Crónica de Anselmo Borges*
O Deus bíblico é definitivamente um Deus moral: é o Deus que não esquece os vencidos.
A
razão iluminista tinha como desígnio a reconciliação e a emancipação
plena do Homem. Mas, de facto, sem esquecer evidentemente conquistas
irrecusáveis, como, por exemplo, as declarações dos direitos humanos nas
suas várias gerações, deparamos com duas guerras mundiais e as suas
muitas dezenas de milhões de mortos, o comunismo mundial e também os
seus milhões e milhões de vítimas, deparamos com Auschwitz e o gulag, o
fosso cada vez mais fundo entre a riqueza e a miséria, a Natureza
ferida, a desorientação e o vazio de sentido...
E,
desgraçadamente, sabemos que o número das vítimas não cessará de
aumentar, de tal modo que frequentemente a História nos aparece, como
temia Walter Benjamin, à maneira de um montão de ruínas que não deixa de
crescer. Mas, mesmo que fosse possível realizar no futuro uma sociedade
totalmente emancipada e reconciliada, nem assim, desde que iluminada
pela memória, a razão poderia dar-se por satisfeita, pois continuariam a
ouvir-se os gritos das vítimas inocentes, cujos direitos estão
pendentes, pois não prescrevem.
O
teólogo Johann Baptist Metz não se cansou de repetir, com razão, que só
conhecia uma categoria universal por excelência: a memoria passionis,
isto é, a memória do sofrimento. Se a História não há-de ser pura e
simplesmente a história dos vencedores, se a esperança tem de incluir a
todos, quem dará razão aos vencidos?
A
autoridade do sofrimento dos humilhados, dos destroçados, de todos
aqueles e aquelas a quem foi negada qualquer possibilidade é
ineliminável. Trata-se de uma autoridade que nada nem ninguém pode
apagar, a não ser que o sofrimento não passe de uma função ou preço a
pagar para o triunfo de uma totalidade impessoal. Mas precisamente o
sofrimento, que é sempre o meu sofrimento, o teu sofrimento, como a
morte é sempre a minha morte, a tua morte, é que nos individualiza,
dando-nos a consciência de sermos únicos, de tal modo que nenhum ser
humano pode ser dissolvido ou subsumido numa totalidade anónima, seja
ela a espécie, a história, uma classe, o Estado, a evolução... O
sofrimento revela o outro na sua alteridade, que nos interpela sem
limites.
Assim, se as vítimas têm
razão - a razão dos vencidos, como escreveu o filósofo Reyes Mate -,
com direitos vigentes que devem ser reconhecidos, não se poderá deixar
de colocar a questão de Deus, um Deus que as recorde uma a uma, pelo
nome, chamando-as à plenitude da Sua vida. "Essa é a pergunta da
filosofia", dizia Max Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt. Mas é
claro que para essa pergunta só a fé e a teologia têm resposta. Ele
próprio o reconheceu, ansiando pelo "totalmente Outro".
Se
a História do mundo tem uma orientação, ela só pode ser a liberdade.
Ser Homem, ser livre e ser digno identificam-se. Com razão, I. Kant não
se cansou de repetir que o respeito que devo aos outros ou que os outros
podem exigir de mim é o reconhecimento de uma dignidade, isto é, de um
valor que não tem preço. O que tem preço pode ser trocado: é meio. O
Homem não tem preço, mas dignidade, porque é fim em si mesmo.
Quando
nos interrogamos sobre o fundamento da dignidade do Homem,
encontramo-lo no seu ser pessoa. Pela liberdade, a pessoa está aberta ao
Infinito. Se se reflectir até à raiz, concluir-se-á que o fundamento
último dos direitos humanos é nesse estar referido estrutural do Homem
ao Infinito que reside: nessa relação constitutiva à questão do
Infinito, à questão de Deus precisamente enquanto questão
(independentemente da resposta, positiva ou negativa, que se lhe dê), o
Homem aparece como fim e já não como simples meio.
O
Homem é senhor de si, autopossui-se, e é capaz de entregar-se
generosamente a si próprio a alguém e por alguém. A Humanidade faz a
experiência de si como história de libertação para mais humanidade,
portanto, para mais liberdade. O Homem indigna-se desde o mais profundo
de si contra a indignidade, revolta-se contra toda a violação arbitrária
e impune da justiça e do direito, e é capaz de dar a vida pela
dignidade da humanidade em si próprio e nos outros seres humanos.
Houve
muitos homens e mulheres que, ao longo da História, livremente,
morreram por essa dignidade. Mas mesmo que tivesse havido apenas um a
fazê-lo, seria inevitável perguntar: o que é isso que vale mais do que a
vida física?
Precisamente aqui,
nesta experiência-limite, deparamos com o intolerável: como é que pode
ser moralmente admissível que quem é sumamente digno, pois se entrega
até ao sacrifício de si pela dignidade, morra, desapareça e apodreça,
vencido para sempre? Por isso, neste acto de suma dignidade, encontramos
um dos lugares em que a questão de Deus enquanto questão é
irrenunciável e irrecusável.
A
experiência do Deus bíblico surge essencialmente da experiência do
intolerável de as vítimas inocentes serem entregues para sempre à
injustiça. O Deus bíblico é definitivamente um Deus moral: é o Deus que
não esquece os vencidos.
Por
isso, a História não é um continuum, onde a razão estaria
permanentemente do lado dos vencedores. A História está aberta ao salto
último da meta-história, à Palavra definitiva que só Deus pode
pronunciar, Palavra que ressuscita os mortos e reconhece para sempre às
vítimas os seus direitos. Sem esse reconhecimento definitivo da
dignidade de todos, bem e mal, justiça e injustiça, honra e cinismo,
verdade e mentira, dignidade e indignidade, tudo é igual, pois, como
escreveu Bernhard Welte, tudo seria para nada, já que irá ser engolido
pelo nada para sempre.
*Padre e professor de Filosofia. no Diário de Notícias
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