Por
«O que está acontecendo com nossa humanidade?»,
questionam os organizadores no texto de apresentação do tema: «Não
faltam razões para refletir sobre esta questão. Imagens diárias de
violência gratuita, uma epidemia de suicídios, o sentimento de ser
sufocado pela imposição de ideologias opostas e sua linguagem (a começar
pela escola), a potencial ameaça da inteligência artificial generativa,
o sentimento de paralisia diante do futuro, o sofrimento e o mal sem
significado ou redenção, o cansaço geral, o mal-estar, o entorpecimento e
a falta de desejo… Esses sinais sugerem que nossa humanidade está
adormecida. O que pode despertá-la?» Debates, exposições e espetáculos
tentarão dar vida a questões que parecem ser, nos Estados Unidos
certamente, mas em todas as latitudes, cada vez mais urgentes. Um
programa rico que você encontra aqui. Entre os temas que nos últimos
meses têm gerado mais discussão – que também é o tema da edição de
fevereiro da Tracce – está o da inteligência artificial. O
Encounter dedicou a ela uma exposição intitulada “AI and I: Wonder,
Create, Work” (“Inteligência Artificial e o eu: maravilhar-se, criar,
trabalhar”). Conversamos sobre isso com o curador Davide Bolchini,
reitor da Escola Luddy de Informática, Computação e Engenharia da
Universidade de Indiana em Indianápolis.
Como surgiu a exposição?
No
final da última edição do New York Encounter, eu estava conversando com
alguns colegas que trabalham em universidades, como eu: o ChatGPT já
era utilizado por colegas e alunos, e o fenômeno levantava muitas
questões. Pensamos que o Encounter era um lugar privilegiado para falar
sobre esse tema, indo realmente a fundo na nossa relação com essas novas
ferramentas tecnológicas. Discutindo com os organizadores do Encounter e
outros amigos do setor com quem trabalhei na exposição, surgiu a grande
questão em torno da qual tentamos desenvolver o percurso da exposição.
Qual questão?
Como
disse Melvin Krantzberg, um historiador da tecnologia, a tecnologia não
é boa nem má, mas também não é neutra. Por sua natureza, ela abre,
ilumina novos horizontes, mas necessariamente faz outros desaparecerem
ou os põe em xeque, muitas vezes de forma poderosa. Quando você tem
ferramentas que parecem replicar o produto da atividade humana, ou pelo
menos sabem fazer o que eu chamo de uma primeira versão de qualquer
coisa, e são destinadas a fazer isso cada vez melhor, há algo
irredutível na contribuição humana? Há algo que a máquina não pode
replicar? Se o produto da atividade criativa é replicável, o que o ser
humano traz?
A exposição é intitulada “a IA e o eu”.
Sim,
porque ao aprofundar a questão sobre qual é a contribuição
insubstituível do ser humano, chega-se a questionar o que é o eu.
Como vocês decidiram proceder?
A
primeira constatação é que se fala muito de Inteligência Artificial
generativa, mas poucos têm uma experiência direta com ela. Assim, o
primeiro passo do nosso percurso é fazer com que as pessoas experimentem
algumas ferramentas disponíveis hoje, experimentando exemplos de seu
uso de acordo com as necessidades que têm, seja como professor,
cientista, profissional… Depois, tentamos explicar os modelos que fazem
essas aplicações funcionarem, que são essencialmente de natureza
estatística.
Em que sentido?
Significa que o
texto gerado como resposta é formado com base no cálculo das
probabilidades de como as palavras se combinam em textos de sentido
completo já existentes. O ChatGPT não sabe o que está respondendo, mas
sabe que o texto que fornece tem uma alta probabilidade de fazer sentido
em relação à pergunta que foi feita. E os resultados são realmente
surpreendentes.
Mas já se sabe que o ChatGPT não é confiável.
Mas
é interessante entender por que não é. São sistemas quase imbatíveis em
gerar conteúdo sobre qualquer assunto, em dar ideias sobre tudo e até
em resolver problemas em poucos segundos, mas é claro que não têm nenhum
entendimento das informações que nos fornecem. Tanto é que, em alguns
casos, deparamos com “alucinações”: respostas falsas, mas tão plausíveis
que poderiam ser verdadeiras.
Por exemplo?
Aconteceu
de o ChatGPT fornecer referências de artigos de jornalistas de grandes
veículos, mas que nunca foram escritos. Ou, pelo menos as primeiras
versões, não sabiam fazer raciocínios que para nós parecem simples. Se,
por exemplo, você diz: «Se uma camiseta molhada leva uma hora para
secar, quanto tempo três levam para secar?» O sistema responde que leva
três horas. Ou: «Meu gato estava vivo às 10. Ficou doente às 16. O gato
estava vivo às duas da tarde?» O algoritmo responde: «Não». O sistema
estatístico não fornece à máquina o senso comum ou, de qualquer forma, o
senso da realidade. Isso porque a inteligência, para citar São Tomás de
Aquino, tem muito a ver com a verdade, que é adaequatio rei et intellectus, ou seja, a correspondência entre a mente, ou a linguagem, e a realidade.
Portanto, a máquina é burra.
Mas
esses, afinal, são limites que poderiam até ser superados em versões
mais sofisticadas dessas ferramentas. Existem questões ainda mais
profundas. Na exposição, damos o exemplo de Vauhini Vara, que é uma das
primeiras escritoras profissionais a experimentar a IA generativa no
processo de criação de um romance. Num artigo para a Wired, ela
explicou que há muito tempo queria escrever um livro sobre o que
experimentou com a morte de sua irmã, mas não conseguia. Ela conseguiu
com a ajuda da IA, e muitas pessoas se identificaram com a descrição da
experiência do luto. No entanto, Vara acrescenta: «Mas eu sei que o que
está escrito no livro não corresponde ao que vivi». E continua:
«Escrever é comunicar uma possível expressão de uma consciência
particular, uma certa experiência do mundo, que é única». Portanto, o
que eu crio não depende apenas do refinamento das palavras do texto, mas
é a tentativa de «esclarecer o que é o mundo do ponto de onde eu o
observo». E isso não tem nada a ver com o método estatístico usado pela
IA para gerar textos. Falta uma “coerência” que deriva de uma relação
íntima, irrepetível com a realidade.
É essa relação com a realidade que nos distingue das máquinas?
O
grande linguista Noam Chomsky escreveu um belo artigo no início do ano
passado, no qual dizia, em resumo, que todo ato criativo do homem, por
definição, contém um elemento de moralidade. Ou seja, a criatividade
implica o desejo de contribuir para o mundo. É a tentativa – como Steve
Jobs dizia, to make a dent in the universe – de arranhar o mistério.
E o mistério não pode ser inserido num banco de dados…
Como
explicamos na exposição, há um belo diálogo de Platão em que Sócrates e
Fedro discutem a relação entre a vida e a expressão “técnica” ou
artística, que também pode ser a escrita ou a pintura. Diz-se, em certo
ponto do texto, que as obras das mãos do homem parecem ter elementos de
vida e parecem falar com você. Mas se você tenta interrogar esses
artefatos, eles não respondem. Sócrates diz: a produção artística é
apenas uma imagem muda de uma alma em trabalho. Então, o tema é,
voltando aos dias de hoje e à relação com os produtos da tecnologia
contemporânea, o que decidimos delegar a essas imagens.
Fonte: https://portugues.clonline.org/not%C3%ADcias/cultura/2024/02/16/new-york-encounter-inteligencia-artificial?utm_campaign=Newsletter+de+Comunh%c3%a3o+e+Liberta%c3%a7%c3%a3o&utm_medium=email&utm_source=CamoNewsletter
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