Contardo Calligaris*
Cenas do filme de Farhadi - da Internet
A gente "se sacrifica" por obrigações sagradas,
mas esses "deveres" servem para
renegar nossos desejos
NAS ÚLTIMAS semanas, perdi a conta dos leitores que me encorajaram a comentar "A Separação", de Asghar Farhadi. Para não estragar o prazer de quem ainda não assistiu ao filme, só algumas anotações.
1) Em Teerã, num tribunal, um homem e uma mulher discutem, cada um tentando ganhar a guarda da filha. Eles tinham o sonho comum de ir embora do país (oferecendo à menina, como se diz, um futuro melhor) e já estavam com visto e autorização para viajar, mas eis que o marido desistiu do projeto porque ele deve se ocupar do velho pai, doente e demente. Adiar a viagem é impossível: a autorização que eles conseguiram logo vencerá.
A mulher quer se separar do marido, para viajar e levar a filha para o exterior, como planejado. O marido se opõe.
Provavelmente, no lugar do juiz, eu apoiaria o dever para com o velho genitor contra o sonho (quem sabe, frívolo) de um futuro diferente. Esta mulher quer o quê? Enfiar o sogro num asilo só para respirar o ar de Paris ou Nova York?
Agora, se, em vez de juiz, eu fosse terapeuta do casal, talvez não me deixasse enternecer pela "nobre" decisão do marido. Afinal, qual melhor desculpa do que um pai doente para justificar nossas desistências? É frequente: a gente "se sacrifica" em nome de obrigações sagradas e tradicionais, e, de fato, esses compromissos nos servem para renegar nossos desejos.
Você também conheceu uma tia que nunca se casou porque "teve que" criar o sobrinho cuja mãe morreu cedo? Ótimo, sobretudo para o sobrinho; mas há uma chance de que esse nobre sacrifício tenha sido o jeito que a tia encontrou para fugir de uma vida amorosa e sexual que ela desejava, mas que ela também sobretudo temia.
2) Aparentemente, é a mulher que, insensível à devoção filial do marido, pede a separação. Alguém poderia suspeitar, aliás, que ela esteja apenas se aproveitando da ocasião para decretar o fim de uma relação que talvez já tenha acabado há tempos.
Mas é possível que o verdadeiro responsável pela separação seja o marido: será que a opção de cuidar do velho pai não é o jeito que ele encontrou para forçar a mulher a querer se separar dele? Eu não fiz nada, só "tenho que" honrar meu pai, é você que não me aguenta e é você que quer se separar. É o estilo passivo-agressivo: a iniciativa sempre parece ser do outro.
3) Mesmo se eu não professasse nenhuma ideia oposta às do regime, mesmo se meu desejo sexual fosse integralmente permitido pela polícia dos costumes, eu fugiria de Teerã -apenas por saber que há direções nas quais meus sonhos seriam punidos, caso se aventurassem por lá. Também fugiria de qualquer Irã ou Cuba do mundo porque não tolero ficar num lugar de onde é difícil, se não proibido, sair.
4) O marido não é um santo, mas parece fazer uma escolha generosa: renuncia ao projeto de emigrar por fidelidade ao pai.
Mas nunca é fácil saber no que consiste a verdadeira fidelidade. No caso, ela consiste em cuidar do pai demente ou em correr atrás do que ele talvez quisesse para nós?
Ou seja, imaginemos que (banalmente) meu pai sonhasse com a minha liberdade: será que eu lhe seria mesmo fiel no dia em que, para assisti-lo, eu renunciasse a meu próprio desejo?
5) O diretor do Ministério da Cultura do Irã declarou à Folha que "A Separação" é "contrário ao sistema político iraniano", o que, segundo ele, seria demonstrado pelo sucesso do filme no Ocidente.
Bizarro, entre outras coisas, porque o filme contém uma defesa do islã popular como grande e necessária garantia moral.
Seja como for, as ditas plateias ocidentais talvez estejam um pouco cansadas de assistir a visões caricaturais de mundos exóticos, nos quais, graças a alguma tradição, sempre se sabe qual é a coisa certa.
Talvez nós, plateias ocidentais, notoriamente narcisistas, estejamos mais interessadas no cotidiano de nossa própria experiência, ou seja, no conflito nunca resolvido entre as dívidas com nosso passado e as dívidas com nosso futuro.
A dívida com o passado pode ser exigente e incômoda (como ocupar-se de um pai demente), mas ela é, por assim dizer, pacífica: estabelecida e tranquila. Enquanto a dívida com o futuro é sempre inquietante, sem resposta: qual será a viagem que devo a mim mesmo?
Caro diretor do Ministério da Cultura do Irã, não gostamos de "A Separação" porque seria anti-iraniano (que não é), mas porque conta uma história próxima das histórias da gente.
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*Psicanalista. Escritor. Cronista da Folha
@ ccalligaris
Fonte: Folha on line, 16/02/2012
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