Luiza Corrêa, Karolyne Ferreira e Gustavo Taniguti
O uso de recursos educacionais digitais se tornou parte do cotidiano das escolas públicas brasileiras. Devido a assimetrias nas condições de acesso às tecnologias, seu maior risco atual é aprofundar a já existente exclusão digital, gerando prejuízos educacionais e sociais. Em um futuro pós-pandêmico, seria possível reconstruir as redes de ensino de maneira mais inovadora, promovendo uma profunda mudança cultural que utilize as tecnologias como ferramentas inclusivas de ensino?
Essa é uma das questões presentes no estudo “Tecnologias digitais aplicadas à educação inclusiva”, realizado pelo Instituto Rodrigo Mendes em parceria com o Instituto Unibanco. Nele buscou-se investigar a oferta de recursos educacionais digitais no Brasil por diversos atores: poder público, empresas (big techs e startups), agências especializadas e organizações da sociedade civil.
O estudo identificou que, em escolas públicas de educação básica, as práticas pedagógicas mediadas por tecnologias trazem ganhos reais, mas em geral são incipientes e podem ser amplificadas. Há, ainda, uma escassez de soluções guiadas por premissas inclusivas desde a sua concepção, como recursos de acessibilidade incorporados e a valorização do processo individual de aprendizagem. A mudança dessa realidade encontra no DUA (Desenho Universal para a Aprendizagem) um caminho possível. Essa abordagem estimula o desenvolvimento de múltiplos métodos de apresentação de conteúdos curriculares, avaliações e formas de envolvimento. Um exemplo aplicado é o Clusive − uma ferramenta gratuita de leitura adaptativa desenvolvida pelo CISL (Centro de Software Inclusivo para Aprendizagem). Ao adaptar o nível de leitura às necessidades e competências do próprio estudante, a ferramenta permite que o professor discuta um só texto com a turma toda, independentemente de suas características individuais.
Uma videoaula se torna totalmente inacessível para uma estudante surda caso não tenha legendas e/ou janela de libras. É um momento oportuno para questionar a existência de barreiras de acesso às tecnologias adotadas em escolas
A adoção do ensino remoto em decorrência de restrições sanitárias em vigor durante a pandemia da covid-19 acelerou a oferta de soluções destinadas a professores e estudantes. Em pouco tempo, esse público se tornou usuário frequente de aplicativos, plataformas de comunicação, jogos didáticos, repositórios e ambientes de aprendizagem. Em contrapartida, dificuldades práticas que existem ao se transpor a sala de aula para o ambiente virtual foram amplamente reportadas por professores de todo o país. Sobretudo, constatou-se que nem todos os estudantes têm condições de dar continuidade a seus estudos remotamente.
A mais recente transformação digital brasileira na educação é permeada por uma carência generalizada de letramento digital e de conectividade. O problema é ainda mais grave no que diz respeito aos estudantes com deficiência, já que a maior parte das soluções tecnológicas adotadas não contempla recursos de acessibilidade. Uma videoaula, por exemplo, se torna totalmente inacessível para uma estudante surda caso não tenha legendas e/ou janela de libras. É um momento oportuno para questionar a existência de barreiras de acesso às tecnologias adotadas em escolas. Quais desafios existem para realizar a transição de soluções digitais nativas (born digital) para soluções acessíveis nativas (born accessible), pensadas para o uso de todos e todas?
As respostas não são simples, mas sabemos por onde começar. O ensino remoto exibiu as fissuras de uma sociedade fortemente marcada por desigualdades de ordem estrutural. Em um futuro breve, espera-se que indicadores de evasão e de aprendizagem nos informem a dimensão dos prejuízos educacionais, principalmente para os grupos sociais historicamente marginalizados, ou mesmo excluídos, do sistema educacional. Se hoje temos a chance de transformá-lo usando tecnologias, esforços podem ser direcionados para a ampliação de oportunidades em respeito à diversidade humana.
O uso de recursos educacionais digitais nas escolas é amplamente debatido no plano internacional há pelo menos 15 anos. Tratados, declarações e relatórios produzidos por agências especializadas têm incentivado governos do mundo todo a adotar políticas para o uso de tecnologias digitais com um objetivo claro: ampliar as chances de ensino e aprendizagem.
A Declaração de Paris sobre Recursos Educacionais Abertos (2012) recomenda aos Estados adotar materiais de ensino com licença aberta. A Declaração de Qingdao (2015) ressalta que as tecnologias digitais oferecem oportunidades sem precedentes para reduzir as desigualdades na aprendizagem. Já o Compromisso de Cali com a equidade e inclusão na educação (2019) recomenda a incorporação de tecnologias digitais em escolas com base nos princípios de equidade, diversidade e inclusão.
Recentemente, ao comentar o Relatório de Monitoramento da Educação Global (GEM) de 2020, Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), afirmou que a educação inclusiva deve ser um direito “não negociável” para todas as crianças.
Sob essa perspectiva, as diferenças humanas em sala de aula devem ser vistas como a força impulsionadora da escola. Há ganhos de aprendizagem em ambientes heterogêneos. Isso ocorre porque, em escolas inclusivas, estudantes e educadores podem desenvolver ao máximo seu potencial. Para tanto, é fundamental que os atores sociais envolvidos com os sistemas de ensino participem da transformação da cultura tecnológica. É sempre válido sublinhar que, em qualquer experiência educacional bem-sucedida, os educadores são personagens centrais, e por isso devem ser valorizados.
Nacionalmente, a Estratégia Brasileira para a Transformação Digital, lançada em 2018, já havia explicitado o interesse do Estado brasileiro no assunto. Todavia, até o momento não dispomos de uma estratégia própria e equitativa, que articule ensino e tecnologias. O mercado de tecnologias educacionais está em crescimento constante. Porém, no cenário geral muitas soluções ainda são concebidas sem a garantia de acessibilidade comunicacional, enquanto uma pequena parcela é direcionada exclusivamente para o público-alvo de estudantes com deficiência. Assim, ainda há grande espaço para estimular o desenvolvimento de produtos livres de barreiras de uso e de acesso por meio de políticas públicas verdadeiramente comprometidas.
Luiza Corrêa é coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes. Mestre e doutora em direito pela USP (Universidade de São Paulo) e especialista em desenho instrucional pelo Senac. Escreve a convite do CPTE (Centro de Pesquisa Transdisciplinar em Educação) do Instituto Unibanco.
Karolyne Ferreira é pesquisadora assistente do Instituto Rodrigo Mendes. Bacharel e licenciada em geografia e mestre em ciências pela USP (Universidade de São Paulo). Escreve a convite do CPTE (Centro de Pesquisa Transdisciplinar em Educação) do Instituto Unibanco.
Gustavo Taniguti é coordenador de pesquisas do Instituto Rodrigo Mendes. Mestre e doutor em sociologia pela USP (Universidade de São Paulo), realizou estágios de pesquisa nos Estados Unidos e na França e foi professor do IFMG (Instituto Federal de Minas Gerais). Escreve a convite do CPTE (Centro de Pesquisa Transdisciplinar em Educação) do Instituto Unibanco.
Nota:
Fonte: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2021/O-uso-de-tecnologias-digitais-na-educa%C3%A7%C3%A3o-b%C3%A1sica-e-o-debate-sobre-inclus%C3%A3o?utm_medium=Email&utm_campaign=selecaopp&utm_source=nexo
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