Autora portuguesa Ana Teresa Pereira, de “Karen”, vencedor do prêmio Oceanos, explora em novo livro o sofrimento íntimo de Rebecca, a mulher inesquecível, personagem de Hitchcock
Mais conhecida aqui no Brasil como autora de “Karen” (Todavia, 2018), que consagrou a escritora como primeira mulher a vencer o prêmio Oceanos, o mais importante da literatura de língua portuguesa, Ana Teresa Pereira tem na verdade uma carreira bastante prolífica na literatura. No total, publicou mais de 40 títulos ao longo de três décadas, entre obras infantojuvenis, livros de contos e romances.
Em “O Verão Selvagem dos Teus Olhos”, publicado no ano de 2008 em Portugal, e que chega só agora em fevereiro às livrarias brasileiras, ela explora a aridez interna de Rebecca, personagem-título do romance de Daphne du Maurier e do filme clássico de Hitchcock. Assim, a escritora aproveita a solidão e desolação suntuosas da mansão Manderley, onde Rebecca é abandonada à própria sorte pelo marido, para falar da solidão e desolação nem tão suntuosas que ela sente, em meio à ruína dos sonhos românticos que vinha cultivando desde a infância.
Também uma pungente reflexão sobre o choque entre amor idealizado e a realidade dos relacionamentos, a obra apresenta a prosa contemplativa e econômica que marca o estilo da autora, além de uma acentuada preferência por atmosferas psicológicas densas, que desestabilizam os leitores. Sejam eles fãs ou não da obra de du Maurier e Hitchcock, trata-se de uma jornada dolorida, mas também bastante bela.
À noite, gosto de sentar-me no chão da biblioteca, entre a lareira e os cestos dos cães. Tenho a impressão de que os cães são sempre os mesmos, de que foi Jasper a acolher-me carinhosamente a primeira vez que vim a Manderley. Dois cães que morrem e voltam de novo, porque esta é a sua casa. Eu pensei em matá-los, antes do que aconteceu. Pelo menos a cadela cega. Mas agora vejo que não era importante, se lhe tivesse dado um tiro ela estaria aqui, no tapete ao meu lado, e Jasper sentiria a sua presença e aninhar-se-ia de encontro ao seu corpo.
Há
na biblioteca um pesado cheiro a flores, não sei se o estou a sentir ou
a recordar, mesmo quando as janelas ficavam abertas durante uma manhã
inteira o ar não se renovava, o cheiro a rosas e a lilases, a fumo de
cigarros e a livros velhos, talvez um pouco do meu perfume e da
água-de-colónia dele, o nosso
cheiro. Quando cheguei a Manderley o
meu perfume já pairava na casa, na biblioteca, e quase adivinhei o meu
vulto numa poltrona, perto da lareira, ou de pé, endireitando os lilases
numa jarra, há jarras de lilases por todo o lado, estamos em abril.
Lembro-me de que a nossa primeira recordação era a mesma, o cheiro dos lilases, as jarras de alabastro pesadas de lilases, como se tivéssemos crescido na mesma casa, como se tivéssemos brincado juntos, ele e eu. Nós somos feitos dessas coisas, a primeira recordação, o primeiro amor, os primeiros livros. Gostávamos de lilases e dos quadros de El Greco, e dos poemas de Stevenson. Mas não foi por esse motivo que ele se apaixonou por mim. Teve mais a ver com o corpo, com o rosto, com os meus olhos que o inquietavam, às vezes acho que ele casou comigo porque queria saber o que estava atrás dos meus olhos, eu era a sua América, a sua terra desconhecida. E eu…
Afinal, eu tinha aprendido nos romances de Jane Austen que as jovens muito bonitas e sem dinheiro encontram um Mr. Darcy ou um Mr. Knightley e são felizes para sempre
É estranho, mas acho que já tinha resolvido casar com ele naquele dia, quando saí da casa a correr, com um livro de Stevenson na mão e uma raiva enorme por ele me ter tratado como a uma criança, por não se aperceber de que eu era bonita. Afinal, eu tinha aprendido nos romances de Jane Austen que as jovens muito bonitas e sem dinheiro encontram um Mr. Darcy ou um Mr. Knightley e são felizes para sempre.
Não sei bem o que pensava naquele dia, quando me fui embora, e o meu pai conduziu o carro de volta para a nossa casa, mas lembro-me de que não fiquei surpreendida quando nos encontrámos em Madrid, se alguma coisa me surpreendeu foi não nos termos encontrado mais cedo, era tão certo, tão óbvio, que nos tínhamos de encontrar.
Encosto-me à parede e dobro as pernas, agora gosto de sentar-me no chão, o vestido a roçar o chão. Os cães deitaram-se nos seus cestos, a cadela cega e o cachorro de dois anos, preparam-se para dormir. Sentem-se felizes porque sabem que eu estou aqui, é estranho, agora durmo com os cães. Mas eu não durmo. Velo as brasas na lareira, o seu movimento suave, e os livros velhos fechados nas estantes, e sinto o cheiro pesado das rosas e dos lilases, e do fumo de cigarro, e da noite.
Por vezes passo a noite a ruminar velhas questões, aquelas em que pensamos desde a infância, de onde venho, para onde vou, quando começou o tempo, onde começa o coração, será que os anjos caídos sabem que caíram? Lembro-me de um actor dizer que só um anjo pode representar o papel do diabo, afinal o diabo é um anjo caído.
Eu sempre me senti uma estranha, como um anjo caído que não sabe muito bem onde está, nem qual é a sua natureza; ele é muito diferente dos que se movem à sua volta, e tem de fazer um esforço para passar despercebido. Uma questão de autodefesa.
E
já na altura me tranquilizava a minha imagem no espelho, com o fato de
montar a precisar de ser lavado ou um dos vestidos que o meu pai me
deixava escolher em Londres e faziam Danny, a governanta, franzir o
sobrolho; o cabelo puxado para trás e a cara suja de terra ou o cabelo
com pérolas entrançadas
e um pouco de maquilhagem, quase invisível.
Sempre senti uma certa perplexidade diante do mundo, das pessoas. Eu sempre amei, ferozmente, os animais e as plantas. Os meus cães e os meus cavalos, e o meu jardim. Mas acho que, exceptuando o meu pai, nunca gostei muito de pessoas.
Talvez, muito simplesmente, não as compreendesse. O que as fazia viver, o que as fazia correr. Acho que compreendia o meu pai, até porque me parecia com ele. O seu amor pelas casas, que tinha algo de religioso. A forma como conhecia os livros, por dentro; o pequeno desenho de Degas que guardava numa gaveta da secretária e via todas as noites. O seu afecto pelos cães e os cavalos, principalmente os que domava.
Mas, porque não compreendia as outras pessoas, e tinha de viver no meio delas, tornei-me uma actriz
Mas, porque não compreendia as outras pessoas, e tinha de viver no meio delas, tornei-me uma actriz.
Eu sempre gostei de teatro. O meu pai levava-me ao teatro, em Londres. Uma vez, passámos duas semanas em Stratford-upon-Avon, quando lá decorria um festival. E quase não perdíamos um filme: filmes russos, americanos, alemães, ingleses. Quando era miúda, sonhava vagamente ser actriz. Depois percebi que tinha mesmo de sê-lo, mas que só havia um papel para representar, o papel da minha vida, o papel de Rebecca. E a primeira vez que pensei nisso a ideia apaixonou-me totalmente, era tão bom como ser Hamlet, era melhor do que ser Hamlet, porque em mim não havia grandes indecisões, eu queria tirar da vida tudo o que ela pode oferecer.
Comecei a representar muito cedo. Nas festas que o meu pai dava por minha causa ou a que me deixava assistir. Ele comprava-me os vestidos que eu queria, e não dizia nada da maquilhagem quase imperceptível. E eu representava o papel de Rebecca, e dançava a noite inteira com rapazes, e fingia compreender os seus olhares e as suas palavras, e até mesmo os seus sentimentos.
No fundo, já actuava antes, quase inconscientemente, era uma questão de honra fazer com que as pessoas me adorassem, os parentes, as preceptoras, mesmo os criados. Acho que me dava um gozo enorme sentir-me adorada pelas pessoas que me eram indiferentes, ou por quem tinha até um certo desprezo. Mas também era cansativo. Representar cansa. E lavava a cara, como um actor que tira a maquilhagem.
Eu corria para o jardim, e assobiava a chamar os cães, e passava horas a cuidar das plantas, com um velho chapéu de palha e os livros de jardinagem ainda mais velhos.
E quando à noite me sentava na biblioteca com o meu pai, a lareira acesa, os cães deitados aos nossos pés, sonhava vagamente que um dia iria encontrar alguém, uma segunda pessoa por quem sentisse amor. Mr. Darcy, Mr. Knightley. Tinha de pôr de lado Mr. Wickham, não porque me assustasse o mau carácter, mas porque esse homem devia ter dinheiro, muito dinheiro.
A biblioteca da casa do meu pai era uma sombra desta onde estou agora, mais pequena, mais arejada, os livros estavam um pouco desarrumados e abriam-se por si, nas páginas que alguém relera muitas vezes. Duas jarras de flores. Lilases, nesta altura do ano.
Os cães estão a dormir profundamente, e só se ouvem os leves sons da noite, que não sei se vêm de dentro da casa ou do exterior. A noite é imensa, a noite é infindável, e aproximo-me mais dos cestos dos cães. A hora dos demónios já passou — a hora dos demónios é por volta das três da manhã, noite após noite, após noite.
Daqui a pouco a lareira estará apagada e uma luz suave entrará pela janela, ainda não o dia, mas algo que vem antes.
E eu a correr ao seu encontro, como se estes últimos anos não tivessem existido e fôssemos só um homem e uma mulher que gostam dos quadros de El Greco e sonham com os lilases da sua infância
E, como os cães, sentirei aquela alegria vaga perante o início de um novo dia, e depois ouvirei os ruídos da criadagem a levantar-se, das janelas a serem abertas, e, como os cães, sem saber que dia é, pensarei que é o dia da sua volta. O automóvel dele. A sua voz no vestíbulo. E os cães a correrem ao seu encontro. E eu a correr ao seu encontro, como se estes últimos anos não tivessem existido e fôssemos só um homem e uma mulher que gostam dos quadros de El Greco e sonham com os lilases da sua infância.
Mas por enquanto ainda é noite, a noite de que sempre gostei apaixonadamente, e, como os cães, procuro uma posição mais cómoda, para melhor esperar.
We lay my love and I beneath the weeping willow.
But now alone I lie and weep beside the tree.
Singing “Oh willow wally” by the tree that weeps with me.
Singing “Oh willow wally” till my lover returns to me.
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