Tatiana Salem Levy*
— Foto: Cris Bierrenbach
“(Pode ser que um texto como este provoque irritação, ou repulsa, ou seja considerado de mau gosto. Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la. Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar essa experiência até o fim, contribuirei para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo.)
Este é um dos muitos parênteses que pontuam “O acontecimento” (trad. Isadora de Araújo Pontes), mais uma narrativa desconcertante de Annie Ernaux, que a Fósforo acaba de lançar, depois de “O lugar” e “Os anos”. Tal como nestes últimos, Ernaux transforma aqui a sua experiência individual em literatura, e a literatura autobiográfica em palavra coletiva, política. “O acontecimento” trata de uma experiência não apenas íntima, mas também clandestina: um aborto feito pela autora em 1963, quando essa prática era proibida na França.
Fazia pouco tempo, Ernaux tinha acabado de atravessar uma fronteira aparentemente intransponível: a social. Era a primeira de sua família a frequentar a universidade. Tinha deixado a pacata vida de Yvetot, um vilarejo na Normandia, para estudar Letras em Rouen. Não iria repetir a vida de seus pais. Mas então, num “mês ensolarado e ameno” de outubro, ela se descobriu grávida. Ter um filho aos 23 anos, ainda na faculdade, de um namorado recente, era, para aquela mulher, o retorno ao seu lugar de partida, a repetição do modelo de sua classe social, a impossibilidade de seguir adiante com o plano de ser dona da própria vida.
Ser dona da própria vida significa, em primeiro lugar, ser dona do próprio corpo - nem que para isso seja preciso agir contra as leis, contra um Estado que queria se apropriar do corpo da mulher, ter a última palavra sobre ele. Fazer um aborto clandestinamente é se sentir “abandonada pelo mundo”, colocar-se entre a vida e a morte, correr riscos muito grandes e ainda ter que enfrentar o olhar de julgamento do médico que a socorre quando uma hemorragia a obriga a pedir socorro. “Com a entrada em cena do médico, começa a segunda parte da noite. De experiência pura da vida e da morte, ela se tornou exposição e julgamento”, narra Annie Ernaux. Então, antes de exercer o seu ofício, ele dispara: “‘Olhe para mim! Jure que nunca fará isso! Nunca!’ Por causa de seus olhos loucos, acreditei que fosse capaz de me deixar morrer se eu não jurasse”.
Annie Ernaux queria, em 1963, poder fazer o que todas as mulheres na França podem fazer desde 1974, quando a então ministra da Justiça, Simone Veil, legalizou o aborto: decidir sobre o próprio corpo; abortar em condições de higiene e segurança. Um aborto nunca é uma decisão fácil. Que ele tenha que ser feito de forma clandestina, nas piores condições, sob o medo da morte, sem acolhimento, sob repreensão e julgamento do olhar alheio, torna-o não apenas uma experiência difícil, mas um trauma que, 36 anos depois, Annie Ernaux não conseguiu esquecer.
É em 1999 que ela escreve “O acontecimento”, a partir de uma agenda e um diário íntimo mantidos durante aqueles meses, que “vão me trazer as referências e as provas necessárias ao estabelecimento dos fatos. Vou me esforçar, acima de tudo, para me aprofundar em cada imagem, até que tenha a sensação física de ‘alcançá-la’, e que surjam algumas palavras sobre as quais eu possa dizer ‘é isso’”. Anos depois do acontecimento, Annie sente que precisa eliminar a única culpa que ainda sentia: a de não ter feito nada com ele.
A certa altura, ela afirma ter a sensação de que as coisas lhe acontecem para que possa escrever sobre os acontecimentos, e assim torná-los dos outros. São dois, os acontecimentos deste livro: o aborto, que faz nascer uma nova Annie (“Durante anos, a noite do dia 20 ao 21 de janeiro foi um aniversário”), e a própria escrita, que faz nascer um novo corpo. Um corpo que não é só dela, mas de todas e todos que a leem. Impossível sair da leitura desse livro sem sentir uma transformação física.
Sobretudo, se você for mulher. Nunca na vida eu tinha lido uma descrição tão crua de um aborto. De um aborto desejado e clandestino, que é muito diferente de um aborto indesejado ou de um aborto realizado numa clínica. “Não existe verdade inferior”, diz Annie. E quanta verdade há no que ela escreve. Uma das epígrafes do livro, emprestada de Yuko Tsushima, diz: “Talvez a memória não seja mais do que olhar as coisas até o limite”. Poucos escritores olham as coisas até o limite com a verdade e a crueza de Annie Ernaux. Corte preciso e afiado, sua escrita nos deixa diante do feto morto com um grande espanto: “Choramos silenciosamente. É uma cena sem nome, a vida e a morte ao mesmo tempo. Uma cena de sacrifício”.
Para além da moral, do interdito e da lei, Annie narra “uma experiência vivida de um extremo a outro pelo corpo”. Faz algo que os romances até então não faziam: fornece detalhes a respeito de um aborto clandestino. Nos seus diários da época, ela observa que não encontrava na literatura nada que a amparasse, nenhuma descrição na qual pudesse se reconhecer: “Entre o momento em que a moça descobria estar grávida e aquele em que não estava mais, havia uma elipse”.
Annie preenche esse hiato, com uma narrativa que, ao dizer as coisas, mostra como elas são; ao mostrá-las, torna-as um acontecimento; e, por fim, ao torná-las um acontecimento, expande-as do subjetivo para o social, fazendo uma ligação entre o privado e a política. O Estado que proíbe o aborto interfere diretamente no corpo das mulheres, no corpo daquela mulher específica, Annie Ernaux, levando-a muito perto da morte. Mas o movimento também funciona ao revés: ao visitar a “fazedora de anjos”, o corpo de Annie Ernaux burla a lei, toma uma decisão contra o Estado, sobrevive a ele e grita: Quem é dona do meu corpo sou eu. Não importa que ainda demore uma década para ser ouvida.
Quando as mudanças acontecem é porque há muitas vozes clamando por elas. Em outro parêntese da narrativa, Annie Ernaux afirma: “(Se eu tivesse de representar por um único quadro esse acontecimento da minha vida, pintaria uma mesa pequena encostada na parede, coberta de fórmica, com uma bacia esmaltada onde flutua uma sonda vermelha. Ligeiramente à direita, uma escova de cabelo. Não creio que exista um Ateliê da fazedora de anjos em nenhum museu do mundo.)” Um ano antes, bem perto dela, a pintora portuguesa Paula Rego havia feito uma série de dez pastéis de abortos clandestinos, logo após o referendo sobre a despenalização do aborto em Portugal.
São imagens fortíssimas (vale uma busca na internet) de mulheres que se contorcem em camas, bancos, no chão, com bacias ao lado, em pequenos quartos de “fazedoras de anjos”. Depois dessa série, Paula Rego fez ainda uma série de águas-fortes sobre o tema, como forma de contestar o alto índice de abstenção durante o referendo de 1998. Ela contava das mulheres pobres que lhe pediam dinheiro para abortar na época que vivia na Ericeira, em Portugal, e de outras, que vagueavam na praia com as entranhas de fora.
Histórias que não apareciam nos romances começavam a ser narradas. Imagens que não figuravam nos museus começavam a ser retratadas. Mais uma vez: “Não existe verdade inferior”. Ao sair de um médico que a ajuda, mas não a ajuda definitivamente, pois não quer correr o risco de ser preso, então apenas lhe receita penicilina, para diminuir os riscos de infecção após o aborto, Annie observa: “Não pronunciamos nenhuma vez a palavra aborto, nem ele nem eu. Era uma coisa que não tinha lugar na linguagem”.
É verdade, não tinha. Mas quando, naquele mês de outubro de 1963, Annie Duchesne decidiu rasgar o documento que anunciava o parto previsto para o dia 8 de julho de 1964, deu lugar ao nascimento de Annie Ernaux. E foi Ernaux quem cavou na linguagem um lugar para palavras como esta: aborto.
* Tatiana Salem Levy é escritora, doutora em letras e roteirista. Publicou os romances “A Chave de Casa” (Prêmio São Paulo de Literatura), “Dois Rios” e “Paraíso”
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/tatiana-salem-levy-bastidores-de-um-aborto-clandestino.ghtml 25/02/2022
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