quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Autópsia de uma história de amor

Tatiana Salem Levy*

 — Foto: Cris Bierrenbach

— Foto: Cris Bierrenbach

“Amanhã teremos outros nomes”, de Patricio Pron, retrata separação de um casal

“Ela sempre pensou que para se separar ‘bem’ era preciso começar a fazer isso muito antes da separação, passar por todos os estágios descritos pelos especialistas antes que a separação se torne explícita e efetiva: separar-se bem significava, sempre, já ter se separado”, diz o narrador de “Amanhã teremos outros nomes” (trad. Gustavo Pacheco, Todavia), romance do argentino Patricio Pron. No entanto, Ela e Ele, os protagonistas dessa narrativa, não se separaram antes da separação, e agora precisam “encarar a dor que surgia da separação após ela ter acontecido”.

Se hoje fugimos do luto da morte, o que dizer do luto de uma separação? Toda perda implica um processo de significação dessa perda, de ressignificação de si, ou melhor, de reconstrução de si na ausência do outro. Fazer o luto é, ao mesmo tempo, expelir e engolir o outro. Mas o luto requer tempo, e, se mal o temos para aqueles que partem, imaginem para vivenciar a dor da separação, de que Ela nos fala no trecho acima. A velocidade que engole os nossos dias engole também a experiência da dor.

 

Aí temos, mais uma vez, a resistência da literatura, exigindo do leitor um pouco mais do que experiências descartáveis. Se os aplicativos e as redes sociais possibilitam encontros fáceis e rápidos, a literatura, pelo contrário, demanda a disponibilidade para um encontro - também ele, em outra medida, amoroso - lento e sinuoso. Mas nessa demanda a literatura nos dá o que a velocidade dificilmente pode nos oferecer: a compreensão.

“Ele sempre imaginara a identidade como um ponto de chegada, nunca como de partida, e talvez devesse escrever sobre isso algum dia, como sempre fazia quando tentava entender alguma coisa”, diz o narrador. Ele é escritor. Ela é escritora. No ano seguinte à separação, ambos vão tentar compreender alguma coisa. Ele vai se voltar para a vida sexual dos insetos e outros animais. Ela, para as novas formas de relacionamento romântico das pessoas. Observando esses universos paralelos, vão se voltar para si mesmos, para tentar entender alguma coisa - ainda que conclusões não fossem a prioridade deles.

Não se trata de um romance de conclusão, mas da narrativa de um processo. Se Ele e Ela não viveram a separação antes de se separarem, não fogem, contudo, de a viverem depois. “Não havia nada, exceto um imenso deserto de dor, e Ele precisava atravessá-lo, dizia a si mesmo. Isso levaria meses, no entanto”, afirma o narrador. A vivência da separação é justamente a tentativa de compreensão, de significação do que eles viveram, do encontro que tiveram e daquilo que os separou. Não deixa de ser curioso que haja algo de casual na separação, não só no encontro.

O acaso foi um pássaro que atravessou a janela da sala do apartamento deles num fim de tarde em que Eles estavam sentados, aproveitando a última luz do dia. O pássaro entrou no apartamento, bateu de um lado para o outro, desesperado, em busca de uma saída. Eles permaneceram paralisados, sem ação, até que o pássaro bateu pela última vez numa parede e caiu no chão. “E foi nesse momento - quando Ele, depois de atravessar a sala, se agachou e pegou o cadáver do pássaro - que Ela entendeu que iria embora, que naquele mesmo dia terminaria com Ele. E então disse a Ele que precisavam conversar, mas sua voz lhe pareceu tão estranha, e o que ia dizer tão definitivo em suas consequências, que começou a chorar. Não conseguiu falar mais nada.”

Depois, quando fala, termina por mentir. Diz que tem outra pessoa, o clichê óbvio, que lhe parece a forma mais fácil de fazê-lo entender que a separação é inevitável, quando na verdade quer apenas se sentir sem o peso daquela relação, voltar a ser ela mesma - e quer, sobretudo, algo que ele nunca quis: um filho. Ele, que sempre acreditou que, se um dia se separassem, seria por vontade sua, de repente se vê desamparado, desestruturado. Rasga folha sim, folha não, dos livros que ela deixou no apartamento que era dos dois, antes de se mudar para um novo apartamento, em frente a uma livraria, por indicação de M., sua editora e amiga, que acaba por se tornar também sua amante. De cada livro, falta a metade. De cada livro, como dele próprio, uma nova metade a ser escrita.

As coisas vão acontecendo na vida de um e de outro muito lentamente. Amizades que vão se transformando, encontros casuais, viagens, casas novas. Mas o mais interessante é a forma como eles observam o mundo, com uma exterioridade que só a dor permite - por nos levar para tão dentro de nós, só conseguimos ver os outros de fora. “Se alguém pudesse observá-la naquele momento, pensou, seria obrigado a se perguntar como Ela chegara a essa situação, o que estava fazendo no sofá de uma amiga portuguesa com nome de caçadora.”

A narrativa se passa em Madri, e é também uma tentativa de compreensão das grandes cidades, do que elas se tornaram no capitalismo contemporâneo - menos um lugar para se viver do que para os turistas. Enquanto Ela observa os prédios, enquanto sai para passeios noturnos com o intuito de observar a arquitetura dos lugares, também observa as pessoas e as novas configurações de desejo, de relacionamento, marcadas pela precariedade. Assim, a história dos protagonistas vai sendo atravessada por muitas outras histórias: de pessoas, quando é Ela quem observa; de insetos, quando é ele quem investiga.

F., a amiga que vai se tornando cada vez mais próxima, não esconde a superioridade moral que atribui às suas escolhas de liberdade sexual; afinal, ela e seu companheiro “estavam inventando novos modos de relacionamento amoroso que não eram dominados pelo ciúme nem pela ânsia de posse, como acontecia nos relacionamentos de pessoas como Ela e Ele”. Mas, no fim, a verdade é que mesmo os novos modelos caem nos antigos dramas. Desde que começara a observar as novas formas de interesse romântico à sua volta, Ela percebeu que a maioria das barreiras para a sua realização estava relacionada à “impossibilidade de definir o consentimento e de subtrair da experiência amorosa, como se fosse possível, seu componente aleatório”.

 

Ele, por sua vez, se questiona sobre o novo papel da masculinidade: “Às vezes pensava que estava condenado porque todos os homens estão, e aceitava o preço de pertencer a um coletivo de predadores insaciáveis, mesmo que não fosse um deles; outras vezes, ao contrário, achava que não devia se desculpar por algo que não fizera, e que não tolerava”. Ao investigar o misterioso universo dos animais, vai descobrindo coisas que nos fazem pensar sobre a sociedade humana. Por exemplo: há certos insetos hermafroditas que definem o sexo através da violência; eles lutam entre si, e o que perde vira fêmea. Há também o curioso caso de um tipo de peixe ornamental do oceano Atlântico; as fêmeas “só se acasalam depois que dois machos brigam por elas; por alguma razão - acrescentou M. -, geralmente escolhem o perdedor”.

O percurso dos protagonistas - o tal “deserto de dor” - revela-se uma espécie de laboratório, onde eles investigam as novas formas de relacionamento amoroso e as formas muito antigas, anteriores aos seres humanos; ao mesmo tempo, investigam a si próprios. “Talvez, toda história de amor acabasse sendo uma investigação, ou melhor, uma autópsia”, conclui Ele, com seu humor particularmente ácido.

*Tatiana Salem Levy, escritora e pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa, escreve neste espaço quinzenalmente

E-mail: tatianalevy@gmail.com

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/tatiana-salem-levy-autopsia-de-uma-historia-de-amor.ghtml

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