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É de lamentar que tenhamos seguido alheios a este princípio, que é realmente um imperativo moral, e potenciámos o “paradigma tecnológico”, com alienação da dignidade humana e da preciosidade que é o mundo e a vida que alberga.
Ela pode sobreviver, mas apenas por vontade.
E a responsabilidade torna-se objecto de uma ética.
Paul Ricoeur, 1993.
O filósofo Hans Jonas, de ascendência judia, nasceu na Alemanha em 1903 e faleceu nos Estados Unidos da América em 1993. Estes breves dados são suficientes para o leitor conjecturar que a sua vida e obra foi influenciada pela Segunda Grande Guerra, por aquilo que aconteceu antes, durante e depois dela. É assim, de facto.
Ainda na década de vinte, com estudos superiores em teologia e filosofia, fazia doutoramento na Universidade de Marburg, sob orientação de Martin Heidegger. No início dos anos trinta, vendo a rápida ascensão do nazismo e sem conseguir entender a opção do professor pelo partido, deixou a Alemanha. Esteve em vários países, participou na guerra em dois deles, elaborou conceitos e escreveu. Retomada a paz, dedicou-se à investigação e ao ensino com foco em questões emergentes da contemporaneidade, relacionadas sobretudo com a preservação da vida num mundo dominado por novas tecnologias potencialmente aniquiladoras da humanidade e onde o totalitarismo espreitava. Questões inscritas na ética, portanto.
Retomada a paz, dedicou-se à investigação e ao ensino com foco em questões emergentes da contemporaneidade, relacionadas sobretudo com a preservação da vida num mundo dominado por novas tecnologias potencialmente aniquiladoras da humanidade e onde o totalitarismo espreitava. Questões inscritas na ética, portanto.
Digamos que não foi propriamente original na escolha: filósofos como Martin Heidegger e Paul Ricoeur, apesar da incomensurável distância política que os separava, detiveram-se nelas, não destoando no modo como as encararam, aproximado do modo como Jonas as encarou.
Estavam de acordo em que, pela primeira vez na história da humanidade, o homem tinha poder real para, através da tecnologia que havia criado, destruir a vida na terra e, como é evidente, destruir-se a si mesmo. Por outras palavras, havia-se tornado um sério inimigo dos contextos natural e social e, inevitavelmente, de si próprio. A esperança, se é que alguma poderia haver, estava na ética, na possibilidade que lhe é inerente de recompor a lucidez a partir do apelo a valores que efetivamente valem e, desta maneira, frágil e contingente, evitar a tragédia sem retorno.
O que imprimiu originalidade ao trabalho de Jonas, e lhe conferiu reconhecimento, tanto no campo da filosofia como em vários outros campos, foi a profundidade, amplitude e consistência com que explorou essas questões, abrindo caminhos de reflexão académica e de alteração de mentalidades.
Na convergência dos dois caminhos, há que destacar a obra Princípio da responsabilidade: Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, publicada em 1979. Pelas ideias robustas que veicula e pela clarividência que denota, deveria prender a atenção dos educadores. Vejamos porquê.
Nela o filósofo explica o que antes mencionei: o admirável progresso tecnológico, conseguido pelo homem está longe de ser usado apenas e só em prol do que se entende por bem-comum, antes de mais, da preservação da terra e da manutenção da vida; ele pode ser usado, e é-o efetivamente, para efeitos contrários.
Há que contar, além disso, com um fenómeno paralelo, tão estranho quão preocupante: a decrescente sensibilidade do homem para a sua condição humana. Preocupados com o presente, descuramos o futuro, estando, mesmo, prontos a renunciar a ele pelo mais imediato. A verdade é que instalamos a tecnologia na sociedade sem a ponderarmos devidamente, quer em termos de sentido e função, que em termos de consequências presentes e futuras.
Preocupados com o presente, descuramos o futuro, estando, mesmo, prontos a renunciar a ele pelo mais imediato. A verdade é que instalamos a tecnologia na sociedade sem a ponderarmos devidamente, quer em termos de sentido e função, que em termos de consequências presentes e futuras.
Precisamos, portanto, na responsabilidade, mas não numa qualquer. Aquela de que Jonas fala solicita os que estão fisicamente no mundo, mas que os transcende em termos espaciais e temporais: é assumida por quem está aqui e agora, mas tem em vista as gerações vindouras. Dos que virão não podem os que se encontram vivos colher agradecimento, uma vez que estarão a deixar o mundo quando eles chegarem, ou já o deixaram. Não há, pois, uma relação recíproca entre as gerações, mas, antes, o compromisso de cada geração para com a humanidade e para com o mundo de que a humanidade precisa para existir.
Estes são alguns dos pressupostos em que Jonas assentou a sua proposta de “ética transgeracional”, uma proposta não antropocêntrica (à semelhança das propostas clássicas) porque centrada na perpetuação da vida nas suas diversas formas, uma proposta não egoísta, mas altruísta.
De modo simples e claro: a existência de uma “humanidade depois de nós”, requer uma “natureza depois de nós”, daí que a preservação da natureza faça parte do projeto humanista em que essa ética se inscreve. E, tendo-se o homem tornado um perigo não só para si e para os outros (mundo social) mas também para a biosfera, para o seu ethos (mundo natural), impõe-se valorizar o futuro a fim de o assegurar.
Como avançar, então, nesta lógica?
Apropriando-se da asserção “devemos, logo podemos”, de Immanuel Kant, Jonas concretizou-a assim: podemos agir no mundo porque estamos no mundo, segue-se que devemos agir nele. Esta é a essência do “princípio da responsabilidade”, que formulou de vários modos:
na forma positiva: “age de tal maneira que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a preservação da vida humana genuína”; na forma negativa: “age de tal maneira que os efeitos da tua ação não sejam destruidores da futura possibilidade dessa vida”; ou, numa forma mais simples: “não comprometas as condições de uma continuação indefinida da humanidade sobre a terra”; ou, ainda, numa forma mais geral: “nas tuas opções presentes, inclui a futura integridade do homem entre os objetos da tua vontade.”
Independentemente da versão que guardarmos na memória, o imperativo que está em causa reporta-se “à iniciativa pública, mais do que à conduta privada”, distinguindo-se, neste aspecto, do imperativo categórico de Kant, que “se dirigia ao indivíduo”. Solicita o coletivo para um cuidado e permanente exame de ações e omissões humanas capazes de ter consequências nefastas e, potencialmente, irreversíveis para a natureza e para a vida humana. Como seres humanos, precisamos de tomar consciência dessas ações e omissões, não a partir de critérios locais, paroquiais, mas de critérios transculturais e universais.
É de lamentar que tenhamos seguido alheios a este princípio, que é realmente um imperativo moral, e potenciámos o “paradigma tecnológico”, com alienação da dignidade humana e da preciosidade que é o mundo e a vida que alberga. É certo que os esforços de Jonas e – é justo dizê-lo – de muitos outros, têm criado uma consciência ecológica e existencial assinalável, mas o balanço não é animador. O abismo está a milímetros dos nossos pés, não podemos dar mais um passo sob pena de nos despenharmos e nada sobrar de nós.
O Secretário Geral das Nações Unidas, na voz planetária e avisada desta Organização, declarou recentemente: o mundo, tal como está, “não pode continuar”, a falta de união dos países face aos problemas globais pode levar a uma “catástrofe”, “temos de nos unir e agir em conjunto para o bem-comum”, “não temos um momento a perder”. Outra voz, com a mesma projeção, isenção e reconhecimento, tem manifestado “profunda preocupação pelo cuidado da nossa casa comum”, propondo o “urgente desafio de a proteger” porquanto ela “dá sinais bem visíveis de estar a desabar”. Refiro-me ao Papa Francisco que, na Carta Encíclica Laudato Si, de 2015, insistiu num diálogo “que nos una a todos”, “sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta”. Na exortação apostólica Laudate Deum, de 2023, escreveu: “não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esboroando e talvez aproximando dum ponto de rutura”.
São vozes realistas consonantes com a de Hans Jonas, que já não estando neste mundo, contínua ouvir-se. São vozes que não cedem nem à negligência nem à desistência, como devem ser as vozes dos educadores, nas escolas, dada a sua vinculação tácita ao dever de preparar as novas gerações para a humanidade e… de a preservar.
Referências bibliográficas:
Heidegger, M. (1954/2002). A questão da técnica. Ensaios e conferências. Editorial Vozes.
Jonas, H. (1979). The imperative of responsibility: In search of ethics for the technological age. University of Chicago Press.
Ricoeur, P. (1993). “A ética, o político, a ecologia” [Entrevista por Edith e Jean Paul Deléage]. Écologie politique, Sciences, Culture, Société, n.º 7.
*Licenciada em Psicologia e doutorada em Ciências da Educação, na especialidade de “Análise e Organização do Ensino”, pela Universidade de Coimbra. Professora na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da mesma universidade. Membro integrado do “Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX” (CEIS20), no “Grupo de Políticas e Organizações Educativas e Dinâmicas Educacionais” (GRUPOEDE). Lecciona e investiga nas áreas de “Currículo escolar”, “Ensino e Formação de Professores”, “Educação para a Cidadania”, e “Ética e Deontologia em Educação”. Tem integrado projectos de âmbito nacional e internacional, de entre os quais destaca dois que se encontram em curso e de que é coordenadora: “O currículo escolar na contemporaneidade: identificação e discussão das suas bases” e “Programa de Simulação pedagógica em educação e ensino
Fonte: https://pontosj.pt/opiniao/a-etica-da-responsabilidade-para-o-florescimento-humano-no-mundo-uma-mensagem-aos-educadores/
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