Por Anselmo Borges*
Aparentemente,
não há nada que o ser humano tanto preze como a liberdade. Mas, tendo
de optar entre a segurança - intelectual, espiritual, social, política,
religiosa... - e a liberdade, não se sabe quantos ficariam do lado da
liberdade e não da segurança.
Dostoiévski disse-o de modo ácido e também sublime num texto em que também se critica a Igreja de Roma. Fá-lo em Os Irmãos Karamázov, no poema de Ivan com o nome "O Grande Inquisidor".
A
história passa-se em Espanha, em Sevilha, nos tempos terríveis da
Inquisição, precisamente no dia a seguir a um "magnificente auto-de-fé"
em que foram queimados de uma assentada, na presença do rei, da corte,
dos cardeais e das damas mais encantadoras da corte e da numerosa
população de Sevilha, quase uma centena de hereges. Cristo "apareceu,
devagarinho, sem querer dar nas vistas e... coisa estranha, toda a gente
O reconhece." Mas o cardeal inquisidor aponta o dedo e manda que os
guardas O prendam. E é num calabouço do Santo Ofício que lhe diz que no
dia seguinte O queima na fogueira como ao pior dos hereges. E a razão é
que a liberdade de fé tinha sido para Cristo a coisa mais preciosa. Não
foi Ele que disse tantas vezes: "Quero tornar-vos livres?"
Cristo,
afinal, não percebeu que "o Homem não tem preocupação mais torturante
do que encontrar alguém em quem possa delegar o mais depressa possível a
dádiva da sua liberdade." "Em vez de Te apoderares da liberdade das
pessoas, acrescentaste ainda mais à sua liberdade!", diz-lhe o
inquisidor. "Esqueceste-Te de que a tranquilidade e até a morte são mais
queridas para o Homem do que a escolha livre do bem e do mal? Não há
nada mais sedutor para o Homem do que a liberdade da sua consciência,
mas também não há nada mais torturante." Assim, ao longo de quinze
séculos, os hierarcas eclesiásticos corrigiram a façanha de Cristo,
baseando-a em milagre, mistério e autoridade. Agora, todos
sabem em que é que hão-de acreditar e o que é que hão-de fazer, sem
terem de perguntar porquê nem de escolher. "E as pessoas ficaram
contentes por serem de novo guiadas como um rebanho e por ter sido
tirada dos seus corações a dádiva terrível que tanto sofrimento lhes
causava."
Como
única resposta o prisioneiro beijou-o, e o velho cardeal vai até à
porta, abre-a e diz: "Vai-te embora e não voltes mais... não voltes...
nunca, nunca!"
O
ser humano angustia-se com a liberdade. Porque ser livre quer dizer ser
senhor de si e dos seus actos e ter de escolher e ter de responder por
si e pelo mundo e pelos outros. Ter de escolher é para o ser humano, que
quer tudo e todos os caminhos, ter de escolher algo e um caminho só de
cada vez e ter de renunciar a tantas outras possibilidades, sem poder
ficar com tudo, na consciência disso. Ser livre quer dizer entrar na
urgência de um projecto e poder falhar e, num tempo irreversível, que
inexoravelmente caminha para a morte, nunca mais ter tempo para
remediar, para refazer, para fazer outra coisa e um ser si mesmo outro: é
tudo sempre pela primeira e última vez, sem ensaios...
A
angústia da liberdade e da responsabilidade e a busca falaz da
segurança explicam a facilidade da entrega a poderes totalitários, a
seitas cegas, a colonizadores de corpos e de almas, a vendedores de
"verdades e certezas" tapadas e irracionais.
A liberdade é condição de possibilidade da ética. Mas até do ponto de vista da raiz etimológica grega - ethos com épsilon e ethos
com eta, que significam, respectivamente, acção, costume, modo habitual
de agir, e toca do animal, morada, casa - se diz que a questão ética é
indissociável da pergunta pela nossa morada enquanto horizonte de
sentido, pátria onde se quer habitar. Sim! Afinal, para onde queremos
ir? Na presente situação de hecatombe político-moral no país e no mundo,
para onde vamos sem uma conversão ética?
Ao
contrário do animal, que vem ao mundo já feito e age no quadro de uma
rede de instintos, o homem vem ao mundo praticamente desarmado de
instintos e aberto a possibilidades sem conta e tendo de fazer-se a si
mesmo no mundo com os outros. Pode escolher entre esta e aquela
possibilidade, até tem a capacidade de não escolher, mas quem tenta
escolher não escolher também escolhe. De qualquer modo, é capaz de
erguer-se a si mesmo acima do simplesmente agradável ou útil e
colocar-se no lugar do outro. Transcende os interesses particulares da
natureza e enquanto ser racional dá a si mesmo de modo autónomo a lei
moral universal que é a lei da liberdade. Kant formulou-a nestes termos:
"Age segundo uma máxima que queiras ao mesmo tempo que se transforme em
lei universal de acção", ou então: "Trata a humanidade em ti e nos
outros sempre como fim e nunca como simples meio."
Sem
capacidade moral e liberdade - a liberdade é a condição de
possibilidade da moralidade e, consequentemente, da responsabilidade -, o
Homem não seria digno de louvor nem estaria sujeito à censura, e não
haveria distinção entre o bem e o mal. Como escreveu o filósofo Luc
Ferry, "um materialismo consequente deveria limitar-se, sempre, a uma
'etologia', sem nunca falar de moral a não ser como uma ilusão mais ou
menos necessária, fazendo parte do real mas, sem embargo, enganadora".
Embora condicionado, só porque não é completamente subordinado nem
guiado pela natureza é que o ser humano "pode cometer excessos, quer no
mal (o ódio e a maldade) quer no bem (o amor e a generosidade)".
*Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 24 de
Fonte:https://www.dn.pt/7087961441/livres-para-onde-queremos-ir/
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