Camilo Martins de Oliveira*
Valerá a pena debruçarmo-nos sobre a história de Deus nas culturas dos homens antes de Cristo, a saga da Revelação, o percurso a que um agnóstico, Régis Debray, chamou itinerário de Deus. Ou, ainda, procurarmos, noutras tradições do pensamento e da fé, raízes espirituais, frutos e concordâncias do Cristianismo e do Ocidente cristão. Fá-lo-emos, à procura de pilares e pontes para o diálogo entre civilizações e culturas, com que teremos, sob ameaça de confrontos violentos, de responder a um tempo-mundo em que comunicações e migrações nos põem, todos os dias, em casa uns dos outros. Falámos da identidade cristã de Europa, olhemos agora para o enraizamento da cristandade europeia.
O Cristianismo, enquanto religião do Deus incarnado no homem e na história, nesta tem as suas múltiplas raízes. Num estudo sucinto, notável pela erudição e pela profundidade da análise ("Jésus l´Héritier - Histoire d´un métissage culturel"), Christian Elleboode, professor na Universidade Católica de Lille, parte à descoberta das raízes do cristianismo na história dos homens. Do animismo primitivo aos deuses das civilizações da agro-pastorícia, do Egipto e da Mesopotâmia à Pérsia e ao monoteísmo israelita, onde nasce, como herança e antítese, o Deus da misericórdia e do amor universal que Cristo incarna e apregoa, há todo um caminho de revelação da transcendência pela imanência.
Ao fim do percurso, uma conclusão: "Crente ou incréu, judeu ou cristão, é fundamental, para que haja diálogo, romper com a obsessão da procura do aspeto original de cada religião, reconhecer as suas dívidas culturais e aceitar finalmente a mestiçagem como um fenómeno que em nada altera a identidade dos indivíduos. Pelo contrário, é a ideia de pureza original que confunde as pistas e se torna fonte de conflitos. Hoje, num mundo mais global, em que os valores cristãos se encontram em diáspora e, simultaneamente, interrogados e contestados em sua casa, quer pela imigração de outras gentes, credos e culturas, na "nossa" Europa, quer sobretudo pelo materialismo e o economicismo consumista e ganancioso que o próprio "Ocidente" gerou, devemos refletir sobre as raízes espirituais da Europa e sobre a fidelidade como condição do diálogo. Não falamos de negociação nem de relativismo: não se trata de uma possível troca de valores, trata-se de um esforço comum na procura de um sentido da história e para o futuro. Ou do que, para um crente, é a comunhão dos homens no universo de Deus. Quando, ao esbofetearem-me a direita, eu ofereço a esquerda, não me submeto, mas interrogo: se disse ou fiz mal, diz-me o quê; se não, porque me bates? O diálogo e o entendimento são exercícios difíceis, só possíveis a prazo, onde seguem a fé e a esperança, e se constroem, dia a dia, pela fidelidade do amor.
Situam-se numa perspetiva diametralmente oposta à das relações "líquidas" que Zygmunt Bauman aponta como causa de precaridade. Interrogar o outro, o diferente, é necessariamente interrogar-me também, e à minha diferença. Para o incréu, é um imperativo da dúvida sistemática. Para o crente, um imperativo da humildade: se Deus me revelou assim a verdade, como e porquê a terá frustrado a outros? Ou será que, no itinerário da sua revelação, Deus foi abrindo outros caminhos, para que os homens de boa vontade, que são a sua glória, na encruzilhada se reconheçam? Afinal, o que nos une? Tudo o que Deus semeou ou só a nossa semente contra a dos outros? A rutura do Deus de Jesus Cristo com o Deus de Israel antigo é clara: quem são os meus irmãos, o meu pai, a minha mãe? Não é a minha família ou nação que os define, são os que me seguem no amor universal. E S. Paulo dirá que não há escravo nem homem livre, homem nem mulher... Contra todos os fundamentalismos, inclusive os nossos.
*Escritor português
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/contra-os-fundamentalismos-1216589
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