Para o acadêmico Maurílio Castro de Matos,
autor do livro 'A criminalização do aborto em questão',
debate no Brasil está equivocado. Lei atual
torna passível de punição quem passa por cirurgia,
mas será que a população deseja mesmo
que a mulher vá parar na cadeia?
'Todo mundo conhece ou sabe de alguma
mulher que fez aborto',
afirma.
A escolha e posse da nova ministra de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci de Oliveira, trouxeram de volta uma das maiores polêmicas da campanha vencida por Dilma Rousseff em 2010, a descriminalização do aborto. Debate interditado na eleição – discutia-se se Dilma tinha sido contra ou favor em algum momento da vida, não a legalização -, o tema foi abordado no mérito pela nova ministra, conhecida crítica da criminalização.
Mesmo tendo deixado claro que falava em nome próprio, não pelo governo, que entende ser esta uma questão da alçada do Congresso, Eleonora ajudou a colocar o assunto na agenda pública - ainda que a discussão morra daqui um tempo. Enquanto isso não acontece, porém, partidários da visão da nova ministra aproveitam a oportunidade para entrar em campo.
É o caso do professor de Serviço Social Maurílio Castro de Matos, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), autor do livro A criminalização do aborto em questão.
Em entrevista à Carta Maior, Castro de Matos defende que dar o direito às mulheres de decidir levar adiante ou não uma gravidez, é respeitar os direitos humanos delas. Ressalta que criminalizar não evita cirurgias, que muitas vezes terminam com resultados mau sucedidos, especialmente para a mulher pobre que não tem dinheiro para pagar clínicas seguras.
E propõe uma nova forma de debater: “A população pode até, de forma pouco refletida, ser contra a descriminalização do aborto, mas não quer ver a mulher presa por isso. Então, que lei é essa que se quer manter, mas que não se quer que seja cumprida?”
Abaixo, o leitor confere os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail.
Por que a legalização do aborto é importante?
Maurílio Castro de Matos: Hoje, a maioria dos serviços de aborto legal, para casos com risco de morte ou advindos de estupro, está disponível apenas na capital dos estados e, em alguns, não existe na prática. Enquanto o Supremo Tribunal Federal não se posicionar sobre o aborto de fetos com anencefalia, aqueles que comprovadamente não terão vida após o parto, as mulheres neste país são obrigadas a levar adiante uma gravidez mesmo sabendo que não haverá um filho depois. Defender a legalização do aborto é garantir os direitos humanos de muitas mulheres que atualmente são desrespeitados. Aquelas que não precisarem ou não quiserem recorrer a um aborto, continuarão assim. Mas aquelas que, por decisões que só elas sabem da complexidade, fizerem, poderão fazer sem risco de morte, sequelas e de prisão.
O senhor tem números sobre a prática, mortalidade...?
Castro de Matos: Segundo o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), no Brasil são realizados, por ano, um milhão de abortos clandestinos. Eles causam 602 internações diárias por infecção, 25% dos casos de esterilidade, 9% dos óbitos maternos. É a terceira causa de morte materna no país. A criminalização atinge mais as mulheres pobres, uma vez que as de outros extratos sociais podem recorrer ao aborto em clínicas com total garantia de qualidade no atendimento. Além da desigualdade de classe, uma pesquisa da Ações Afirmativas em Direitos e Saúde (IPAS Brasil) e do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), divulgada em 2007, mostra que as mulheres negras e pardas, moradoras das regiões Norte e Nordeste, estão mais sujeitas à mortalidade em decorrência do abortamento inseguro, sendo que no nordeste a curetagem é o segundo procedimento obstétrico mais realizado.
Por que a sociedade brasileira tem tanta dificuldade em tratar a questão de forma mais científica e menos como um tabu?
Castro de Matos: Porque a forma como o debate sobre o aborto vem sendo tratado está errada. Temos que sair da falsa polarização entre ser contra ou favor. Penso que, para uma discussão séria sobre a mudança da lei, temos que juntar alguns argumentos: o grave problema de saúde pública, a autonomia da mulher, o respeito, num Estado laico, da diferença, e a diferenciação das fases de gestação (diferenciar embrião e feto de vida humana). Também é preciso chamar a atenção da população para a questão de se as pessoas querem realmente que as mulheres que realizam o aborto sejam presas. Todo mundo conhece ou sabe de alguma mulher que fez aborto. Sobre esse último ponto parece que não. A população pode até, de forma pouco refletida, ser contra a descriminalização do aborto, mas não quer ver a mulher presa por isso. Então, que lei é essa que se quer manter, mas que não se quer que seja cumprida?
Mas acredita que a sociedade brasileira aceitaria a descriminalização?
Castro de Matos: Uma pesquisa do Ibope feita a pedido da ONG Católicas pelo Direito de Decidir informa que quase 70% da população é favorável ao direito ao aborto, quando a mulher corre risco de vida ou quando o feto não sobreviverá após o parto. Que 52% são favoráveis ao direito de escolha quando a gravidez é advinda de estupro. Que 96% entendem que não é papel do governo prender as mulheres que realizaram aborto. E que 61% das pessoas afirmam que a decisão sobre uma interrupção de gravidez cabe a própria mulher.
O que a experiência de outros países nos ensina?
Castro de Matos: Explicarei a experiência de Portugal, pois acompanhei a implementação da lei que lá legalizou o aborto. Foi realizado um plebiscito em 1998, e a população optou pela manutenção da lei punitiva. Logo após esse plebiscito, a lei começou a ser aplicada, e isso assustou a população. Houve julgamentos e condenações em massa. Isso criou um ambiente para o plebiscito de 2007 que descriminalizou o aborto até a décima semana de gestação, a pedido da mulher. Além dessa experiência traumática, os portugueses mudaram a lei porque integram a União Européia e, exceto Malta, Polônia e Irlanda, todos os outros países europeus, de alguma maneira, descriminalizaram o aborto. A convocação de um novo plebiscito integrou a agenda política do governo. Com o argumento de que vários países vizinhos já haviam descriminalizado o aborto, Portugal pôde sair da falsa polarização entre ser contra ou favor e sim discutir os direitos e a laicidade do Estado no contexto da razão e da modernidade.
-------------------------------------Reportagem por Najla Passos
Fonte: Carta Maior, 13/02/2012
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