terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Dia Mundial da Justiça Social

*| 19 Fev 2024

 

O Dia Mundial da Justiça Social assinala-se, anualmente, a 20 de fevereiro. Este dia foi implementado através da Resolução 62/10 da Assembleia Geral das Nações Unidas, a 26 de novembro de 2007. De acordo com as Nações Unidas este dia é uma oportunidade para fomentar o diálogo entre os Estados Membros, jovens, parceiros sociais, sociedade civil, organizações da ONU e outras partes interessadas sobre as ações necessárias para reforçar o contrato social que foi afetado pelo aumento das desigualdades, conflitos e instituições enfraquecidas que se destinam a proteger os direitos dos trabalhadores. A ONU considera que o desenvolvimento social e a justiça social são indispensáveis para a alcançar e manter a paz e a segurança dentro e entre nações e que, por sua vez, o desenvolvimento social e a justiça social não podem ser alcançados na ausência de paz e segurança, ou na ausência de respeito por todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

O termo Justiça Social terá aparecido pela primeira vez pela mão do jesuíta Louis Taparelli d’Azeglio com o objetivo de contrapor ao liberalismo e ao capitalismo da era da Revolução industrial uma teologia que fosse o suporte de uma doutrina moral da Igreja. Defendia que a justiça social tinha por objeto aquilo que era devido ao indivíduo apenas pela sua condição humana secundarizando as posições ocupadas por cada um. O seu pensamento terá influenciado Leão XIII e a elaboração da Rerum Novarum (1891). Na luta de interesses que se desenhava no mundo pós-Revolução Industrial o pensamento de Taparelli causou forte controvérsia entre os setores conservadores da Igreja e o catolicismo social europeu, já que se suspeitava haver aí influência socialista. Talvez por essa razão a expressão não apareça no documento de Leão XIII, sendo o foco a procura de respostas à Questão Social, nomeadamente as condições de vida dos trabalhadores dando primazia às pessoas sobre as coisas.

O conceito foi introduzido por Pio XI na Quadragesimo Anno (1931) decorridos 40 anos desde a Rerum Novarum. Pio XI recuperou as ideias de Taparelli sobre dignidade humana. Importa lembrar que se vivia então uma crise económica derivada da Grande Depressão (1929-1933). Era um mundo em grande transformação: as ideias socialistas iam fazendo o seu caminho e a revolução estava agora sob a égide da bandeira comunista. O capitalismo liberal assentava agora em grandes monopólios. O mundo do trabalho e nele os salários continuam a ser um dos campos principais da Justiça Social. O documento terá sido um estímulo para o empenhamento dos católicos na transformação da sociedade. De acordo com Pio XI “É necessário que as riquezas, (…) sejam repartidas pelos indivíduos ou pelas classes particulares de tal maneira, que se salve sempre a utilidade comum, de que falava Leão XIII, ou, por outras palavras, que em nada se prejudique o bem geral de toda a sociedade. Esta lei de justiça social proíbe que uma classe seja pela outra excluída da participação dos lucros.” (QA 57). A lei de justiça social deveria, por conseguinte, reger o modelo económico. O desemprego e as más condições são o reflexo de uma economia injusta.

A Mater et Magistra (1961) embora continue a tratar os mesmos assuntos do passado, nomeadamente o do salário justo, introduz uma rutura face aos documentos anteriores.  “João XXIII entendia que o Estado, particularmente em matéria de assistência social, tinha um papel muito mais amplo a desempenhar na vida dos seus cidadãos, do que haviam entendido os seus antecessores.” [1]

Pacem in Terris (1963), de João XXIII, publicada no decurso do Concílio Vaticano II, dirigida a todos os homens de boa vontade é mais uma reflexão sobre os direitos humanos do que sobre as questões sociais. Contudo, João XXIII ao abordar a questão da corrida aos armamentos vem introduzir, aos olhos de hoje, uma outra perspetiva sobre a Justiça social. Hoje existe uma maior consciência de como a corrida ao armamento e as guerras criam e agravam as desigualdades entre povos e dentro de uma mesma comunidade, para além de causarem uma degradação acelerada do meio ambiente e das condições de vida das pessoas.

A Gaudium et Spes (1965), Constituição da Igreja no Mundo Atual, aborda fundamentalmente as questões da paz e da justiça. Uma das fundamentações teológicas introduzidas é a dignidade da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus. “Mas deve superar-se e eliminar-se, como contrária à vontade de Deus, qualquer forma social ou cultural de discriminação, quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por razão do sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião (…)” (GS 29). Uma outra novidade teológica prende-se com o princípio universal dos bens: Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens, segundo a justiça, secundada pela caridade (GS 69). Seguindo esta orientação, Paulo VI cria em 1967 a Comissão de Justiça e Paz. Assim, a justiça social como exigência da dignidade humana ganha o estatuto de globalidade.

Na Laborem Exercens (1981), João Paulo II, centra a justiça social e o seu compromisso na luta pelos direitos do trabalho. “A prioridade do trabalho sobre o capital é uma das exigências de justiça social e os sindicatos são o expoente dessa luta” (LE 8).  João Paulo II, através da Sollicitudo Rei Socialis (1987), mantem a temática da justiça social identificando as estruturas de pecado e os mecanismos perversos como contrários à justiça. Bento XVI na Caritas in Veritate (2009) coloca o foco na justiça distributiva e a justiça social integradas na economia de mercado sublinhando a teia das relações em que se inserem.

Podemos dizer que o Papa Francisco globalizou definitivamente a temática da Justiça Social tornando-a transversal a todos os povos, mas também englobando muitas de outras temáticas que eram percecionadas em separado. Na Evangelii Gaudium (2013) recorda que “ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, pois ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social” (EG 201). Mas vai mais além e diz que a justiça social deve estar na agenda do diálogo entre religiões: o diálogo inter-religioso, fundado na atitude de abertura na verdade e no amor, deve procurar a paz e a justiça social, é um compromisso ético que cria novas condições sociais (EG 250). Na Laudato Si (2015) a justiça social insere-se no novo paradigma do cuidado da casa comum: “(…) muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afetam particularmente os excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de milhões de pessoas (…) Uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (LS 49). Francisco, chama ainda a atenção para a justiça intergeracional, o que nos obrigada a assumir o compromisso de cuidarmos do legado: “Se a terra nos é dada, não podemos pensar apenas a partir dum critério utilitarista de eficiência e produtividade para lucro individual. Não estamos a falar duma atitude opcional, mas duma questão essencial de justiça, pois a terra que recebemos pertence também àqueles que virão” (LS 159). Poderia ainda referir a Fratelli Tutti (ver à margem) no sentido da responsabilidade coletiva, enquanto irmãos e irmãs, cuidarmos da casa comum e cuidarmos uns dos outros.

O conceito de Justiça Social foi evoluindo ao longo do tempo de acordo com os problemas e desafios de cada época. Está longe a ideia da Justiça Social ligada a uma política redistributiva. Hoje o foco da Justiça Social é o bem comum em todas as suas dimensões (económica, social, cultural, ambiental…), tendo como princípio o indivíduo inserido numa comunidade.

Se há temática para a qual a Igreja Católica e os diferentes Papas contribuíram foi certamente a da Justiça Social. Sobretudo em momentos em que as comunidades mais necessitavam de palavras de esperança. Assim, pareceu-me importante relembrar neste Dia Mundial da Justiça Social, mesmo se muito sumariamente, alguns dos documentos da Doutrina Social da Igreja. Foram palavras que no seu contexto levaram muita gente a empenhar-se na transformação da sociedade que então era a sua. Nestes tempos em que parece mais importante clamar do que refletir, porque a urgência assim parece exigir, há que evitar que a memória se dilua na voracidade destes nossos dias.

Uma última palavra para os grupos ou minorias duplamente excluídas nas comunidades com base em valores morais ou códigos sociais de interpretação. Mesmo que se resolvam problemas que tenham a ver com a justiça social, esses grupos não deixarão de ser excluídos nas nossas comunidades. Um primeiro passo é reconhecê-los como iguais, como irmãos. Sem reconhecimento não existe dignidade.

[1] Os Caminhos da Justiça e da Paz. Doutrina Social da Igreja (Documentos de 1891 a 1981). Coordenação de Peter Stilwell; coleção magistral; Editor Rei dos Livros, 1987.

José Centeio é editor da opinião no 7Margens e membro do Cesis (Centro de Estudos para a Intervenção Social); contacto: jose.centeio@gmail.com

Fonte: https://setemargens.com/dia-mundial-da-justica-social/

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