Nina Horta*
Você lê o jornal com o olho no fogão,
porque nada é tão "todo dia"
quanto leite derramado
Os cadernos dos jornais dividem meu mundo em partes e tenho dificuldade de juntá-lo na cabeça. Quando vejo que o preço do milho caiu, não percebo que tem ligação com a página de gastronomia que afirma que o chique, nos restaurantes, é comer dois milhos bem assados na espiga, com arroz de jambu.
E todos os dias, quando abro o caderno "Cotidiano", imagino que vou ver a história se formando em pequeninos retalhos que acontecem todo dia. A pequena história. O cheiro do café da manhã, o cacarejar das galinhas, (na minha casa tem galinha garnizé) os carros partindo das garagens para enfrentar o cotidiano do trabalho.
O cotidiano não é só o viver. É o morrer também, e está lá com seus necrológios, esses sim, de uma "cotidianeidade" insuportável.
O cotidiano do leite subindo rápido na leiteira. Enquanto isso, você lê o jornal com o olho no fogão, porque nada é tão "todo dia" quanto leite derramado.
O quê? Desabam três prédios no centro histórico do Rio? Definitivamente, não é comum. E junto do Municipal? Poderia ter sido o teatro? Todos dizem que foi tão junto que atrapalha a entrada dos bailarinos, parede grudada ao anexo.
Minha mente tão pouco afeita às engenharias já faz o raciocínio contrário. Foi o Municipal, com sua restauração perfeita e sem fim que, de tanto bater martelo, aplainar e saracotear, mexeu com as entranhas do velho prédio vizinho, firmado no seu cotidiano de prédio pobre, malfeito, tostões contados, sombrio, pedindo janelas abertas. O Municipal ficou novo. O vizinho implodiu.
"O cotidiano não é só o viver.
É o morrer também, e está lá
com seus necrológios, esses sim,
de uma "cotidianeidade"
insuportável."
O cotidiano é a chegada no trabalho, a escada comprida e fina, a sala cheia de livros com as maiores novidades culinárias. E a aproximação do meio-dia, que trará a comida dos funcionários. Simples, muito músculo, rabada, sardinha frita, arroz, feijão e a salada de tomates um pouco verdes com alface americana, rodelas de cebola e molho um pouco ácido demais.
Mas não! O cotidiano é aquele em que o Laerte quer fazer xixi no banheiro feminino. O quê? Ora, Laerte, chega! Desse jeito você vai parar no blog de modelos lindas da Vivian Whiteman, de tutu cor-de-rosa.
O cotidiano é ir até a estante procurar um livro de comida brasileira e encontrar, no seu nariz, aquele da Paloma Amado que sumiu há décadas. Todo dia me acontece uma dessas. Passo a maior parte da vida procurando alguma coisa que perdi.
Mas não é isso que o "Cotidiano" conta, e, sim, que procurando um jacaré, e não um livro, os cientistas descobriram um fóssil de animal pré-histórico em Presidente Prudente e que, como acontece no cotidiano, ainda por cima tinha chifres e era cheio de escamas.
Mas dona Flor, sim, essa é cotidiana. Brasileira, casa-se com três americanos, para que possam conseguir passaportes para o Brasil.
E quando penso que ao sol se pôr vamos para casa ligar no mesmo canal, que vamos tomar a sopa de abóbora com castanhas, somos alertados para o assalto e para o bando que roubou o mosteiro, não sem antes pedir perdão ao padre...
Rezo baixinho para tomar o chá quente e deitar nos travesseiros de sempre, se o cotidiano deixar.
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* Nina Horta, cozinheira e escritora, é proprietária do buffet Ginger. Colunista da Folhaninahorta@uol.com.br
Leia o blog da colunista
ninahorta.folha.blog.uol.com.br
Fonte: Folha on line, 01/02/2012
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