Filósofo, palestrante e autor best-seller, Mario Sergio Cortella fala sobre como a amizade nos torna vivos, de seu caráter irracional e como ela pode nos dar trabalho
Isabelle Moreira Lima 30 de Janeiro de 2022
Ter amigos é fundamental para encontrar sentido na existência. A amizade tem a capacidade de nos tornar mais humanos, mais vivos. Mas isso não quer dizer que as relações de amizade são fáceis ou que estejam “prontas”. Elas dão trabalho e é preciso também lutar por elas, fazer por merecer, se esforçar. E, se for preciso, vale até entrar nas temidas DRs. Se a coisa degringolar e a amizade acabar, talvez ela nunca tenha existido.
A visão acima é de Mario Sergio Cortella, filósofo, palestrante, professor e fenômeno literário com mais de 20 livros publicados, a maioria best-sellers das prateleiras de filosofia, bem-estar, autoajuda, educação e atualidades. Entre os mais recentes, estão os volumes editados pela Planeta “Quem Sabe Faz a Hora” (2021), de negócios; e “Ainda Dá” (2020) e “Felicidade Modos de Usar” (2019), ambos de filosofia, sendo o último em coautoria com Leandro Karnal e Luiz Felipe Pondé, que juntos ficaram conhecidos como o trio mais pop da filosofia no país.
Em conversa com Gama, Cortella conta como se tornou mais seletivo sobre os amigos aos 68 anos de idade, da irracionalidade desse tipo de relação — pense aí se você não tem um amigo que só traz b.o., mas mesmo assim vocês não desiste dele — ; do desgaste do conceito de “amigo” — afinal, temos milhares de amigos como dizem as redes sociais? –; e do lugar da amizade no mercado de trabalho, no envelhecimento e na filosofia. “Como lembrava Aristóteles, amizade é a existência de dois corpos com uma única alma, com seus modos e tempos, não é única na maneira de expressão”, afirma.
O filósofo lembra também que nem a morte nos leva os amigos de verdade, que ficam sempre conosco, até o fim. “Drummond dizia isso: ‘Do lado esquerdo carrego meus mortos. Por isso caminho um pouco de banda’. Não tenho só amigos e amigas que estão vivos, tenho vários deles que já se foram e que continuam comigo, em vários momentos tenho desejos de conversar, e converso como se ela ou ele cá estivesse. Tenho o hábito de, toda vez que tomo uma taça ou uma dose de cachaça, levanto o copo e brindo a meus amigos que morreram”, afirma na entrevista que você lê abaixo.
Não conheço ninguém que tenha de fato mais do que 10, 12 amigos. Tem conhecidos, colegas
- G |Na pandemia, durante muito tempo, ficamos longe dos amigos. Tem gente que depois de quase dois anos ainda não se reencontrou. Qual a importância da amizade nesses tempos de crise?
Mario Sergio Cortella |A amizade recusa o abandono, o isolamento; é uma forma de se distanciar da sensação de estar sozinho. É uma maneira de ter um adensamento da nossa vitalidade, da presença, do sentido, do pertencimento. Por isso, embora a tecnologia tenha criado de maneira emergencial modos de contato, existe uma corporeidade na amizade, que é do abraço, do toque, do olho no olho, que tem uma importância. A distância no tempo de encontro em si não tem tanta relevância porque qualquer um tem amigos que não se encontram em cinco ou dez anos e, ao se reencontrar, é como se fizesse pouco tempo. A amizade cria um vínculo que não está ligado à temporalidade da medição do tempo. Nesse sentido, o momento pandêmico não anulou o que nutre a amizade. Uma das coisas mais bonitas da literatura são as correspondências de escritores e escritoras, que fazem esse tipo de grude que permite a continuidade da relação.
- G |Por outro lado, novas amizades acabaram surgindo, surgiram novos arranjos nesses dois anos, clubes de livro, novos apps, encontros online. Por que temos a necessidade de fazer novas amizades?
MSC |Minha mãe Nívea, de 93 anos, me ligou e disse “filho, vem aqui em casa, quero te apresentar uma amiga minha” e eu disse “mãe, obrigado, eu já conheço muita gente, não dou conta nem de quem conheço”. E ela ri bastante disso sempre por uma razão: a renovação dos nossos laços e afetos, ou a agregação deles, é muito forte para nós. Nos dá percepção de vida. Por outro lado, não podemos confundir amigos, colegas e conhecidos. Usa-se a palavra amizade com muita facilidade, há uma certa leviandade no uso da expressão amigo ou amiga. Afinal de contas, não temos tantos amigos na vida: eles são aqueles que nos acompanham independentemente das molduras que estão à nossa volta. Não conheço ninguém que tenha de fato mais do que 10, 12 amigos. Tem conhecidos, colegas, mas amizade, como lembrava Aristóteles, é a existência de dois corpos com uma única alma, com seus modos e tempos, não é única na maneira de expressão. Procuramos encontrar outras aberturas nesse campo, ampliar nossos territórios de afeto. Mas isso não é algo de sempre, há um momento na vida que ter muitos amigos ou amigas é um sinal de relevância e depois há uma seletividade mais extensa. Eu, que vou fazer 68 anos, vou selecionando cada vez mais quais são as pessoas que de fato são minhas amigas e amigos, já que não tenho todo o tempo do mundo, preciso ser seletivo nessa convivência afetiva para que não desperdice essa energia tão bela que a amizade produz.
- G |Por que existe essa leviandade?
MSC |Faz parte até do modo vocabular. Queremos criar intimidades que são protetivas. Se usa no Brasil, “e aí meu irmão!”, uma parte dos jovens usa “e aí velho!”. Essa percepção de intimidade nos dá a ideia de que somos agregados a um grupo e esse grupo se protege e convive sem tantas arestas. Isso não é uma leviandade negativa, mas é um modo de inclusão para não ficar sozinho nas coisas. Com relação à palavra amigo, o mundo digital trouxe uma adjetivação muito forte nesse ponto. Aquilo que alguns chamariam de contatos, em outros momentos são chamados de amigos. Eu tenho 15 milhões de seguidores nas redes, 7 milhões no Instagram, 4 milhões no Facebook, não posso chamar essas pessoas de amigas ou amigos porque isso não seria afetivo – amizade exige dedicação, conexão, disponibilidade que é muito diferente do que tenho com alguém cujo contato seja eventual. Parte das pessoas chamam de amigo ou amiga outras com quem tem uma relação superficial, como passar por um pedágio. O uso da palavra amigo sofre um esvaziamento vocabular, mas isso parte do modo como o idioma vive.
Amizades que se supõem que existiam e, por conta da polarização, foram rompidas não eram amizades
G |A polarização política e ideológica tem afastado muita gente. É possível refazer esses laços?
MSC |Gosto muito de uma frase que uso há bastante tempo, que é “quando se usa a expressão ‘eu tive um amigo’, então não teve”. A ideia do amigo ou amiga não permite que eu fique no pretérito, é muito mais um gerúndio. Na amizade a gente vai gerundiar, criando esse termo com todo respeito a Guimarães Rosa e Manoel de Barros. Amizades que se supõem que existiam e, por conta da polarização, foram rompidas não eram amizade. Eu tenho pessoas que são de fato minhas amigas e amigos, que nem sempre têm uma convicção política, ideológica, religiosa, futebolística que seja idêntica a minha, e a amizade ultrapassa essa circunstância. Dizer que deixei de ser amigo de alguém porque essa pessoa tem uma ideologia diversa da minha, essa amizade talvez fosse mais um conhecimento, uma convivência. Uma das coisas boas da amizade é que ela é marcada por certa irracionalidade, as pessoas são nossas amigas e pensamos “como suporto essa pessoa na minha vida?”, uma pessoa que dá trabalho e tá sempre encrencando, mas você não larga. Não há uma lógica cartesiana, que não se aplica a essa percepção da amizade. É provável que seja muito mais Pascal, que convive um pouquinho no tempo do Descartes ao dizer que o coração tem razões que a própria razão desconhece. Em algumas amizades que mantemos, nos perguntamos como fomos entrar nessa. Mas se a pessoa te ligar às 3 da manhã, isso é amizade. Você não vai atrás do apoio e do auxílio por profissão, a amizade é pela gratuidade. Você ajuda com a certeza nítida que vai se arrepender, que vai ser desastroso, que vai se xingar e perguntar por que atendeu o telefone mas não consegue não atender. Essa é a beleza que a amizade carrega.
- G |Sempre vale a pena brigar por uma amizade? Ou tem algum momento que vale a pena deixar de ser amigos?
MSC |Amizade dá trabalho, não dá para ter uma amizade que seja uma carga leve. A amizade, tal como a parentalidade, como a responsabilidade sobre outras pessoas, é marcada por aquilo que o grande Antoine de Saint-Exupéry escreveu em “O Pequeno Príncipe”: “Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas”. O uso do verbo cativar está em um sentido duplo, cativar como sedução e também como aprisionamento. Uma amizade que não exija luta pode enfraquecer ao ponto de se esvair. O maior distanciamento não é o distanciamento físico ou temporal, é o distanciamento de almas, isso que leva não quando uma pessoa pensa diferentemente de mim, mas quando ela me trai. A amizade não admite a traição; o amor admite, a paixão também. Mas a traição e a ingratidão são elementos que não cabem no conceito de amizade. Todas as vezes que notei que aconteceram rupturas de amizades, se deveram à ingratidão ou àquilo que se chama de oportunismo: pessoas que te coisificam e portanto não sustentam uma amizade autêntica. A amizade exige autenticidade. Eu posso ser de um jeito que você não gosta, mas fica nítido que sou assim para que você possa escolher se continua ou não, sem dissimulação.
- G |É possível reconhecer, por exemplo, que aquela amizade que fazia sentido na época do colégio não faz mais hoje e desapegar?
MSC |A amizade é sintonia de princípios, de partilha do tempo, de interesses, mas eles se modificam. Os tempos, os interesses, e aquilo que é a sintonia. Isso significa que algumas amizades mantenho há 62 anos, com as primeiras memórias dos meus seis anos de idade; outras, que eram pessoas inseparáveis, deixaram de sê-lo. Nesse sentido, talvez o laço de amizade ali fosse muito mais circunstancial. No mundo digital, principalmente quando o Facebook veio à tona e antes o Orkut, a possibilidade das pessoas se encontrarem e marcarem jantares gerou um encontro ou dois porque elas não têm assunto. A pessoa que vai, na maioria das vezes, está em busca dela mesma aos 14 anos, e não de alguém que com ela estava aos 14. Os chineses dizem que você nunca deve voltar ao lugar onde foi feliz um dia, porque isso vai te entristecer, dado que você não vai se encontrar nesse lugar, já que não é mais aquele tempo. Nesse sentido, é aceitável que a circunstancialidade das relações sofra alterações na memória. Mas as rotas são múltiplas e a vida tem suas diferenças: para outras pessoas basta um dez minutos de conversa para que o sentimento se reconecte. Existe uma carga rápida, como acontece com as baterias de celulares.
- G |Como lidar com os ciúmes de amigos?
MSC |É o pior ciúme que tem, a suposição de que há uma exclusividade, que não é nem fidelidade, porque não se mantém uma fidelidade como entendemos em relações de amor mais intenso, mas é uma noção de propriedade. A minha amiga, o meu amigo; o uso do pronome possessivo não é casual, tem um sentido muito forte. E nesse sentido, o pior inimigo é o muito amigo do meu amigo. Em uma guerra civil, Julio César entrou em confronto e assassinou seu genro Pompeu, que era casado com sua filha. César disse uma das frases mais inteligentes que já vi. “O pior inimigo é aquele que já foi amigo”, porque ele te conhece e consegue capturar as fragilidades e inseguranças. A ideia do ciúme e da posse em amizades é muito mais denso. A expressão que não tem tanto a ver com propriedade mas com hábito, minha esposa, esposo, namorada e namorado, é mais leve do que o meu amigo. Nessa hora, o pronome possessivo não é cheio de algodão, é cheio de mercúrio.
- G |Mas vale a pena se engajar em discussões de relacionamento com amigos?
MSC |Se há uma coisa que caracteriza a amizade é que em vários momentos dessa trajetória a ruptura esteve iminente. Os grandes amigos e amigas que tenho são pessoas com quem me aproximei do precipício, os dois juntos, como Thelma e Louise. Grandes batalhas costumam gerar ligações quando ambos sobrevivem. Por isso, claro, é desagradável manter uma DR com amigo ou amigo, é chato porque DR é chato, mas é chata por si mesma. Independentemente se é com amigo, professora, afetos. A pessoa amiga é aquela que discorda de você. Quem concorda o tempo todo não tem interesse nem respeito por você. A pessoa que quer o teu bem e que você seja melhor do que é, discorda das coisas que não são concordáveis. Nesse sentido, a amizade não é agente do atrito, mas o entendimento de que o conflito degenera em um confronto, de que a divergência caminha para a disrupção.
A filosofia hoje nos diz: seja amigo ou amiga, mas mereça a amizade que tem
- G |Qual é o lugar da amizade no ambiente de trabalho?
MSC |Varia muito da pessoa e de como a amizade é, existe diferença entre amizade e intimidade. Tenho exemplo disso na minha atividade, sou professor há 38 anos e em vários momentos do meu trabalho mantive relações de amizade com alunas e alunos. A minha profissão e o modo de exercício dela não permite que tenha intimidade, que ultrapassasse a fronteira daquilo que uma relação onde tenho responsabilidade pelo processo pedagógico que ela está. No local de trabalho a intimidade entre duas pessoas pode gerar formas de deslize em relação ao que precisa ser feito. Por isso a amizade não é recusável, mas precisa ser olhada de um modo a não romper com aquilo que é o ponto da hierarquia, o mau princípio é o mando pelo mando e o bom princípio é a hierarquia como realização da atividade. Não preciso gostar das pessoas com quem trabalho, mas preciso respeitá-las – gostar é um passo adicional. Fui secretário de educação em São Paulo no governo de Luíza Erundina [1991-1992], tenho alguns anos de admiração e afeto imenso, mas nunca a chamei de Luíza enquanto estava na atividade. Podia encontrar ela até em um sábado tomando uma taça de vinho com amigos e amigas, mas não só na frente dos outros, eu não fazia quando estava falando com ela. Parece um formalismo, mas é a necessidade de se criar algumas cautelas para que a arquitetura se mantenha bela.
- G |Qual a importância das amizades no envelhecimento?
MSC |Ter amigos e amigas é importante sempre porque lembra cada um que não somos estrelas solitárias, somos constelação; a vida é constelação. Algumas dessas estrelas das constelações onde estamos brilham mais ou menos; outras estão no tempo e dentro de nós, porque nossos amigos e amigas não são somente as pessoas com quem convivemos, algumas já se foram mas continuam com a gente. Drummond dizia isso, “Do lado esquerdo carrego meus mortos. Por isso caminho um pouco de banda”. Não tenho só amigos e amigas que estão vivos, tenho vários deles que já se foram e que continuam comigo, em vários momentos tenho desejos de conversar, e converso como se ela ou ele cá estivesse. Tenho o hábito de, toda vez que tomo uma taça ou uma dose de cachaça, levanto o copo e brindo a meus amigos que morreram.
- G |O que a filosofia nos ensina sobre a amizade que podemos trazer para o mundo de hoje?MSC |Não podemos trazer aquilo que é apenas superficial, que é epidérmico. Relações, para terem sentido, tem que ter uma profundidade maior. E essa profundidade não exige uma convivência contínua, mas exige insanidade nessa convivência. Portanto uma valorização que não seja oportunista. A filosofia carrega vários pensamentos e pessoas na história que ajudam a trilhar essa direção. No mundo de agora, a filosofia nos diria: seja amigo ou amiga, mas mereça a amizade que tem. E merecimento está ligado a esforço, a dedicação, a capacidade, autenticidade, assim vale. Do contrário é conhecido, coleguinha.
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