Por Jaime Pinksy*
Nossa escola… O apoio financeiro que vários governos têm dado “para que todos os alunos façam faculdade” é um erro evidente. Nem todos os alunos devem “fazer faculdade”, pelo menos por dois motivos: o primeiro é que o mercado não tem como absorver os infelizes que, graças a empréstimos governamentais, concluem uma unidroga ou uma unigrana da vida…
Tive apenas dois professores importantes, antes de começar os estudos superiores, um de Português, outro de Filosofia. Não que não tenha tido alguns outros bem razoáveis. Mas, para mim, estes foram incomparáveis. Muito diferentes entre si, eles, cada um à sua maneira, me seduziam. Eu ansiava por suas aulas e bebia suas palavras. Mas também ansiava confrontá-los. E, agora posso confessar, me sentia estimulado a estudar, pois assim poderia questioná-los. Cada aula trazia coisas novas e eu sentia que avançava cada vez mais. Não vejo motivos para esconder seus nomes. O professor de Português, João Tortello, tomou para si a tarefa de me fazer gostar de Machado de Assis. Não se conformava ao constatar que, leitor compulsivo, eu tinha familiaridade com as obras dos contistas franceses e dos romancistas russos, mas não me sentia envolvido quando lia aquele que era considerado o mais importante autor brasileiro. Lembro-me de Tortello interrompendo a verificação de presença (a “chamada”) ao chegar no meu nome e perguntar, maliciosamente, se eu já gostava ou ainda não gostava de Machado de Assis, como se isso fosse apenas uma questão de tempo, de maturidade…
Com o segundo, o professor de Filosofia Ruy Nunes, os embates eram mais explícitos. Ele queria deixar claro que, com Santo Tomás de Aquino, que considerava continuador de Aristóteles, a Filosofia chegara ao seu ponto mais alto e que conhecê-lo era condição para entender o mundo, seja aquele concebido por cada um de nós, seja o real. Erudito, muito articulado, Ruy encontrou em mim um aluno disposto a ouvi-lo atentamente, disposto a ler tudo que indicava, inclusive trechos em latim do filósofo medieval. Seu objetivo, claramente, era o de converter aquele garoto, que se apresentava como ateu praticante, à sua forma de ver o mundo, inclusive à sua religião, se conseguisse. Por outro lado, lá estava eu aceitando estudar os textos que ele recomendava, mas pesquisando todos os que criticavam os tomistas, todos os que me davam um viés materialista. Ruy Nunes considerava um desafio pessoal dobrar o garoto petulante, que ousava enfrentá-lo intelectualmente. Nunca me deu uma nota dez, é verdade (como poderia fazê-lo, se eu ousava discordar?), mas eu percebia que ele entrava na sala para dar aulas pra mim. Tinha a sensação de que ele nunca demonstrou interesse pelos vinte colegas de classe que, de resto, também não tinham interesse nele: decoravam algumas definições apenas para passar de ano. Eu me sentia poderoso por ter um contendor do quilate desse mestre. De resto, com ele aprendi a respeitar opiniões e visões de mundo diferentes da minha, desde que apresentadas de forma inteligente e respeitosa. Junto com Tortello, que me ensinou a ler ficção, foi o professor mais importante que tive, já que me ensinou a organizar o conhecimento. Ambos trabalharam no “Estadão”, de Sorocaba, colégio público que, em seu período áureo, foi decisivo na formação de gerações de estudantes. Mais tarde esses jovens se tornaram adultos produtivos, gente que desempenhou papel importante na educação, na política, na economia, nas artes e até no esporte brasileiro.
O tempo passou, muita coisa mudou. O sistema educacional enfrenta, nos dias de hoje, novos desafios: embora o acesso à rede escolar tenha se tornado praticamente universal, seu significado e sua importância nas famílias e na sociedade têm diminuído. O apoio financeiro que vários governos têm dado “para que todos os alunos façam faculdade” é um erro evidente. Nem todos os alunos devem “fazer faculdade”, pelo menos por dois motivos: o primeiro é que o mercado não tem como absorver os infelizes que, graças a empréstimos governamentais, concluem uma unidroga ou uma unigrana da vida. O segundo é que pode estar havendo, na região em que o garoto vive, uma enorme carência de bons técnicos em áreas específicas, não de mais um bacharel em Direito (já temos mais de um milhão no Brasil). Mas isso implicaria em aproximar as universidades federais, que têm como pesquisar, mas não aplicam seu conhecimento em milhares de escolas, que ensinam, mas são desatualizadas e não têm como pesquisar. A integração entre o saber produzido e não utilizado das universidades de boa qualidade com as escolas, que precisam conhecer mais para ensinar melhor, é tão óbvia quanto necessária.
A educação, sabemos todos, tem sido um dos caminhos mais usados para o crescimento econômico e o progresso social de numerosos países. Ainda “chegaremos lá”, algum dia?
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*JAIME PINSKY: Historiador, doutor e livre docente da USP, professor titular da Unicamp, autor e organizador de 30 livros, inclusive História da cidadania (Contexto) PUBLICADO ORIGINALMENTE NO SITE DO AUTOR, www.jaimepinsky.com.br - FEVEREIRO - 2023
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