Por Julia Queiroz
A escritora Margaret Atwood, que lança o livro 'Questões incendiárias' no Brasil em março. Foto: Jean Malek/Divulgação
Margaret Atwood reflete, nos mais de 50 textos de ‘Questões Incendiárias’, que será lançado pela Rocco em março, sobre grandes questões do século 21; ‘Estadão’ publica um dos ensaios da obra com exclusividade
Chega ao Brasil em março, pela editora Rocco, o terceiro livro de ensaios da escritora canadense Margaret Atwood, autora do clássico O Conto da Aia - que deu origem à premiada série The Handmaid’s Tale. Leia abaixo um dos textos, enviado com exclusividade ao Estadão.
Intitulado Questões incendiárias, a obra, que entra em pré-venda no dia 21 de fevereiro, compila mais de 50 ensaios de Atwood, escritos entre 2004 e 2021 com reflexões sobre alguns dos principais acontecimentos e mudanças do século 21.
Da crise financeira de 2008, ao movimento #MeToo e à pandemia de covid-19, ela constrói, além de tudo, uma espécie de autobiografia na qual fala sobre trabalhos de outros escritores, conta bastidores das suas próprias obras e narra momentos difíceis de sua vida, como a morte do marido, o romancista Graeme Gibson.
Atualmente com 84 anos, Atwood é autora de diversos livros de distopia e ficção científica que fazem alertas quase premonitórios sobre a sociedade. Em Oryx e Crake, de 2003, por exemplo, ela narra a vida de um homem sobrevivente de uma pandemia e discute crises ambientais.
Essas questões permanecem relevantes no trabalho da escritora e estão presentes em Questões incendiárias. No ensaio Como mudar o mundo?, escrito em 2013, ela lembra de sua participação em uma conferência e reflete sobre o tema. Afinal, o que isso significa? E é realmente possível? Confira:
“Quando vi o título desta conferência, “Como mudar o mundo?”, surgiram em mim três perguntas. Primeira, o que se entende por “mudar”? Segunda, o que se entende por “como”? E terceira, o que se entende por “mundo”?
Depois, quando compareci à conferência como integrante do segundo painel de discussões daquele dia, descobri que os outros conferencistas tinham respostas variadas a estas três perguntas. A maioria definia “mudar” no sentido de mudança social. Também supunham que qualquer mudança que eles mesmos postulassem seria para melhor. Como o primeiro painel de discussão daquele dia havia sido dedicado a tudo que havia de errado com o estado atual das coisas, a predisposição para a mudança positiva estava implícita. De todo modo, muito poucos especialistas ou políticos confessariam uma intenção de mudar o mundo para pior. Mesmo as grandes catástrofes do século XX — Hitler e os campos de extermínio, Stalin e o gulag, Mao e a fome terrível — chegaram em cena portando faixas de futuros utópicos em que tudo mudaria para o infinitamente melhor depois que alguns obstáculos fossem superados e todo mundo de que eles não gostassem fosse eliminado. É sempre o mesmo problema quando são propostas mudanças utópicas radicais: o que fazer com aqueles que não concordam com você? Este é o lado sombrio de qualquer plano para uma mudança positiva e tem deixado algumas pessoas — eu mesma, por exemplo — bastante nervosas com o uso gratuito da palavra progresso. Progresso para quem, ou para quê? Será verdade — como diz tia Lydia em meu romance O conto da aia — que melhor para alguns significa sempre pior para outros? Ou na verdade existem algumas formas de mudança com intenções positivas que melhoram as coisas para todos? Precisamos acreditar que sim.
Na conferência, o campo de debates concentrou-se principalmente na perspectiva social, então os “comos” sugeridos — as inúmeras ferramentas que possibilitariam as mudanças positivas propostas — baseavam-se em alterações das instituições humanas. Quanto ao “mundo”, esta palavra passou a significar principalmente o mundo urbano, moderno, ocidental e humano em que vive a maioria dos conferencistas e os que assistiram aos debates.
Grande parte das mesas-redondas se concentrou nos méritos e deméritos relativos de sistemas políticos — socialismos, capitalismos, oligarquias. Como a sociedade deve ser organizada? Como deve ser dirigida? Como a riqueza deve ser criada e como deve ser distribuída? Surgiram questões relacionadas: Será que “nossos” sistemas de valores estão falindo? Que sistemas de crença ainda são possíveis? O que pensar daqueles termos outrora excelentes como liberdade, o indivíduo e democracia em uma nova era controlada e influenciada por megacorporações por um lado, e por agrupamentos de pessoas conectadas pela internet, mas relativamente anônimas, por outro? Será que “nações” é um conceito que ainda pode ser levado a sério? O que significa “moralidade” no contexto atual? Agora que a total vigilância parece estar a nosso alcance, por drones, minicâmeras e satélites, será isto desejável? Em outras palavras, a capacidade de prevenir todos os crimes detectando-os no instante de sua gênese vai se revelar uma arma sinistra que pode levar a um Grande Irmão de proporções gigantescas e sufocar qualquer dissidência?
Naturalmente estas são questões que valem a pena ser discutidas. Mas tem um elefante muito grande na sala que ninguém quer realmente mencionar. Os problemas mais urgentes que enfrentamos hoje têm a ver simplesmente com as necessidades da vida, da vida biológica. Com a oferta de elementos essenciais para nossa existência física, nossa existência neste planeta. Se não forem abordados, muito em breve e de forma concreta e prática, todas as discussões e debates e toda a dialética serão irrelevantes, seja porque não restarão seres humanos para discutir ou porque aqueles que sobreviverem estarão muito ocupados com o trabalho básico de alimentação e abrigo, depois que a civilização que conhecemos hoje tiver entrado em colapso.
Antigamente, aqueles que verbalizavam tais preocupações eram considerados fanáticos, loucos, professores aloprados e rótulos semelhantes, e esforços imensos foram feitos por aqueles que lucravam com as práticas correntes para desacreditar suas mensagens. Quando Rachel Carson publicou Primavera silenciosa, em 1962, as grandes empresas químicas produtoras de pesticidas dispenderam muito tempo, energia e dinheiro tentando destruir sua reputação profissional e pessoal. No caso do livro Os limites do crescimento, um estudo elaborado pelo MIT e produzido pelo Clube de Roma, em 1972, que previu um colapso em algum momento do século XXI se continuássemos sem controle em nosso presente caminho, os ataques foram mais graduais; mas seu efeito cumulativo foi o de erodir a credibilidade do relatório nos anos 1990.
Agora, porém, Carson e o Clube de Roma estão sendo vingados pelos eventos reais, embora a oposição a suas ideias continue feroz. Como disse Ugo Bardi em um artigo de 2008 para a Oil Drum, “Cassandra’s Curse”:
Os profetas do Juízo Final, hoje em dia, não são apedrejados até a morte, pelo menos não habitualmente. A demolição de ideias que não nos agradam é feita de uma forma mais sutil. O sucesso da campanha de difamação contra as ideias de Os limites do crescimento mostra o poder da propaganda e das lendas urbanas na formação da percepção pública do mundo, explorando nossa tendência inata a rejeitar as más notícias. Devido a estas tendências, o mundo preferiu ignorar o alerta de colapso iminente que veio do estudo. Ao fazer isto, perdemos mais de trinta anos. Agora, existem sinais de que talvez estejamos começando a ouvir o alerta, mas pode ser tarde demais e ainda estamos fazendo muito pouco.
Trecho de 'Cassandra’s Curse', de Ugo Bardi (2008)
Os últimos alertas não vêm de jornalistas científicos solitários como Rachel Carson nem de grupos de intelectuais como o Clube de Roma. Vêm do Pentágono — que, vale notar, não é um conjunto de abraçadores de árvores —, que alertou em 2004, em um relatório secreto ao governo Bush, que a mudança climática representava uma ameaça pior que o terrorismo e que poderia mergulhar o mundo em um estado de anarquia. Posição semelhante foi adotada pelo Banco Mundial — que, mais uma vez, não é muito conhecido pelo extremismo ambientalista — em seu relatório de 2012 intitulado Turn Down the Heat: Why a 4°C Warmer World Must Be Avoided. Este relatório, preparado meticulosamente pelo Instituto Potsdam de Pesquisas sobre o Impacto Climático, conclui:
Com as pressões crescentes à medida que o aquecimento progride para os 4°C aliado às tensões sociais, econômicas e demográficas sem relação com o clima, o risco de se cruzar o limitar crítico do sistema social aumentará. Em tal limiar, as instituições existentes que teriam apoiado as medidas de adaptação provavelmente se tornarão menos eficazes ou até entrarão em colapso.
Como exemplo há o risco de que a elevação no nível dos mares em países insulares supere as capacidades de migração controlada e adaptativa, resultando na necessidade do abandono completo de uma ilha ou região. Da mesma forma, há os impactos na saúde humana, como os produzidos por ondas de calor, desnutrição e a qualidade decrescente de água potável devido à invasão de água marinha, que têm o potencial de sobrecarregar os sistemas de saúde até que a adaptação não seja mais possível e o deslocamento seja forçado.
Assim, dado que permanece a incerteza sobre a real natureza e a escala dos impactos, também não há certeza de que a adaptação a um mundo com 4°C a mais seja possível. Um mundo 4°C mais quente provavelmente será um mundo em que comunidades, cidades e países experimentarão graves perturbações, danos e deslocamentos, com muitos destes riscos distribuídos de forma desigual. É bem provável que os pobres sofram mais e que a comunidade global possa ficar mais fraturada e mais desigual do que hoje. O aquecimento de 4°C projetado simplesmente não pode ocorrer — o calor precisa ser reduzido. Só ações antecipadas, cooperativas e internacionais podem tornar isto realidade.
Trecho do relatório 'Turn Down the Heat: Why a 4°C Warmer World Must Be Avoided', do Banco Mundial (2012)
Os dois relatórios se concentram nos efeitos do aquecimento global sobre os seres humanos, com o foco em resultados tais como elevação do nível dos mares, climas extremos e desertificação. Contudo, existem outros dois fatores que não são destacados nestes relatórios, mas que podem se mostrar decisivos para nosso destino como espécie nesta Terra.
O primeiro é a emissão de metano na atmosfera procedente de várias de fontes, como a decomposição da vegetação quando se descongela o permafrost e a liberação de hidratos de metano descongelados. Como aquecedor global, o metano é 25 vezes mais potente do que o dióxido de carbono. Só no Alasca, segundo afirma Andrew Wong na edição de janeiro do Alternatives Journal, “o recuo das geleiras e o derretimento do permafrost estão liberando de 50 a 70% mais metano do que se acreditava anteriormente”.
O segundo fator é o papel fundamental que têm as algas na criação de oxigênio. Antes do reino das cianobactérias, aproximadamente 1,9 bilhão de anos atrás, havia tão pouco oxigênio na atmosfera terrestre que o ferro não enferrujava. Hoje, as vaiadas algas produzem de 50 a 80% do oxigênio que respiramos. Se matarmos os oceanos, nos mataremos. Simplesmente, seremos incapazes de respirar.
À luz destes problemas — os problemas relacionados com nosso contexto físico que se altera rapidamente, um contexto que é a base para qualquer organização social, uma vez que é a base para a vida humana — prefiro definir “mudar”, “como” e “o mundo” de um jeito bem elementar. “O mundo” que vejo é o mundo em sua totalidade: o espaço físico de gases, líquidos e sólidos em que vivemos, e que portanto encerra todos os nossos espaços sociais. “Mudar” vejo como mudança física: na água, no ar, na terra e no clima. O “como” seria uma combinação de intervenção física positiva e ação física negativa que afetarão nosso espaço físico. Para preservá-lo e assim nos mantermos vivos, devemos fazer algumas coisas novas: devemos fazer as coisas antigas de um jeito diferente; e precisamos parar de fazer algumas coisas que fazemos atualmente.
Quando perguntamos “Como Mudar o Mundo?” dentro desses parâmetros, o tema parece ser mais do que um pouco absurdo. Diante disto, a pergunta parece não ter resposta, porque mudar o mundo em si parece uma tarefa impossível. Certamente nós — como indivíduos mínimos e insignificantes — não superestimamos nossa própria capacidade a esse ponto. Não achamos que nós, pessoalmente, temos o poder de mudar o mundo, e, mesmo que tivéssemos este poder, em nossos momentos mais racionais sabemos que nos falta a sabedoria. Se cada um de nós receber uma varinha mágica que realizará qualquer ordem nossa, escolheríamos bem essas ordens? Ou, como na maioria dos contos populares que envolvem bruxas, escolheríamos desastrosamente?
Por outro lado, o mundo mudou muitas vezes sem a nossa intervenção. Houve períodos de calor e períodos de frio; continentes se chocaram e se separaram, tudo sem que nós levantássemos um dedo. (Nem seria possível, não estávamos lá.) Mas o mundo também foi mudado recentemente, por seres humanos. Os agentes da mudança no mundo antes de nosso advento foram muitos, sendo o principal propulsor a atividade solar; mas, depois que a vida se estabeleceu, ela começou suas próprias reorganizações. Não somos a única forma de vida a ter afetado as condições predominantes no planeta Terra. As algas começaram o processo mais de 1,9 bilhão de anos atrás, quando acrescentaram oxigênio ao ar, e incontáveis bioformas — de musgos a cogumelos e nematoides, formigas, castores, abelhas e elefantes — modificaram sua paisagem segundo sua conveniência. Depois da chegada dos humanos, eles também começaram a construir represas, túneis e edificações. Mas, com a ajuda da energia barata proporcionada por combustíveis fósseis de carbono, o Homosapiens agora está alterando e perturbando a Terra em uma escala sem precedentes, e com consequências imprevisíveis.
Então, sim, nós podemos mudar o mundo. Já o mudamos, ainda o mudamos e, a não ser que agora possamos fazer uma mudança de volta, estamos diante de desafios sem precedentes, desde que começamos a registrar nossa história.
Ao contrário da maioria dos outros oradores nesta conferência, não vim do meio acadêmico nem do empresarial. Sou uma mera escriba e, como tal, uma sintetizadora, uma gralha que afana pedras preciosas dos outros e uma intrujona em questões sobre as quais não sei muita coisa. Sou principalmente uma escritora de ficção, e às vezes de “ficção científica”, ou “ficção especulativa”, enfim, ficções ambientadas no futuro, neste planeta, e dentro do reino das possibilidades. Minhas ficções deste tipo extrapolam a partir de dados e tendências presentes, projetam-nos no tempo e postulam suas consequências. Se estas ficções são chamadas a justificar sua existência, podem indicar sua eficácia como ferramentas estratégicas menores. É para lá que a estrada parece seguir, elas podem dizer. Este é seu destino possível. Você realmente quer ir até lá? Se não, troque de estrada.
Alguém que escreve ficções desse tipo está constantemente refletindo sobre mudanças. Mudanças para melhor, mudanças para pior; mudanças antes improváveis que ainda assim ocorreram, como o advento da internet; mudanças plausíveis que no passado pareciam prestes a acontecer, mas nunca se materializaram, como a viagem em minijatos personalizados; mudanças catastróficas possíveis que estão diante de nós, mas ainda podem ser evitadas, como a guerra nuclear mundial; e outras mudanças catastróficas que nos disseram que são praticamente inevitáveis, como a mudança climática.
É claro que os escritores de ficção se especializam em inventar histórias, mas para aqueles que discutem um tema da vida real, a exemplo de “Como Mudar o Mundo?” — um tema que se situa necessariamente no futuro, que ainda não aconteceu —, talvez não seja irrelevante perguntar primeiro: em que tipo de história nós achamos que estamos, sendo “nós” a espécie humana? Porque a resposta, em parte, determinará o resultado. Se for uma comédia — no significado clássico da palavra, que tem relação mais com a estrutura, e não com piadas — “nós” enfrentaremos uma série de obstáculos, culminando em um momento de desgraça em que tudo parece perdido; mas por uma combinação de atitude, determinação, astúcia, amor e talvez um deus ex machina ou um absurdo golpe de sorte, superaremos esses obstáculos e sairemos deles triunfantes, e daremos um banquete maravilhoso no fim, a que todos os personagens, ou a maioria deles, podem se juntar. Mas se for uma tragédia, estaremos tão inflados com o senso de nossa própria sabedoria e importância que estaremos cegos a nossos próprios defeitos, deixando passar o óbvio. Cairemos então de nossa altitude elevada em direção a um fim ignominioso, após o qual um ser, ou seres sem relação conosco herdarão o reino, mundo ou planeta que antes pensávamos ser nosso, e possivelmente viverão melhor nele, ou com ele.
Se nossa história for um melodrama, experimentaremos uma mistura das duas coisas: altos e baixos como em uma montanha-russa; o que talvez se pareça mais com a vida real.
Qual destas três estruturas descreve melhor a história que pensamos habitar? A julgar pelos jornais, a tragédia e o melodrama são os preferidos, com algumas almas resistentes apostando na comédia. Os defensores do final feliz invariavelmente propõem a salvação pela engenhosidade (ou tecnologia), que eles veem como nossa única saída do buraco em que nos metemos por culpa da engenhosidade (ou tecnologia). Quase ninguém mais está depositando todas as esperanças no deus ex machina ou em uma solução que venha de pura sorte. Mas alguns ainda mantêm a esperança em extraterrestres benevolentes.
Depois de decidirmos — ou, mais precisamente, tentarmos adivinhar — em que história estamos, podemos delimitá-la ainda mais.
Há uma tradição venerável de histórias sobre mudanças em nosso mundo que ou o transformam em outra coisa muito melhor do que é hoje — como a Nova Jerusalém, cortesia do livro do Apocalipse, com sua cidade viva, riachos de água cristalina e excelente música — ou em algo muito pior, como a destruição do universo, acompanhada por quatro cavaleiros, chuvas de sangue, incineração completa, guerra total e assim por diante; também cortesia do livro do Apocalipse.
O primeiro tipo de história costuma ser chamado de “utopia”, em que se contrasta o estado atual deplorável das coisas com um cenário hipotético em que os defeitos do presente são eliminados por meio de esquemas variados e engenhocas que o escritor põe em cena. A trajetória moral desse tipo de história é ascendente — isto é, a humanidade ascendendo ao Paraíso que antigamente se pensava existir acima da camada de Quintessência que cerca o globo, acima das outras quatro essências — terra, água, ar e fogo. Em uma utopia, temos a possibilidade de encontrar as coisas de que pensamos gostar e apreciar: liberdade pessoal, comida deliciosa e saudável, ambientes naturais lindos, vida animal amistosa, gente bonita que também é gentil, vida longa, sexo agradável e sem riscos, roupas atraentes, uma ausência de doenças e fome, uma estranha falta de mentirosos, trapaceiros, ladrões e assassinos, e nem sequer uma guerra à vista.
O segundo tipo de história se chama “distopia”. Nas distopias, as coisas ficam muito piores do que achamos que estão. A trajetória moral das distopias é descendente, e nesses mundos encontramos todas as coisas que pensamos detestar, inclusive totalitarismos, tortura, inanição, comidas repugnantes, armas de destruição em massa nas mãos daqueles que não gostam de nós, práticas sexuais horríveis e em geral por coação, cheiros ruins, esquemas decorativos inferiores, a destruição da natureza, sons dissonantes e qualquer outra coisa que julgamos repulsiva.
Às vezes, quando nós, escritores de ficção, fazemos declarações sobre o mundo que a maioria das pessoas concorda ser o mundo real, somos acusados de escrever “ficção científica”. Mas talvez a ficção científica agora esteja nos escrevendo. Dito de outra forma: teríamos nós inventado as tecnologias — e portanto as mudanças no mundo que elas causam — porque as imaginamos primeiro? A lista de desejos e medos humanos é muito antiga, e muito constante. Sendo assim, já desejávamos voar como os pássaros há muito tempo, e agora voamos; mas não exatamente como os pássaros, nem gostamos de todas as consequências de nossos voos, que agora incluem bombas e drones.
Porque cada uma de nossas tecnologias é uma espada de dois gumes. Um gume abre o caminho por onde queremos seguir, o outro corta nossos dedos. O mundo que criamos parece mágico para as pessoas de 5 mil anos atrás; entretanto, somos menos feiticeiros que aprendizes de feiticeiros. Podemos libertar os gênios de suas lâmpadas, mas tentar espremê-los de volta parece, no momento, além de nossa capacidade. Criamos o rolo compressor; vivemos dentro dele; se ele parar, a consequência será o mais horrível caos e anarquia. Imagine só o que aconteceria se todas as luzes se apagassem e os trens e carros parassem de rodar. Nas cidades — onde mora a maioria de nós — a comida se esgotaria em alguns dias, e depois? Estamos dentro do mecanismo incrível que nós mesmos construímos e não sabemos como sair dele; se não fizermos algumas melhorias radicais nele, ele acabará por se autodigerir, nos levará com ele.
Quais podem ser os remédios? Que mudanças positivas podemos fazer? Aqui estão algumas possibilidades que frequentemente ouço proporem.
Em primeiro lugar, ciência e tecnologia. Certamente, dizem alguns, a salvação virá da inteligência humana. Somos inteligentes o bastante para prever nossa possível extinção e analisar nosso próprio papel nela. Não seremos também inteligentes o bastante para inventar engenhocas que mitigarão ou até reverterão as tendências calamitosas que estivemos rastreando? É possível. E muitos estão ocupados trabalhando exatamente nisto. Coletores de energia solar mais eficientes, alguns em formatos tubulares; baterias que permitam que a energia solar seja eficaz mesmo à noite; turbinas eólicas melhores; dispositivos que flutuam na água como nenúfares, gerando energia pelo movimento das ondas; tecnologias que absorvem o CO2 da atmosfera; planos para lançar partículas refletoras de energia no ar, produzindo um efeito de resfriamento; fazendas de algas; tecnologias baratas de dessalinização e purificação da água; e muito mais. Será que serão aprimoradas e mobilizadas em quantidade suficiente, e a tempo?
E quanto ao fato de que, simplesmente para construir e transportá-las, ainda mais energia — de petróleo, gás ou carvão — será necessário consumir? E o imenso lobby dos combustíveis fósseis? Por que este setor acolheria o advento de invenções que podem interferir em seu próprio poder e influência, e ainda por cima em sua margem de lucro?
Assim, quem vai financiar todas essas invenções novas? Só existem duas possibilidades: empresas privadas ou governos. Mas estes últimos estão a serviço das primeiras. Como afirmam os próprios cientistas e empresários, agora a ciência verdadeiramente desinteressada é impossível, e a primeira pergunta que os possíveis financiadores fazem sobre qualquer nova invenção não é se ela salvará o planeta, mas se gerará muito dinheiro.
Implantar padrões de construção mais verdes, reestruturar prédios que vazam energia, reduzir a velocidade dos carros nas rodovias e retornar ao trem como meio de transporte: todas são medidas de curto prazo para economizar energia que podem proporcionar pequenas melhorias.
Mas mexer no sistema existente enfrenta um problema muito grande: a bomba-relógio demográfica. Outro elefante na sala que ninguém quer abordar é a crescente população humana e o desejo compreensível de cada ser humano no planeta de melhorar sua parcela de vida. O planeta não contém recursos suficientes para todos viverem o estilo de vida do norte-americano médio, como é constituído atualmente. E se os mais ricos reduzirem sua taxa de consumo para permitir que os mais pobres elevem as deles, e depois se todo mundo reduzir a média pela metade? Está tudo muito bem com uma população estável; mas se a população duplica, a quantidade total de consumo e a quantidade total de energia despendida continuam as mesmas.
Fale em controle populacional, porém, e uma indignação geral será vociferada. Líderes religiosos de todas as denominações o acusarão de pecados, outros de racista ou de que você deseja perpetrar o genocídio. Deve nascer o máximo de gente possível, ao que parece. O que acontecerá depois — guerras por escassez de recursos, fome, doenças e todos os outros resultados da superpopulação e da desnutrição — parece não preocupar os meganatalistas. Quem deve ter todos esses bebês? Dá para imaginar.
A educação das mulheres tem sido vista por muitos — inclusive pelo Fórum Econômico Mundial de Davos — como fundamental para um padrão de vida melhor. Mulheres instruídas têm menos filhos e investem mais naqueles que já têm, e contribuem mais para a sociedade. Entretanto, a oposição à instrução de meninas e mulheres é mais forte nos lugares que mais se beneficiariam dela. Alguns, pelo visto, preferem matar suas mulheres a permitir que elas sejam de alguma ajuda para sua própria sociedade.
Às soluções tecnológicas e educacionais podemos acrescentar uma terceira: as soluções políticas. A nível internacional, as tentativas de chegar a algum acordo que regule emissões de carbono foram até agora um fracasso deprimente. Ninguém quer ser o primeiro. Ninguém quer sacrificar o “crescimento econômico” e se arriscar a provocar a ira do povo. A maioria das pessoas parece disposta a ignorar as consequências da inação enquanto não veem uma ameaça imediata a elas. “Não aqui, não agora, não comigo” é o mantra predominante.
A nível nacional, um pouco mais tem sido possível: alguns governos estão tentando implementar uma política mais verde. Nos níveis locais, muitos projetos de limpeza e restauração ambientais têm sido realizados, com certo sucesso. Mas os ganhos em um local podem tranquilamente ser derrotados por perdas em outro. Para aqueles que estão fazendo o trabalho, a tentativa de preservar mesmo que um pouco da riqueza biológica de que depende nossa sobrevivência parece a pedra de Sísifo: assim que é rolada montanha acima, a pedra rola para baixo de novo.
Talvez nosso maior fracasso seja algo próprio da modernidade: nosso afastamento do universo, nosso fracasso em compreender que tudo está interligado a todo o resto. Fazemos parte da Natureza, não somos separados dela. Ainda assim, verdadeiras fortunas continuam a ser dirigidas para artifícios fantasiosos como curas para o câncer, como se grande parte da doença não fosse causada pelos compostos e subprodutos industriais que despejam em nossos corpos; ou para buscas pela imortalidade e esquemas para carregar nosso cérebro em computadores e lançá-lo no espaço. Enquanto isso, um fiapo mínimo de nossa riqueza — menos de 3% de todas as doações filantrópicas — é canalizado para os esforços cada vez mais desesperados de preservar uma biosfera funcional.
Por “funcional”, quero dizer no sentido de que nós possamos continuar a existir. Será que a Natureza — numa visão maisampla — precisa de nós? Não. Tornaremos o planeta impróprio para nós antes de podermos torná-lo impróprio para a vida como um todo. Apesar de nossos piores esforços, alguns insetos, diatomáceas, micróbios anaeróbicos ou polvos de águas profundas provavelmente esperam por nosso sumiço. Precisamos da Natureza? Sim, a não ser que possamos pensar em um novo modo de respirar. A química e a física não negociam, mas equilibram sua contabilidade. A energia gerada pelo aumento do calor deve ser descarregada na forma de ventos mais violentos e ondas mais altas; o aumento na evaporação descerá na forma de chuvas torrenciais e nevascas destrutivas. A nova, menos acolhedora e mais instável “Teerra”, de que fala Bill McKibben em seu livro Eaarth, de 2010, já está aqui. Podemos nos adaptar o melhor que conseguirmos; podemos tentar reduzir o passo, estancar ou pelo menos deter o processo implacável que parece que desencadeamos, ou podemos tentar lidar com o quão desagradável será se nossa sociedade atual estiver para virar farelo.
Conversei recentemente com um indígena canadense que vende peixes brancos de água doce em um mercado local de produtores. Mencionei o mexilhão-zebra, um invasor largado na água de porões de cargueiros e agora uma presença grande e destrutiva nos Grandes Lagos, entupindo canos, tomando praias e filtrando grande parte do alimento antes disponível a espécies nativas, inclusive alevinos. O que ele achava que devia ser feito em relação a este problema?, perguntei ao pescador. Certamente ele estava preocupado: aqueles mexilhões podem afetar seu meio de sustento. Mas ele se limitou a sorrir. “A natureza vai cuidar disso”, disse ele.
Entendi que ele quis dizer não que a Natureza vai eliminar o mexilhão-zebra, mas que algum equilíbrio novo ou novo status quo por fim vai surgir. Se for assim, ele tem razão, porque é o que sempre acontece com a Natureza. O resultado pode não ser aquele que desejamos, mas a Natureza não se importa com nossos desejos humanos. A física e a química não dão segundas chances.
Mas nos importamos com nossos desejos humanos. E ansiamos por uma segunda chance: nossas histórias religiosas e até os contos populares e filmes estão repletos delas. Gostamos de pensar que, se desejarmos com muita vontade alguma coisa, podemos realizá-la.
Talvez esteja na hora de começarmos a desejar com muita vontade nossa sobrevivência futura. Se efetivamente quisermos, é certo que podemos usar nossa elogiadíssima inteligência para torná-la realidade.”
Questões incendiárias
Autora: Margaret Atwood
Tradução: Maira Parula
Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/margaret-atwood-reflete-sobre-o-seculo-21-em-questoes-incendiarias-leia-ensaio-do-livro-inedito/
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