Crónica de Anselmo Borges*
Ao longo da minha vida muitas palavras me foram dirigidas. Mas há aquelas que me marcaram. Positivamente. Ficam aí algumas.
Do meu pai. "Só é livre quem não deve nada a ninguém. Quem não tem de andar sempre com o chapéu na mão".
Da
minha mãe. "Quem é não precisa de parecer". "Olha aquela folha de
trevo, aquela pereira; ah! aquela pêra. Que beleza!". "Queres saber?
Andar e ler." "Neste mundo, não há alegria perfeita." Quando me
escrevia, terminava assim: "Que o Divino Espírito Santo te ilumine!"
Do meu professor da escola primária. "Para a frente! Sempre para a frente, sem medo! Para trás m.ja a burra."
Da
minha irmã. "Como é que a gente não enlouquece?!", disse-me, agarrada a
mim, quando o caixão com o cadáver da nossa mãe desceu à terra.
De
um grande amigo alemão, Anton Kaufmann. Muito jovem fora prisioneiro de
guerra dos americanos e chegou a estar encostado à parede, como se
fosse para ser fuzilado. Perguntei-lhe em que pensou naqueles instantes.
"Pedi perdão a Deus e lembrei-me da minha mãe". Ele era uma força da
natureza. Da última vez que o vi, estava num lar, alquebrado. "Adeus,
Anselmo. A vida passa tão depressa...".
De
outro grande amigo alemão, Anton Niklas, empresário de sucesso. "Eu
trabalho, eu invisto como se tivesse de viver sempre aqui, neste mundo.
Mas estou preparado para morrer a qualquer momento".
De
um jovem drogado, que arrumava carros e a quem eu, pela manhã, dera uma
moeda. De regresso, à noite, pergunto-lhe: "Então, o seu dia, senhor
João?!" E ele, sem caber nele de alegria: "O quê?
Ainda se lembra do meu nome? Nunca mais precisa de me dar nada. Ai do filho da p.ta que tente estragar-lhe o carro!"
Do
teólogo Karl Rahner. Ele ia ao aniversário de um sobrinho pequenito e
tinha arranjado uma garrafa com uma moeda de um marco dentro: "Está a
ver a alegria e a curiosidade do miúdo, a perguntar como é que a moeda
entrou lá dentro?!" Também: "Já alguma vez um padre ou alguém com
responsabilidades especiais se confessou a si do pecado da ignorância
culpada, pecado que pode ser grave e até mortal?"
De
uma jovem que casei, feliz, três filhos, ainda pequenos, Francisca
Espregueira Mendes. "Vivo como gostaria de ser recordada depois da
morte. Gostava que me lembrassem como luz, acolhedora, leve e gentil."
Do médico José Madureira. "Quando vi o meu neto recém-nascido, ajoelhei-me. O milagre da vida!"
De Eduardo Lourenço. "Todas as pessoas rezam."
Do teólogo Edward Schillebeeckx. "Deus não é uma necessidade. Deus é gratuito. Como uma rosa que se dá a uma amiga."
Do
historiador Pierre Chaunu. "Há três palavras que não existem em mais
nenhuma língua e em mais nenhuma cultura. Bereshit Bara Elohim, as três
primeiras palavras da Bíblia (No princípio criou Deus). Repare, isto é
fabuloso: há uma relação com o Deus criador, que é fonte de todas as
coisas; Ele está imerso no mundo, mas não se confunde com o mundo. Em
última análise, isso permite a História, porque dá a autonomia à
criatura e, por outro lado, dá o sentido. É evidente que nenhuma
sociedade pode viver sem o sentido. Aliás, nós neste momento
afundamo-nos, morremos, precisamente pela falta de sentido. Quando se
perde o sentido, morre-se colectiva e individualmente. Dito de outro
modo, uma sociedade não pode viver, se não tiver qualquer coisa a dizer a
respeito da morte, que é própria do fenómeno humano. Uma sociedade não
pode viver, se não tiver nada a dizer sobre o sentido global da
existência, da História." "O cristianismo é Bereshit Bara Elohim, é o
Deus transcendente que encarna em Jesus Cristo e que conduz, através da
morte, o tempo em que estamos para a Eternidade."
Do
teólogo M. Flick, meu professor na Universidade Gregoriana, 1968-1969.
Conversei bastante com ele, perguntando-lhe uma vez porque é que não ia
tão longe nas aulas como quando falava comigo. Como resposta, levou-me
ao terraço, apontou para a Cúpula de São Pedro: "O que é aquilo além?".
"São Pedro", respondi. "Nâo se esqueça: do Vaticano vê-se a Gregoriana!"
De
Jean-Marie Domenach, Director da revista "Esprit". "A partir do momento
em que uma doutrina se confunde com o Poder, a partir do momento em que
uma religião se confunde com o Poder, temos fatalmente fenómenos de
clericalismo, fenómenos de terror, quer se trate da Inquisição ou do
estalinismo. É necessário que aquele que crê deter a verdade não possua
ao mesmo tempo todos os poderes do Estado. Os sábios (savants) e os
padres não podem ter ao mesmo tempo a polícia à sua disposição." Mais:
"O clericalismo, digo-o, tenho-o dito e repetido, é uma coisa odiosa."
Do
filósofo Maurice Clavel. "No fundo, tudo está aqui: todo o pensamento
totalizante é forçosamente totalitário." Sobre a sua conversão ao
cristianismo: "Repare, eu fui convertido, eu não me converti. Fui
convertido, na passiva. Nós somos apanhados por dentro."
Do
filósofo Jean Guitton. "O problema que eu me pus não foi tanto o do
tempo bergsoniano - a duração -, mas antes, uma vez que sempre estive
animado pela fé cristã, católica, o problema da relação do tempo com a
eternidade, com o que está para lá do tempo, embora sempre presente no
tempo: a eternidade, o mistério do tempo enquanto a eternidade habita já
no tempo. Visando mostrar que no interior do tempo que passa há um
elemento intemporal que não passa." "Com a bomba atómica, a Humanidade
tomou consciência de que é mortal, não apenas os indivíduos."
Anselmo Borges no Diário de Notícias
*Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/palavras-para-mim-1-14627606.html
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