J. B. Libanio*
"A centralidade do eu impede que se
percebam os reais problemas
que dizem respeito às pessoas.
A mídia aguça de tal maneira
a exterioridade da sensibilidade
com imagens e manchetes fortes
que termina por anestesiar
o coração humano."
Crítica que a modernidade assesta contra a tradição clássica medieval aponta-lhe a supervalorização da objetividade do real, da intelectualidade, do conhecimento abstrato em detrimento da afirmação da afetividade, da emoção, da sensibilidade.
Afirma-se, sem rebuço, a descoberta da autonomia do sujeito e de sua interioridade como traço revolucionário da modernidade. Deixava-se para trás o império das leis, das normas, das regras, das prescrições, sobretudo impostas pela Igreja, para entrar no reino da liberdade. E a Revolução Francesa ainda acrescentou igualdade e fraternidade.
Veio a pós-modernidade com mais força ainda para acentuar o lado subjetivo. Imaginava-se que a sensibilidade, mais bem-trabalhada, abriria as pessoas para o sofrimento alheio, para os problemas dos outros. Mas tem acontecido o contrário.
Quanto mais avança a exacerbação do indivíduo, mais se lhe endurece o coração. Já não porque se prende ao mundo das verdades objetivas e normativas, mas, pelo contrário, porque se foca unicamente em si mesmo e se esquece de tudo e de todos que o cercam. Só lhe interessa o que lhe toca o próprio afeto e não o afeto em direção aos outros.
Estamos a caminhar para cultura desumana por excesso de subjetividade. A centralidade do eu impede que se percebam os reais problemas que dizem respeito às pessoas. A mídia aguça de tal maneira a exterioridade da sensibilidade com imagens e manchetes fortes que termina por anestesiar o coração humano. Os romanos já sabiam que as coisas costumeiras acabam por perder impacto.
A comparação com a droga, a bebida e outros vícios faz-nos compreender que, ao entrar por esse caminho, as doses tendem a crescer até a morte. Em "O Prazer e o Mal: Filosofia da droga", Giulia Sissa nos traça a trajetória do drogado que, ao enveredar-se por essa via, só termina encontrando a própria destruição do corpo e do espírito.
Envolve-nos verdadeiro paradoxo. Quanto mais subjetividade aguçada, menos sensíveis e abertos nos tornamos para o outro. Cansamo-nos com a própria afetividade a tal ponto que não nos sobram energia e vontade de estender o olhar para além de nós mesmos. A filosofia clássica já conhecia a contradição dos extremos. Se tudo é relativo, o próprio relativismo é relativo e deixa de ser universal. O máximo do subjetivismo desemboca na morte do sujeito. Ele perde a necessária consistência de si.
Surgem daí terríveis consequências para o cotidiano. A afetividade, que existe para suavizar a existência, aguça-se e assume atitudes violentas. Não lhe valem as razões. A enlouquecida subjetividade destrói mortalmente o outro. Assim, o número de assassinatos cresce vertiginosamente, sobretudo no meio jovem, cada vez por causas mais banais. Basta mínimo de irritação para desencadear fúria criminosa, como fechada no trânsito, gesto provocativo de alguém, desejo de roubar coisa boba. Sem repensamento da cultura na linha de objetivar valores e de respeitar a pessoa do outro por ela mesma, o aguçamento da subjetividade nos levará à triste afirmação de Hobbes: homo homini lupus - o ser humano é lobo para o outro. Estaremos na posição antípoda da pregação e práxis de Jesus: "não é de Deus quem não ama o seu irmão" (1Jo 3,10).
-----------------------*Padre jesuíta, escritor e teólogo. Ensina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte, e é vice-pároco em Vespasiano
Fonte: Adital on line, 14/02/2012
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