Faustino Teixeira*
16 Fevereiro 2022
"Os humanos encontram-se diante de uma séria
questão: decidir a favor ou contra a auto-extinção da espécie. O olhar de Ailton
Krenak sobre o tempo atual é bem realista. Reconhece que nos últimos tempos
o que se observa é uma crise contínua. Estamos diante de um despencar
ininterrupto, de uma carência absurda de reverência para com a casa
comum".
"Como diz Francisco, 'as previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia'”.
Eis o artigo.
Tenho percebido a grande dificuldade das pessoas em enfrentar com coragem a
grave questão do novo regime climático
e com o horizonte sombrio que se anuncia para as novas gerações. Verifico que
muitos tendem a relativizar a questão buscando viver o presente. São aqueles
que estão mais ancorados no momento presente e que preferem não antecipar
problemas que irão ocorrer nas próximas décadas. É uma forma psíquica de defesa
diante de uma situação que pode acirrar ainda mais as fragilidades psíquicas e
acabar provocando a obstrução de projetos de futuro.
Constato ainda que aqueles que se debruçam atentamente sobre a questão acabam
acalentando uma melancolia que é problemática. Isso me faz lembrar as
advertências tecidas em tempos atrás por Christopher Lasch (1932-1994)
no seu clássico livro, A cultura do narcisismo (1979). Diante dos
riscos, as pessoas tendem a se fechar no “mínimo eu” para resguardar aquele
circuito pessoal que mantém acesas as convicções essenciais para manter o mundo
de pé.
Independente disso, sabemos que estamos diante de um horizonte ameaçador. Os
sinais estão por todo canto, anunciando um futuro bem difícil para os que estão
por vir. Em sua encíclica Laudato si, sobre o cuidado
da casa comum, papa Francisco faz uma virulenta crítica ao “crescimento
infinito ou ilimitado” que marca nosso tempo do Antropoceno. Com ele, a
afirmação de um grave “paradigma tecnocrático” que não revela nada de agradável
para os tempos vindouros. Como diz Francisco, “as previsões
catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia” (1).
A mesma impressão fica gravada naqueles que leram o livro de Déborah
Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, Há mundo por vir? (2)
Aquela sensação de desamparo diante de um tempo ameaçador. Como dizem os
autores, já rompemos a zona de segurança em três processos: a taxa da perda da
diversidade, a interferência humana no ciclo de nitrogênio (a taxa com o N2 é
removido da atmosfera e convertido em nitrogênio reativo para uso humano,
principalmente como fertilizante) e as mudanças climáticas”. E agora avançamos
para novos limites, relacionados com o uso da água doce, de mudança no uso da
terra e da acidificação dos oceanos (3) .
Diante de um futuro incerto recolhemos as previsões lúcidas e não infundadas de
cosmologias antigas, sobretudo dos povos originários, a respeito de inquietudes
impressionantes. No prefácio do livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert,
A queda do céu (4), Eduardo Viveiros de Castro adverte-nos sobre
a importância de levar realmente a sério o que expressam os indígenas na sua
cosmovisão (5). O xamã Davi Kopenawa fala do clima de amizade que sempre
acompanhou a relação dos índios com a floresta e do risco que hoje se
apresenta, com a consciência de que “a floresta não é infinita”. Ele sublinha:
“Agora sei que se os brancos continuarem avançando, vão fazê-la
desaparecer bem depressa. Já estão dizendo que ela é grande demais para nós”
(6) .
Na mesma direção, o pessimismo de Ailton Krenak, outra grande
liderança indígena brasileira. Seu pensamento vem expresso em dois livros
recentemente publicados: Ideias para adiar o fim do mundo e A vida
não é útil (7). O que se anuncia é preocupante: um “nós sem mundo” ou ainda
uma tremenda dificuldade de “aterrar” no mundo que está aí. Adverte Krenak:
“Quantas Terras essa gente precisa consumir até entender que está no caminho
errado” (8) . Os humanos encontram-se diante de uma séria questão: decidir a
favor ou contra a autoextinção da espécie (9). O seu olhar sobre o tempo atual
é bem realista. Reconhece que nos últimos tempos o que se observa é uma crise
contínua. Estamos diante de um despencar ininterrupto, de uma carência absurda
de reverência para com a casa comum (10) .
Em suas recentes reflexões, Bruno Latour fala
dos “climato-quietistas”, ou seja, daqueles que tendem a negar a situação
difícil em que nos encontramos, de um negacionismo que torna as pessoas
impassíveis diante do que vem, como pudemos igualmente observar no filme de Adam
McKay, Don´t look up (Não
olhe para cima), que é na verdade um mantra do negacionismo.
Num ciclo de seis conferências dadas por Bruno Latour em 2013, a convite
do comitê das Gifford Lectures, ele desenvolve com pertinência sua
reflexão sobre o Novo regime climático e todas as suas consequências. As
conferências foram depois remanejadas, amplificadas e reescritas, tendo como
resultado a preciosa obra Diante de Gaia (11)
.
Nessa obra, Latour nos coloca diante da inevitável questão: como
sobreviver no tempo atual? Como aterrar em nosso tempo sombrio, aprendendo “a
sobreviver sem se deixar levar pela denegação, pela hybris, pela
depressão, pela esperança de uma solução razoável ou pela fuga para o deserto”
(12). Para o autor, não há como fugir da realidade, “não existe cura para o
pertencimento ao mundo. Mas, pelo cuidado, é possível se curar da crença de que
não se pertence ao mundo” (13). Não existe possibilidade de “sair disso”, como
diz Latour. Nesse caso, o próprio significado da palavra “esperança” vem
redimensionado com o anteparo de um horizonte nublado. Há que saber “lidar com
isso”, encontrando novos percursos de cuidados, “mas sem pretender uma cura
muito rápida”. Um caminho possível é buscar com todos os recursos disponíveis
“repensar a ideia de progresso” e retrogredir. O autor fala em “apostar no
menor dos males” ou ainda, “viver bem com seus males”. Em outra obra, Latour
fala em criar “gestos barreira” capazes de interromper o ritmo alucinante da
globalização (14). Outros falam em afirmar uma “ecologia política do
ralentamento (ralentissement) (15).
Recordo-me da entrevista concedida por Donna Haraway no Colóquio
Internacional – Os mil nomes de Gaia (2014) – e a reação de Eduardo Viveiros de Castro diante
do posicionamento da antropóloga em favor de uma saída inusitada: “habitar a
barriga do monstro” (16). Trata-se de algo semelhante ao que falou Latour,
ou seja, saber lidar com isso. Não há como escapar da realidade em que estamos
inseridos, no mundo em que vivemos. Em obra de 2016, Donna Haraway indica
que devemos aprender a “seguir com o problema”, ou seja, “de viver e morrer com
responsabilidade (respons-habilidade) numa terra danada” (17).
Em livro surpreendente, o filósofo Luiz Felipe Pondé fala dos dez
mandamentos e acrescenta um último, justamente em torno da esperança. Ele
confirma a possibilidade de uma esperança no mundo, desde que o ser humano
tenha a capacidade e a coragem de atravessar com lucidez o nihilismo. O novo
mandamento diz que é possível ter esperança no mundo, apesar de todas as
mazelas nele presentes. Reconhece, porém, que a razão mais forte da esperança
está na acolhida do Eterno, o único “capaz de aliviar as agonias da criatura”.
Sua pista está no desafio de viver o cotidiano acompanhado por Deus e não
apenas pelos desígnios da natureza (18). Para ele, “só existem duas formas de
ter uma verdadeira esperança no mundo: ou pela graça de Deus, que faz alguns de
nós termos fé no mundo, ou com a ajuda da coragem, irmã gêmea da esperança”
(19).
Notas
1.- Papa Francisco. Carta encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, n. 161.
2.- Déborah Danowski & Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis/São Paulo: Cultura e Barbárie/Instituto Socioambiental, 2014.
3.- Ibidem, p. 20-21.
4.- Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
5.- Ibidem, p. 15 e 35.
6.- Ibidem, p. 330.
7.- Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019; Id. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
8.- Ailton Krenak. A vida não é útil, p. 26.
9.- Ibidem, p. 58.
10.- Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo, p. 30-31.
11.- Bruno Latour. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: UBU, 2020.
12.- Ibidem, p. 31.
13.- Ibidem, p 31. Ver também: Rubem Akira Kuana. Tristes psicotrópicos: colapso climático, colapso mental. Cadernos PET Filosofia, v. 19, n. 1, 2021. Disponível aqui. (acesso em 08/02/2022).
14.- Bruno Latour. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p. 131.
15.- Déborah Danowski & Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? p. 148.
16.- Cf. Disponível aqui. (acesso em 08/02/2022).
17.- Donna Haraway. Seguir con el problema. Generar parentesco en el Chthuluceno. Bilbao: Consonni, 2019, p. 20.
18.- É o tema do filme de Terrence Malick: A árvore da vida (2011).
19.- Luiz Felipe Pondé. Os dez mandamentos (+ um). São Paulo: Três estrelas, 2015, p. 120.
*Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/616171-saber-lidar-com-o-desamparo-do-tempo-artigo-de-faustino-teixeira
Nenhum comentário:
Postar um comentário