sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

"Fausto", um retrato do capitalismo

Para Gustavo Franco, Goethe põe em questão
a ideia de que os investimentos de Fausto
sejam diabólicos: ao fim,
o personagem é salvo.
A história de Fausto foi baseada no caso real de um alquimista misterioso da Alemanha, que morre em meio a seus experimentos. Tornou-se lenda e foi transcrita para o teatro no século XVI por Christopher Marlowe, precursor de William Shakespeare. No século XVIII, o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe passou a vida inteira transformando o relato de Fausto em tragédia para o teatro. O resultado é uma das maiores obras-primas da literatura em língua alemã. Para o economista suíço Hans Christoph Binswanger, a tragédia pode ser lida como metáfora para o desenvolvimento econômico moderno. A edição brasileira de seu livro "Dinheiro e Magia" (Zahar) tem prefácio e posfácio de Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, que falou ao Valor sobre a obra de Goethe.

Valor: Fausto promete entregar a alma no final e recebe algo em troca no presente. Pode-se ler o texto como metáfora do financiamento?
Gustavo Franco: A interpretação não é despropositada, porque presume que deve haver uma contraprestação diferida. Ele prometeu entregar no futuro e recebeu outra coisa hoje, que deve valer a pena, para ele entregar algo tão valioso. Não que, com isso, o financiamento seja necessariamente demoníaco.

Valor: No caso de Fausto, ao contrário, ele é resgatado por anjos e levado ao paraíso...
Franco: É verdade, mas ele não cumpriu o acordo. Ele se serve de um expediente jurídico. Há uma diferença crucial entre o "Fausto" de Goethe e a lenda original, em que a duração do pacto é de 24 anos. Ele deve entregar a alma ao declarar que chegou ao apogeu. Mas ele diz que "talvez chegue". Então ele é resgatado, como em um "bailout". Trazendo para a crise europeia, os políticos gregos fizeram o papel do viabilizador: tomaram recursos no presente; gastaram o dinheiro; fizeram, supostamente, o bem; buscaram, como Fausto, o apogeu. Agora são chamados a devolver e não querem entregar.

Valor: Apesar da demonização, o público da época simpatizou com Mefisto.
Franco: Há uma carga de ironia no "Fausto 2", em que Goethe demoniza as finanças. Quem orienta a emissão de títulos é Mefisto, mas é uma força criadora. Viabilizou progressos, que são colocados sempre de forma ambígua, para manter a ironia de que é o demônio que produz aquele efeito. Ele rouba terras do mar, constrói canais, são coisas nunca inconfundivelmente boas, para reforçar a ambiguidade e ser mais instigante. No fundo, Goethe questiona que aquilo seja diabólico. Se Fausto foi salvo, a mensagem é que o que ele realizou era bom o suficiente para que alguém interviesse no mercado para salvá-lo. Não sei se a analogia com os gregos ainda vale. É um caso mais flagrante de pecado rasteiro. Gastaram mal o dinheiro.

Valor: Talvez a analogia funcione melhor com os "subprimes". Nos anos 2000, cresceu-se muito, depois veio o estouro da bolha, e enfim o "poder superior" resgatou os pecadores.
Franco: Em "Fausto", a salvação vem quando o poder superior reconhece que a figura de Fausto não é má, o que ele fez é bom. Não foi bem esta a motivação do "bailout" nos EUA, que buscou evitar um mal maior. A indústria das hipotecas nos EUA não vai acabar. A inovação financeira, equivalente ao papel-moeda em Goethe, mostra seu lado destruidor, mas não é extinta. A cada 20 anos, presenciamos alguma inovação financeira que conduz a grandes progressos, mas leva a uma crise de destruição.
Valor: A tragédia brasileira que o senhor apresenta no posfácio é ambígua como a tragédia do Fausto original?
Franco: Não há uma resposta firme. Tentei usar os dois lados da imagem de Marshall Berman [autor de "Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar", com um capítulo sobre "Fausto"], em que Fausto é a figura benigna, e Mefisto a maligna. A composição dos dois impulsiona o progresso. Para Berman, Fausto representa as grandes mobilizações de capital capitaneadas pelo Estado; e Mefisto é o predador privado, que acende as faíscas para as coisas acontecerem. No Brasil, a interpretação inversa também é válida. O Estado fisiológico, predador; o empresário honesto, que não consegue fazer negócios sem se entregar à corrupção. Quem é o corrupto, quem é o corruptor? É a ambiguidade também presente na obra original. Fausto e Mefisto são uma equipe. O Diabo não tem nenhum poder que Fausto também não tenha. Tudo se confunde. Estado e capital privado são engrenagens da mesma máquina. Isso faz de "Fausto" um retrato genial do capitalismo.

Valor: No Brasil, a analogia leva a uma dicotomia entre o chamado milagre econômico e a crise da dívida. Valeu a pena passar pela crise para ter o crescimento de antes ou teria sido melhor não atravessar nenhum dos dois momentos?
Franco: A mesma pergunta vale para a inflação. É muita entropia para pouca mudança, isto é, depois da segunda crise do petróleo, fica evidente o trade-off entre a tentativa de manter o crescimento e o custo em inflação e dívida. Quando Mário Henrique Simonsen pediu demissão, o presidente Ernesto Geisel escolheu continuar com o pé no acelerador, mesmo sabendo dos custos, e assim preferiu não fazer o que determinava a prudência. Os termos de troca ficaram claros, mas foram decididos por um general-ditador, não por um governo eleito e um Congresso na plenitude de suas funções.

Valor: Goethe fala do papel-moeda e hoje o que está na berlinda é a noção de moeda escritural, isto é, dívida se passando por moeda.
Franco: O papel-moeda é uma promessa de pagamento, uma dívida. Eis o grande invento. É uma dívida que nunca será resgatada e todo mundo sabe. Mesmo assim, é transmitida de uma pessoa para outra, como se tivesse lastro. Na minha época, as cédulas ainda traziam a inscrição: "Por meio desta, o Banco Central promete pagar..." É uma reverência à ideia intuitiva e primitiva de que a moeda tem de ter valor intrínseco. Deixou de ter há muito tempo.

Valor: "Fausto" sendo a metáfora do desenvolvimento econômico, é possível um desenvolvimento que dispense a desmesura faustiana?
Franco: Aparentemente, não. Não se pode fazer nada a partir do nada. Ou melhor, uma coisa, sim: o papel-moeda. Mas ele só se tornará alguma coisa se for empregado de um jeito que, como diz Binswanger, é alquimia: produtivamente. Então, terá sido feito, sim, um pacto com o Diabo, algo terá sido criado e algo destruído. É parte integrante do progresso, ele funciona assim. Essa é a lição.
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Fonte: Valor Econômico on line, 03/02/2012

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