais insatisfações, também é importante analisar quais são as expectativas de realização envolvidas em nosso modo de vida. Sabemos bem nossos objetivos? Por que não nos realizamos? O que nos revolta? Contra o quê (ou quem) nos ressentimos? No caso de Tomasz, a ausência de reconhecimento e de dignidade, juntamente com poderosos estímulos emocionais e brutais, fizeram com que suas ações se aproximassem do extremismo e da violência. Cabe compreender melhor como tais emoções adversativas tornaram-se cada vez mais presentes no mundo contemporâneo. Quem analisa essa e outras questões ligadas ao nosso tempo é o ensaísta indiano Pankaj Mishra, em “The Age of Anger: A History of the Present” (2017). Em sua análise, vivemos “tempos de raiva” devido à ausência de estabilidades e respostas num mundo onde a globalização ampliou os processos de modernização e deslocamentos em termos sociais, políticos e econômicos e onde os laços familiares, a organização política e o trabalho mudaram, gerando ansiedades e frustrações. Como nem todos tiveram ou têm acesso aos benefícios da modernização e suas promessas emancipatórias, surgem ressentimentos e reações cada vez mais violentas. Nas palavras de Mishra,“de fato, hoje vivemos em um vasto e homogêneo mercado mundial no qual os seres humanos estão programados para maximizar seus próprios interesses e aspirar às mesmas coisas, independentemente de seus diferentes acervos culturais e temperamento individual. O mundo parece mais culto, interconectado e próspero que em nenhum outro momento histórico. O bem-estar médio cresceu, mesmo que não de forma equitativa; a miséria econômica foi aliviada inclusive nas zonas mais pobres da Índia e da China. Se tem produzido uma nova revolução científica marcada pela inteligência ‘artificial’, a robótica, os drones, a cartografia do genoma humano, a manipulação genética e a clonagem, uma exploração espacial mais profunda, e os combustíveis fósseis mediante exploração. Mas a prometida civilização universal – uma civilização harmonizada por uma mescla de sufrágio universal, amplas oportunidades educacionais, crescimento econômico sustentável, iniciativa privada e progresso pessoal – não se materializou”.
Segundo o argumento de Mishra, a suposição dos democratas liberais, de que o fim dos conflitos do século 20 dariam lugar a uma era de prosperidade econômica acompanhada de harmonia e tolerância globais, estava baseada numa limitação da compreensão do que as pessoas efetivamente vivem. Tais avaliações não consideravam a situação de parte da população mundial que ficou fora do processo de globalização econômica e de avanços materiais. Um exemplo é a situação de muitos e muitas jovens que experimentam a inadequação e o desconforto em relação a um mundo em intensas mudanças, desprovidos de expectativas em relação ao que fazer da própria vida, como no caso de Tomasz. Num mundo onde tudo ou nada pode acontecer a qualquer momento, programas políticos alimentados por insatisfações podem encontrar um terreno fértil. Num modo de vida cujos principais objetivos não são possíveis para todos, muitas pessoas “ficarão para trás”. A política e as instituições contemporâneas têm dificuldade para lidar com tais tensões e os discursos populistas e extremistas encontrarão um terreno fértil nesse cenário de descontentamento: “um rancor existencial frente ao ser dos outros, causado por uma mescla intensa de inveja e sentimentos de humilhação e impotência, esse ressentimento, à medida que recua e se aprofunda, envenena a sociedade civil e mina a liberdade política, e atualmente está gestando uma mudança global ligada ao autoritarismo e formas tóxicas de chauvinismo.”
Nesse cenário, a “história do presente” citada por Mishra, o ódio e a violência podem se misturar à política, principalmente a partir da ascensão de demagogos que aplacam as frustrações com discursos reativos, porém pouco comprometidos com a estabilidade social e a democracia, contando com ferramentas tecnológicas especialmente desenvolvidas para captar emoções e promover estímulos. Nesse aspecto, a questão principal para Mishra não se trata de disputas entre razão e emoção ou racionalidade e irracionalidade, distinções iluministas questionadas pelas investigações contemporâneas sobre a estrutura psicológica dos seres humanos, mas sim de uma discussão mais ampla que envolva nossas concepções e expectativas sobre os ideais de “racionalidade”, “realização”, “autonomia” e “interesses”. As tensões sociais, políticas e econômicas da atualidade estão, assim, diretamente ligadas às promessas e esperanças baseadas em tais expectativas que não nos entregaram o combinado – ao menos para a maioria de nós. Talvez Tomasz tenha compreendido isso ao se interessar mais por “pessoas” do que pela “política” e sugerido assim um bom programa de investigação para aqueles que tentam compreender os “estados nervosos” e “tempos de ira” da nossa conturbada atualidade.
José Costa Júnior é professor de filosofia e ciências sociais do Instituto Federal de Minas Gerais - Campus Ponte Nova. É doutor em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2022/%E2%80%98Rede-de-%C3%B3dio%E2%80%99-o-que-ressentimento-e-revolta-podem-gerar
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