Armindo Oliveira
Sou do tempo em que as pessoas gostavam de ter animais em casa. E tinham-nos com toda a naturalidade. Sem excessos de “carinhos” e sem lamechices. Tinham canários e piriquitos de várias cores. Porcos nas pocilgas e galinhas nas capoeiras ou soltas nos quintais. Tinham pombos, rolas e coelhos. Tinham cães. Uns rafeiros, outros de raças atravessadas, outros ainda de marca e de portes mais avantajados, que serviam de companhia, de guarda e até de caça. Os gatos eram presença habitual nas imediações das casas para apanhar alguns roedores que invadiam abusivamente os domínios dos donos. Tinham os gatos, contudo, um acesso privilegiado às próprias casas. Pessoas e animais conviviam sem ocupar os espaços uns dos outros. Cada um no seu lugar. Nada de confusões. O que não havia nessa relação era a histeria que agora se vê e comportamentos mais díspares e inverosímeis.
1 – Sou do tempo em que os cães tinham nomes de cães. Era o Pirata, o Nero, o Bolinhas e outros do género. Não tinham nomes nobiliárquicos, nem de cristãos. Os gatos eram todos bichanos. Era um regalo ver os cães e gatos, meios “vadios” a passear livremente pelos espaços das casas. Uns e outros iam conhecendo aos poucos o lugar que ocupavam. Não havia misturas. Um cão era tratado como um cão e um gato como um gato. Não era mais do que isso.
2 – Agora, chegou-se praticamente ao limite das confusões. Compram-se canídeos e gatídeos por boas maquias. E depois vêm as exigências burocráticas por arrasto: os donos são obrigados a proceder ao registo dos seus animais e tirar as licenças anuais respectivas. É ainda exigido a identificação electrónica, o boletim sanitário e o documento comprovativo de actos de profilaxia médica anuais As raças potencialmente perigosos obrigam a seguro de responsabilidade civil, registo criminal do dono e um termo de responsabilidade. Tudo isto somado, pesa bem no orçamento familiar e ainda tem que se acrescentar a alimentação necessária que requer uma dieta sempre adequada. Comida caseira, nem pensar. Estraga o pêlo.
3 – O cão, agora, é o “Francisco” e o gato é o “Tomás”. Cães e gatos são tratados como gente. São animais que vivem dentro das portas e com muitas mordomias. “Dormem” com os donos, lambem as bocas dos donos, tomam banho regularmente com produtos de qualidade e específicos com os donos, são vestidos como gente, são penteados e vão ao veterinário com frequência. Até o cheiro que deixam na casa a tresandar a nojo e tantas outras “coisas impróprias”, que espalham pelos aposentos, pouco importa. É assimilável e há produtos corta-cheiros. Isto em tempos era, simplesmente, impensável. E como cereja em cima do bolo, até por causa do stress canino, os donos arranjam sempre tempo para os ir passear e fazem-no praticamente todos os dias. Passear e dar atenção aos seus próprios filhos já não é bem assim. Hoje, os animais têm um estatuto cimeiro nas preocupações das famílias.
4 – Há bem pouco tempo, presenciei uma cena que espelha bem esta relação “promíscua” entre pessoas e animais.
Numa esplanada, na Póvoa de Varzim, um cão “minorca”, tipo paxá, daqueles com olhar esguio, cheio de nervo e de pêlo bem escovado está deitado pachorrento no deque. O casal, dono do cão, lancha distraidamente. Aproxima-se um outro casal com um cão na trela com algum porte. De imediato, a senhora que está sentada a lanchar, fica preocupadíssima. Agita-se, tacteia debaixo da mesa e segrega qualquer coisa imperceptível ao ouvido do companheiro e, a custo, consegue pegar no “minorca”. Finda a operação de resgate, encosta-o ao peito, afagando-o e dizendo já com todo o conforto do mundo: “Anda cá à mamã!”
E eu, na cena, sorrio. E desabafo: “Como é maravilhosa a vida de um cão…”.
*Colunista do Jornal português Diário do Minho /Portugal
Fonte: https://diariodominho.sapo.pt/2022/02/13/caes-e-gatos-uma-nova-relacao-domestica/
Imagem da Internet
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