Paulo Ghiraldelli Jr*
Faz tempo que não consumimos para sobreviver e, sim, para viver. Pode ser que nunca tenhamos consumido senão para viver. Talvez desde os primeiros momentos que Deus começou a observar a evolução e viu um bípede peludo lhe pedir para chamar de Adão, tudo já se passasse segundo uma grande busca pelo lúdico e pelo prazer. E todos nós sabemos que Eva comeu a maçã proibida antes por prazer de consumo que por fome. O mesmo prazer que sentimos, hoje, nas nossas mobilizações dentro de um shopping center.
O consumo está nas entranhas do que somos. Aquele que escreve contra o consumo mata uma árvore. Ele a consome para virar papel, de modo a poder escrever o que quer escrever. Mas, como o consumo é o botar fim nas coisas, tornar morto o que é vivo, direta ou indiretamente, então parece que precisamos escamoteá-lo. Ele próprio não pode se apresentar como fim. Não se fala em corda em casa de enforcado. Ele deve aparecer como meio. O fim tem de ser algo mais nobre que o consumo, de modo que o consumo, a morte, fique encoberto por algum discurso em que a desgraça vá para o altar dos grandes feitos.
O homem consome para viver, não para sobreviver. Esta é uma possível verdade que paira como fantasma sobre nós todos. Negamos isso. Vejam como um escritor ou um leitor gosta de pegar um livro e sentir o cheiro da morte sem que possam ser acusados com o mesmo tipo de olhar que alguns fazem aos não vegetarianos. Mas escritores e leitores se traem. Repare como pegam os livros nas livrarias. Abrem, passam a mão sobre a capa. Cheiram-no. Ficam ali embevecidos com o odor do consumo que é o cheiro da morte. A árvore foi consumida. Morreu. Virou papel. Que prazer enorme em ter algo morto nas mãos. Que prazer mais sem culpa! Ninguém ali na livraria irá notar que todos ali se deliciam com cadáveres. É assim que o consumo pode existir. Os intelectuais adoram consumir. Simplesmente porque eles consomem sem que lhes caiba a responsabilidade pela morte.
Os intelectuais, na sua boa maioria no Brasil, são frutos do marxismo ou da Igreja, e foram ensinados a odiar o consumo, e isso por razões das doutrinas envolvidas na questão. Temo, no entanto, que esse amor-ódio pelo consumo, que é de fato o que ocorre, seja algo de todos os intelectuais. Porque eles sabem, talvez mais que os não-intelectuais, que a condenação do consumo é, no fundo, apenas uma maneira de todos nós fugirmos de nós mesmos. Somos os bípedes que consomem e que por isso matam tudo sobre a Terra por prazer e não por “necessidades da sobrevivência”, ainda que esta seja efetivamente real. O homem nunca quis sobreviver. Ele sempre quis viver. E em relação a isso, Adão e Eva deram mostras claras para Deus. Chutaram até mesmo o Paraíso, porque este lhes parecia conter uma proibição de acesso a algum setor – aliás, desconhecido deles – do prazer.
A sociedade de mercado não é alguma coisa que não tenha lá nos primeiros momentos humanos sua origem. Não estou naturalizando-a para torná-la inevitável. Estou historicizando-a para que possamos entender as fontes a respeito do que chamamos de prazer. A sociedade de mercado que, enfim, certa literatura mais recente chamou de “sociedade de consumo”, é a que nos apresenta ao shopping center. Ela fez do consumo alguma coisa que é o escancarar do prazer. Consumir é fazer as coisas desaparecerem por morte. Até mesmo os produtos do espírito podem passar por isso: um belo filme ou um belo livro vistos ou lidos não nos servem mais! O prazer já ocorreu. A morte de algo, junto com ele e só por ele, já ocorreu.
"No shopping somos efetivamente humanos.
E só ali somos humanos. Pois só ali estamos
no nosso campo lúdico próprio,
o nosso campo de jogo efetivo, nosso mesmo.
Trata-se do campo do prazer.
Prazer para o bípede peludo sempre
foi colocar fim nas coisas – consumir.
Temos outra forma de prazer?"
O shopping center não é o reino do consumo, ele é a corte do consumo. Num reino, todos estão sob as ordens do rei, mas só a corte usufrui da proximidade com o rei. Todos nós vivemos sob regras da sociedade de mercado. Mas só quando estamos no shopping consumindo é que entramos na corte onde há a permissão de usufruirmos o que acreditamos que merecemos. Então ali, na corte do prazer moderno, gastamos toda a nossa sofisticação, em graus variáveis. Uns consomem frigideiras, outros consomem tablets e outros, ainda, consomem poesia. A garota consome sorvete. As meninas pré-adolescentes consomem os primeiros sutiãs. E todos nós de meia idade para diante, fora alguns que começam mais cedo, consomem viagra e KY. Nada se faz ali para a necessidade, no sentido estrito da palavra. Tudo ali seria chamado por Delfim Neto, nos anos setenta, de supérfluo – ao menos na TV. Tudo ali é antes para a fruição que para algum uso justificável por mecanismos que chamam as coisas de “úteis” e “não úteis”. No shopping somos efetivamente humanos. E só ali somos humanos. Pois só ali estamos no nosso campo lúdico próprio, o nosso campo de jogo efetivo, nosso mesmo. Trata-se do campo do prazer. Prazer para o bípede peludo sempre foi colocar fim nas coisas – consumir. Temos outra forma de prazer?
Os filósofos que não querem enganar a si mesmos e aos outros, procuraram formas de serem sábios. O que é um sábio? Alguém que sabe viver. Essa sabedoria nunca disse algo como “não há preço a pagar na Terra”. Nunca! Mas existe um grupo de filósofos que insiste em dizer que o preço a pagar na Terra é um engodo. Que podemos viver sem pagar nada. Estes prometeram um modo onde o prazer não teria vínculo com a morte. Os primeiros não puderam prometer isso. Jamais conseguiram olhar para si mesmos, para o homem, e não vê-lo como um devorador de tudo. Um consumidor.
É nessa batalha filosófica que estamos. Há os que acreditam que é preciso uma ética do prazer que nada mais é que uma ética do consumo. Há outros, no entanto, que acreditam que isso é uma bobagem, e que o que temos de fazer é negar o consumo. Consumir o mínimo, só para a sobrevivência, é chamado por estes de uma vida pura sem o envolvimento com o consumo porque sem envolvimento com o consumismo. Os primeiros não só não advogam tal coisa, como evitam em falar em diferença entre consumo e consumismo, pois sabem que essa diferença já não é outra coisa senão a perversa ideologia de condenação de todo e qualquer consumo. Por que eu digo “perversa”? Por uma razão simples: sendo o homem aquele que não sobrevive e, sim, vive, e sua vida é o consumo, como ele pode ser declarado culpado sem que exista a liberdade dele poder parar de consumir?
A denúncia do consumismo é, hoje, talvez o restolho de toda a má filosofia. De denúncia de ideologia passou ela própria à condição de ideologia. A pior ideologia que temos: a do anti-consumismo. Ela é ruim não porque ela mente, como toda ideologia. Ela é ruim por mais que isso. Porque é adotada só pelos mais burros. Os que conseguiram acreditar que o homem pode não consumir, ou mesmo que o homem pode sobreviver apenas, e não viver.
Hora da Coruja feito em Stream fala do tema do consumismo: clique aqui! http://www.ustream.tv/recorded/20274899
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
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