Rubem Alves*
“Pai, como é que a gente sabe quando
é boi e quando é vaca?”
Minha mãe convulsionou e
soltou um grito fino.
“Diano, não! Diano, não!”
Foi o que ela disse.
Me lembro bem.
Menino inteligente e de olhos curiosos, decifrei desde muito cedo os mistérios do sexo, a diferença entre os homens e as mulheres. E isso por conta própria, sem que ninguém me contasse. Percebi que homens eram aqueles que usavam calças. Mulheres eram aquelas que usavam saias. Essa conclusão óbvia me bastava. O problema que me atormentava era outro: como saber o sexo dos bichos que nem usam calças e nem usam saias? A única exceção eram os galos e as galinhas, nos quais a diferença sexual está na cara dos galos: os galos têm uma crista vermelha na cabeça e cantam. Se não tem crista vermelha e nem canta, é galinha.
E por falar em crista de galo, lembro-me de que Leonardo da Vinci, no seu livro de culinária, ensina uma receita de cristas de galo assadas, prato muito apreciado na época. Há, entretanto, uma pendência que me deixa angustiado: as cristas eram cortadas dos galos enquanto vivos? Ficavam eles, depois da cruel castração de sua masculinidade, a perambular, humilhados, por entre as galinhas que certamente se riam deles?
Mas os outros bichos que nem usavam calças e saias e nem tinham crista na cabeça, gatos, cachorros, cavalos, bois e vacas, me causavam perplexidade. Estávamos meu pai, minha mãe e eu conversando, numa tarde, quando achei apropriado esclarecer essa questão. Eu deveria ter 4 anos de idade. “Pai, como é que a gente sabe quando é boi e quando é vaca?” Minha mãe convulsionou e soltou um grito fino. “Diano, não! Diano, não!” Foi o que ela disse. Me lembro bem. Não me lembro de outro grito igual. Meu pai deu uma risadinha sem graça e disse: “É fácil. Os bois têm argolinha no chifre”. Se você não entendeu a explicação do meu pai, digo que eu entendi e passo a explicá-la. Os bois, touros que se tornaram obedientes pela castração, eram usados para puxar carros de bois. Quem dava as ordens era o carreiro que caminhava a pé ao lado do carro com o seu ferrão dotado de um guiso cuja música os bois entendiam muito bem, treinados que tinham sido com técnicas pavlovianas: o simples soar do guiso dizia que lá vinha ferroada. E antes que ela viesse eles obedeciam. Andando ao lado dos bois havia sempre o perigo de que um deles, provocado por alguma varejeira no focinho, meneasse a cabeça para o lado, atingindo o carreiro com um chifre. Para evitar que isso acontecesse aparafusavam-se argolinhas na ponta dos chifres dos bois e amarravam-se a argolinha do chifre direito do boi da esquerda à argolinha do chifre esquerdo do boi da direita por meio de uma tira de couro. Assim, as cabeças dos bois ficavam impedidas de golpes bruscos que pudessem ferir o carreiro.
Aceitei a explicação do meu pai sem acreditar muito porque o grito de minha mãe me informou que eu estava andando em terreno proibido. Agora, muitos anos transcorrido após o acontecido, meditando psicanaliticamente sobre esse trauma infantil, veio-me a idéia de que o grito de minha mãe era uma reação ante à possibilidade eminente de que o meu pai a despisse na minha frente. Porque se ele dissesse a verdade e me revelasse o segredo da diferença entre bois e vacas eu poderia, por analogia, chegar a conclusões sobre a diferença entre homens e mulheres, e isso era como expô-la nua, aos meus olhos.
--------------------------* Escritor. Teólgo. Educador.
Fonte: Correio Popular on line, 12/02/2012
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