A tese de Alencastro é que o Brasil colonial e Angola fazem parte do mesmo espaço social e econômico — Foto: Reprodução/Youtube
Para historiador, Brasil colonial e Angola fazem parte do mesmo espaço social e econômico
Por Helena Celestino — Para o Valor, de Nova York
18/02/2022 05h03
O olhar do historiador Luiz Felipe de Alencastro é treinado para desconstruir mitos. A história do Brasil contada por ele acaba com muitos dos atos heroicos que permeiam as aulas sobre o passado ensinado nas escolas. Ao tirar o tráfico negreiro do apagamento, ele redesenha a geopolítica da época do Brasil colonial e bota a barbárie da escravidão no centro da história do período colonial e da formação do povo brasileiro. Nessa sua releitura do passado, o historiador mostra, por exemplo, como o tráfico de escravizados foi uma das causas da independência do Brasil.
Ao se espalharem as notícias sobre o grito de independência ou morte de Dom Pedro I, que este ano completa dois séculos, começou uma negociação com os ingleses e as oligarquias escravocratas - os produtores de café e de cana de açúcar. A poderosa Inglaterra estava decidida a não reconhecer o novo país se a Coroa não acabasse com o tráfico negreiro, e fazendeiros brasileiros pressionavam para manter a mão de obra dos escravizados, fundamental em todos os ciclos econômicos da colônia.
“A chegada da Corte em 1808, junto com a administração régia e negociantes lisboetas que vêm em seguida, transferiu também para o Rio de Janeiro as redes do comércio português na Ásia e sobretudo na África. Houve, assim, também a interiorização do ultramar, uma apropriação de parte do ultramar colonial português pelo Rio de Janeiro que intensificou a exploração escravocrata e viabilizou em última instância a independência do Brasil”, diz.
A tese de Alencastro é de que o Brasil colonial e Angola fazem parte do mesmo espaço social e econômico. “O outro pulmão do Brasil ficava em Angola. Rio, Pernambuco e Bahia formavam um todo com Angola mais forte do que com a Amazônia”, diz.
Uma herança da infame escravidão é a violência que nos persegue. O professor lembra que a tortura de escravizados foi legal no Brasil até 1888 e, quando a Abolição ocorre, a polícia já se acostumara a bater nos pretos e nos brancos pobres.
“A tortura foi legal no Brasil até 1888 (...) Se o criminoso fosse escravo ele não iria para a cadeia (...) a pena era transformada em açoites”
“Esses mecanismos”, diz o historiador, “contaminaram a sociedade toda. A violência contra negros e brancos pobres dura até hoje e um dos exemplos mais recentes foi o linchamento de Moïse, o imigrante congolês. Ele é linchado num dos bairros mais ricos e diante de câmeras e policiais”, indigna-se.
Alencastro é um professor globalizado e um nômade digital. Dá aulas de história econômica na Faculdade de Economia de São Paulo da FGV, em Paris orienta teses na Sorbonne, universidade onde é professor emérito e, durante muito tempo, professor catedrático de história do Brasil. Foi na França que viveu seus anos de formação desde que a Universidade de Brasília empurrou-o para a saída durante a ditadura no Brasil. Além de conferências no Brasil e no exterior, Alencastro também é professor de um concorrido curso anual por Zoom, com 46 aulas sobre “História e cultura brasileira”, durante o qual o professor às vezes está em Paris e os alunos se conectam de Nova York, São Paulo, Rio ou do sul da Bahia.
Trechos de entrevista ao Valor:
Valor: O senhor diz que o tráfico de escravos foi uma das causas da independência. Por quê?
Luiz Felipe de Alencastro: O Brasil para ser um país independente tinha de ser reconhecido pelas potências europeias, no caso, pela potência dominante da época que era a Inglaterra. Toda independência só é “legalizada”, formalizada, se tiver o reconhecimento internacional. Na verdade, foi o governo bragantino do Rio de Janeiro que garantiu, pelo consentimento e pela violência, sua autoridade sobre toda a extensão da América portuguesa e promoveu a inserção do novo Estado no mundo. O Brasil era a única monarquia nas Américas, a corte estava aqui, os altos funcionários, diplomatas estavam aqui, e tudo isso dava trânsito internacional ao governo brasileiro. Mas o novo Estado tinha de se equilibrar entre duas forças, a pressão inglesa para acabar imediatamente com o tráfico de escravizados e a das oligarquias escravocratas brasileiras que queriam que a importação de africanos nunca acabasse. Naquela época a Inglaterra era a maior potência mundial, era ao mesmo tempo a ONU, porque garantia o reconhecimento internacional; o FMI, porque emprestava dinheiro ao governo; e a OIT, porque proibira a forma de escravismo baseada na importação contínua de africanos. Esse problema vai paralisar a política brasileira até 1850, quando efetivamente acaba o tráfico de africanos.
Valor: Como foi possível o tráfico durar tanto?
Alencastro: Após a chegada da notícia do Sete de Setembro, surgiram movimentos de adesão ao novo governo brasileiro entre os negreiros portugueses e luso-africanos de Ajudá, no reino do Daomé (atual Benin), das feitorias de Angola, Moçambique e sobretudo no porto de Benguela, no sul angolano cuja ligação com Rio de Janeiro era muito forte desde o inicio do século XVIII. Um dos pulmões do Brasil estava na África, mais particularmente em Angola. De 1550 a 1850 os alegados ciclos do açúcar, do ouro e do café derivaram do multissecular grande ciclo do tráfico de escravos, que garante o desenvolvimento de todos os outros ciclos. Isso colide com a campanha diplomática e naval de Londres para fazer cessar esse comércio, mas só em 1850. A Inglaterra consegue romper os laços tecidos entre Brasil e Angola por três séculos. A força da monarquia teve um papel importante, era a única monarquia das Américas. No início, a Inglaterra fazia pressão só diplomática e quando, mais tarde, vai fazer pressão naval, o tráfico cai bruscamente depois de 1850 até ser extinto em 1856.
Valor: Por que o senhor diz que o tráfico fez o território brasileiro não se dividir, ao contrário do que aconteceu com os vice-reinos espanhóis?
Alencastro: O Rio de Janeiro, sede do governo, tinha grande peso na economia, era a capital, o maior centro mercantil, o maior porto e era o principal importador de escravizados nas Américas. As províncias brasileiras que se aventurassem a se separar do poder central só seriam reconhecidos pela Inglaterra se acabassem com o tráfico. Pernambuco, Bahia, São Paulo tinham economias baseadas no trabalho de escravizados e precisavam da força política da monarquia e do Rio de Janeiro para frear a pressão inglesa e manter a chegada dessa mão de obra cativa. A unidade nacional brasileira é um fenômeno inédito nas Américas. Aqui se falava a mesma língua em todo o território, mas da Patagônia até a Califórnia também se falava a mesma língua e os quatro vice-reinos espanhóis se fragmentaram em 19 países.
Valor: Do ponto de vista econômico, o tráfico de escravizados foi mais importante do que o do açúcar, ouro e café, ensinados com tanto destaque na escola?
Alencastro: O grande ciclo do tráfico de escravizados se sobrepõe a todos os ciclos da economia brasileira até a metade do século XIX. O tráfico foi um ciclo que durou de 1550 a 1850. O avanço do comércio de escravizados na área Fluminense transforma o Rio de Janeiro na capital do vice-reino e do império, e no maior porto negreiro das Américas. Foi o ciclo que permitiu todos os outros, o do açúcar, do ouro e do café. Só teve um ciclo, todos os outros dependeram dos escravizados africanos. De cada 100 indivíduos entrando no Brasil, 86 eram escravizados africanos, só 14 eram portugueses. A influência da África na formação do povo brasileiro é muito maior do que a da Ásia, da América e da maioria dos países da Europa.
Valor: Vem daí a sua defesa da importância de estudar o Atlântico Sul, Angola integrada ao Brasil.
Alencastro: Se nós estudássemos o Atlântico Sul como um espaço político e econômico ligando a África e a América do Sul, veríamos a importância que a pilhagem da África teve no desenvolvimento do Brasil. O Padre Antônio Vieira já escrevia no século XVII: “Angola... de cujo sangue, negras e infelizes almas se nutre, anima, sustenta, serve e conserva o Brasil”. A vinda da Corte intensificou esse comércio infame que permitiu o aumento da produção e a exportação de café, simultaneamente às exportações de açúcar, de algodão, de tabaco e de outras commodities.
Valor: Por que a África nunca entrou assim na História do Brasil?
Alencastro: Porque a História ensinada aqui é autocentrada, territorializada. Fernand Braudel, o grande historiador francês que deu aulas na USP, escreveu que os historiadores e sociólogos brasileiros, incluindo Gilberto Freyre, escrevem “de dentro para fora”. Há mapas em livros que mostram a configuração do Brasil de hoje como se já fosse assim desde 1500, com o estado de Tocantins e tudo. Estudam a época colonial só voltada para dentro, sem considerar a extensão externa do mercado de trabalho, as relações geopolíticas. Isso agora mudou de uns 20 anos para cá. A lei de 2003 do governo Lula tornou obrigatório o ensino da história afro-brasileira e africana no ensino médio. A lei vem sendo cumprida de maneira irregular, mas até hoje no ensino médio e até em algumas universidades não há a percepção de que juntar Brasil colonial e Angola é juntar duas partes de um mesmo espaço social e econômico. Não se vê que estudar Angola e Moçambique é estudar a parte do Brasil que estava fora da América do Sul.
Valor: Como esse apagamento histórico da África impacta o Brasil de hoje?
Alencastro: Isso hoje acabou. Há muita gente trabalhando, pesquisando sobre a África. Desde a independência das colônias portuguesas, quando Samora Machel e Agostinho Neto se tornaram presidentes de Moçambique, Angola. Se bem que há gente hoje que só escreve sobre a influência do movimento negro americano, esquecendo do impacto da independência dos países africanos lusófonos, dos presidentes africanos falando português. E a força do movimento negro no Brasil também reforçou o estudo da África.
Valor: A violência do passado escravocrata deixou herança no Brasil de hoje, certo?
Alencastro: A tortura foi legal no Brasil até 1888. No Código criminal de 1830, estava escrito que se o criminoso fosse escravo ele não iria para a cadeia, porque se fosse causaria perdas para o senhor, perdas de dinheiro e de tempo de trabalho. Assim, a pena era automaticamente transformada em açoites; o escravo era açoitado publicamente, humilhado, torturado. Quando a Abolição ocorre, a polícia já se acostumara a bater neles e também nos brancos pobres. Esses mecanismos contaminaram a sociedade toda até hoje.
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