Por Mario Sergio Conti*
São palavras possíveis apenas na pena de um desgrenhado generoso e de fibra
Eis o que Vincent van Gogh achava necessário para trabalhar direito: "É preciso comer bem, estar bem instalado, trepar de vez em quando, fumar seu cachimbo e beber seu café em paz".
A respeito das relações entre trabalho artístico, comércio e existência, disse: "A arte é longa e a vida curta, e devemos ter paciência enquanto procuramos vender caro a nossa pele".
Para ele, a pintura independia da vocação, de um dom inato ou de estalos de gênio; o que contava era o empenho: "O talento é um longa paciência —e a originalidade, um esforço de vontade e observação intensa".
Sobre envelhecer e pintar, comparou-se a um artesão: "Quanto mais feio, velho, ranzinza, doente, pobre, mais desejo me vingar fazendo uma cor brilhante, bem harmonizada, resplandecente. Joalheiros também se tornam velhos e feios antes de saberem compor bem as pedras preciosas".
Não se achava genial, e sim "um cão grande e desgrenhado" que seus pais relutam em aceitar: "Ele vai entrar em casa com as patas molhadas... Vai se meter no meio de todo mundo —e late tão alto".
Mas o cão Van Gogh tem "uma alma humana, com sentimentos delicados, é capaz de sentir o que as pessoas pensam sobre ele, algo que um cachorro comum não pode fazer. E eu, admitindo que sou uma espécie de cachorro, aceito-os como eles [seus pais] são".
As observações acima, inesperadas e singelas, estão num livro de 510 páginas publicado há pouco pela editora 34. É "Cartas a Theo", uma seleta de 150 das quase 900 cartas que o pintor escreveu, a maioria endereçadas ao irmão.
Sem desdouro pela edição da L&PM de 1997, e depois ampliada, a de agora é superior. Traz cada carta na íntegra, evitando o sensacionalismo de trechos tirados do contexto. Os ensaios e notas de Jorge Coli e Felipe Martinez analisam pontos cruciais sem recorrer à erudição para experts.
"Cartas a Theo" liberta o artista da mitologia que o agrilhoa. A mitologia nos obriga a passar primeiro pela lojinha de cacarecos —pôsteres, camisetas, lenços, imãs de geladeira— para então, entupidos de imagens esquartejadas, entrarmos no museu e apreciarmos o que pintou.
Vendeu um par de telas em vida, mesmo tendo feito 800 quadros e outro tanto de desenhos. Sua obra vale hoje bilhões; só "Noite Estrelada" está avaliada em R$ 500 milhões.
Não imaginava essa valorização indecente porque seu objetivo era modesto: "Mesmo que eu me torne mais sagaz (o que evidentemente ainda não sou), acredito —acredito firmemente— que sempre serei muito pobre —estarei bem se conseguir me manter livre das dívidas".
Quando teve consciência de que sua pintura era boa, a esperança de obter remuneração justa continuou vaga: "Tenho fé na cor, mesmo no que concerne aos preços, o público pagará por ela no fim as contas".
O homem Van Gogh foi duplamente distorcido. É visto como um doido que decepou a orelha, deu-a à namorada e logo se suicidou. E é tido por naif, um ingênuo que pouco sabia da técnica e da história da pintura. Sua obra seria espontânea, produto de alucinações visuais.
"Cartas a Theo" mostra outro homem. Ele era culto, adorava Maupassant e Voltaire, Tolstói e Zola. Escrevia em holandês, francês e inglês. Conhecia Rembrandt e Delacroix de cor e salteado; e, de trás para frente, uma infinidade de obras.
Tinha um olhar aguçado. Do Lorenzo de Medici de Michelangelo, a escultura "O Pensativo", diz que "sua mão tem algo do fulgor da pata de um leão", e conclui: "Esse pensador é também o homem de ação —pode-se ver que o seu pensamento é em si mesmo uma concentração".
No temperamento, era um errante. Tentou ser professor, pastor protestante, marchand e fracassou em tudo. Suas relações amorosas foram catastróficas. Aos 27 anos, era um zero à esquerda.
Foi quando achou seu caminho, a arte. Percorreu-o com enorme sofrimento físico e mental —afinal, além de viver na miséria, sustentado por Theo, era louco. Tinha surtos que, uma vez passados, contava em cartas ao irmão. Jamais se fazia de vítima. Não se queixava, ia em frente. Para quê?
Ele responde à pergunta numa anotação de agosto de 1883. Sentia "certa obrigação e dever, porque andei nesse mundo por 30 anos —para deixar como gratidão uma certa lembrança na forma de desenho ou pintura"; uma forma "na qual se expresse um sentimento humano sincero".
Obrigação, dever, gratidão, lembrança e sentimento sincero. São palavras de uma pureza tocante. Palavras possíveis apenas na pena de um desgrenhado generoso e de fibra, Van Gogh.
* Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2024/02/van-gogh-conta-em-cartas-a-theo-que-quis-relembrar-e-agradecer.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista
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